Um inventário de mais de 70 anos da presença do 'Brujo'
argentino no Brasil
Borges no Brasil, de Jorge
Schwartz, alentado volume de mais de 600 páginas, procura mapear
a
presença da obra
e do escritor Jorge Luis Borges no território mental e geográfico
brasileiro |
A mais antiga
referência a Jorge Luis Borges (1899-1986) no Brasil parece ser a
do modernista Mário de Andrade, que, a 13 de maio de 1928, o mencionava
no Diário Nacional, de São Paulo, em artigo sobre o modernismo
argentino. Uma das mais recentes talvez seja esta resenha, que o caro leitor
tem aí, diante dos olhos. Entre um texto e o outro, lá se
vão mais de sete décadas, e centenas de artigos, livros,
resenhas, entrevistas e teses acadêmicas com que a intelectualidade
brasileira vem procurando dissecar ao infinito a obra do Brujo argentino.
Uma parte expressiva desse legado de acertos e erros a respeito de uma
das obras mais importantes do século 20 está neste Borges
no Brasil, alentado volume de cerca de 600 páginas que procura mapear
a presença da obra e seu autor no território mental e geográfico
brasileiro.
O sucesso de uma obra como a de Borges - tão na contramão
de seu tempo, tão especialmente indiferente à política
e às miudezas sociais contemporâneas - talvez pudesse sugerir
que o lugar metafísico da arte não tenha sido suprido, no
essencial, pelo
paradigma moderno. Nesse sentido, um livro como Borges no Brasil bem
poderia ser lido como o inventário de um esforço de compreensão.
Infelizmente, a profusão e a pressa não são os melhores
aliados da reflexão - e livros como este nos dão mostra disso:
logo a um primeiro exame, chega-se à conclusão de que foram
muitos os que tentaram, mas poucos os que efetivamente conseguiram compreender
o escritor argentino.
Mais sistemático do que exaustivo, Borges no Brasil, trabalho do
talentoso Jorge Schwartz, vem dividido em cinco partes: três coletâneas
de textos, uma bibliografia borgiana e uma breve iconografia sobre as duas
visitas de Borges ao Brasil. O resultado do conjunto, inevitavelmente desigual,
contrasta - e muito - com a obra tão coerente e homogênea
que lhes serve de tema. Resulta incômoda tanta verborragia compilada,
desproporcional ao estilo claro e conciso de Borges. Nenhuma surpresa no
fim das contas: entre um homem e o mito que o envolve, quase sempre se
mede a distância de três abismos.
Eis, em linhas gerais, a descrição desse trajeto abissal:
a primeira parte de Borges no Brasil apresenta os textos das conferências
do simpósio "Borges 100", que a área de Pós-graduação
de Espanhol da USP realizou em abril de 1999, em comemoração
ao centenário de nascimento de Borges - uma efeméride celebrada
com ensaiado estardalhaço em todo o mundo.
Nos papers aqui reunidos, estudiosos e professores universitários
brasileiros desfilam suas idéias e comparações, num
painel cerimonioso e sobretudo previsível: Borges e a literatura
argentina; Borges e a literatura universal; Borges e a crítica;
Borges e seus tradutores; Borges e o cinema - e assim por diante, ad nauseam.
A segunda parte traz uma antologia de ensaios e artigos escritos e publicados
no país a respeito de Borges. Em ordem não necessariamente
cronológica, o capítulo abrange cerca de 25 textos - do já
citado artigo pioneiro de Mário de Andrade até extravagantes
leituras contemporâneas, associando o escritor a temas como mitologia,
Joyce, Fernando Pessoa e a cabala. Aqui, pelo menos, afogado num mar de
referências acadêmicas, o leitor paciente ainda poderá
pescar algumas iguarias finas, como os artigos de Otto Maria Carpeaux,
Paulo Rónai e Murilo Mendes, autores nada acadêmicos, gênios
remanescentes de uma época em que a atividade crítica nada
tinha com os reducionismos políticos e os desconstrucionismos da
hora.
Unanimidade respeitosa
Quatro entrevistas com Borges, publicadas no Brasil em diferentes épocas,
integram a terceira parte - onde vemos o argentino destilando sua inteligência
e seu fino humor, para além do caráter óbvio e protocolar
da maioria das perguntas. Completam o volume uma pequena iconografia de
suas duas visitas ao Brasil (em 1970 e 1984) e uma extensa bibliografia,
elencando (quase) tudo quanto já se publicou no Brasil, de e sobre
Borges: desde a tradução de sua obra (poética, ensaística
e ficcional) até os livros, resenhas e reportagens que ao longo
dos anos vêm procurando transformar o biscoito fino de Borges numa
bolacha água-e-sal para as massas.
Tanto já se escreveu sobre Borges nos quatro cantos do mundo que
o sentimento de repetição e a impressão de cansaço
acabam sendo inevitáveis.
No Brasil, não ocorre nada muito diferente: autor e obra já
mereceram uma infinidade de estudos e comentários, elogiosos ou
desfavoráveis, que juntos formam uma estranha espécie de
unanimidade respeitosa que parece cercar o Brujo argentino, como uma lenda.
Ao recuperar esse fenômeno, Borges no Brasil acaba reforçando
o equívoco: a pretexto de apresentar um panorama completo, oferece-nos
um retrato pasteurizado e sem sabor - que certamente será útil
como obra de referência acadêmica a gerar novos e novos textos
acadêmicos, etc, etc. Mas os interessados em conhecer a grandeza
de Borges devem continuar se reportando à experiência (incomparável
e insubstituível) de ler seus livros.
Muito se poderia escrever, ainda, a respeito de Borges no Brasil - e talvez
muito ainda se esperasse de uma resenha, face ao próprio tamanho
do livro.
Mas a brevidade me parece, aqui, a melhor postura a se contrapor a tanta
grandiloqüência. Diga-se então, à guisa de final,
que um inventário como Borges no Brasil se distancia da obra do
argentino como um bicho empalhado em relação a um animal
vivo e
selvagem. E o resto é silêncio.
BORGES NO BRASIL, de Jorge Schwartz. Unesp, 608 págs., R$ 40,00.
Antonio Fernando Borges é escritor, autor de Que Fim Levou Brodie?
(Record) e Brás, Quincas & Cia. (inédito)
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