Álvaro Feijó


Varina

Eu mudei de pincel e de paleta — embora seja a mesma a tinta com que escrevo — mas mudei, que, de repente, surgiste diante de mim. Não é que me perturbes, mas eu sinto que alguma coisa me comove ao ver-te. Não é que te examine, porque sei que me é quase impossível, que me é mesmo impossível descrever-te. A tua história, sim? A história que se repete e é sempre nova porque há sempre gente que nunca a ouviu ou que não a quis ouvir. O cais viu-te nascer! Corrias, loucamente, pelas retas intermináveis dos paredões de cimento e granito, e em caixotes com cheiro de sardinha fazias tabogan das lingüetas — o tabogan dos parques infantis que não pudeste ver. Assim, faminta e seminua mas livre como os peixes fizeste-te mulher! Depois foi o correr das ruas da cidade, enrouquecendo a gritar: — "Quem merca os camarões" ... Depois um que voltou da Terra Nova e te olhou como fera sequiosa de carne, quando o lugre, ao chegar, entrou na doca. Depois o inevitável! O luar... A Senhora d'Agonia... A quentura de Agosto... E, então, não era só o peso da canastra, era o peso dum filho e a fome de dois para matar, até que o lugre voltasse e se esquecesse o calvário da luta... Um dia no intervalo da campanha o sexo falou mais alto e o coração calou. Foste dum outro homem e, depois, de dois, de três. Quando ele voltou encontrou-te perdida e tu perdeste-o. Hoje, num outro porto, ainda gritas o teu pregão. Quando um homem te encontra fora de horas, para ele foi sempre um bom encontro... e. . . "até mais ver" ... Vês! Eu sei a tua história... (Há tantos que a não sabem!) E, no entanto, Dum homem só ou de cem, num porto do meu país ou num porto de Islândia Tu surgiste aos meus olhos como a mesma mulher.


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