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Revista de Cultura nº7
Fortaleza/ São Paulo, outubro de 2000
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CINEMA: A FICÇÃO DA REALIDADE OU A REALIDADE DA FICÇÃO?
Augusto Guilherme

 

agcinema71.JPG (34902 bytes)O cinema de ficção, mesmo o da fase sonora, nunca poderá, em sentido estrito, reproduzir a realidade tal como ela é. A ficção é uma encenação com atores, filmados quase sempre em cenários de estúdio, através de sofisticados recursos de fotografia, iluminação e montagem. Enfim, apenas uma representação da realidade. Tudo orquestrado sob o ponto de vista do diretor, que interfere subjetivamente nos destinos de seus personagens. André Bazin afirmou, certa vez, que historicamente "o cinema tendeu continuamente para o realismo", entendido como "uma ilusão tão perfeita quanto possível da realidade, compatível com as exigências lógicas do relato cinematográfico e com os limites atuais da técnica".

Os exemplos mais eficientes e eficazes de reprodução da realidade aparecem com o advento do cinema moderno, principalmente aquele estabelecido na Europa do pós-guerra. Com a modernidade, o debate sobre a representação do real adquiriu contornos mais definidos.

Voltemos um pouco no curso da história. A discussão quanto a ideologia realista do cinema é quase tão antiga quanto o próprio cinema. Na história do cinema clássico (o período de estabelecimento da linguagem cinematográfica, a partir do cineasta norte-americano David W. Griffith) até a modernidade do pós-guerra, a idéia de real, no filme de ficção, era basicamente transmitida pela montagem. Uma associação de planos que induzia a assimilação de uma ação contínua e que servia ao propósito de compreensão do todo, ou seja, de narrar uma história com começo, meio e fim. Esta linguagem é consagrada até hoje como a narrativa que possibilita o fácil entendimento por parte do espectador.

Ao longo de décadas cuidou o cinema clássico, aquele dos estúdios de Hollywood, do aperfeiçoamento técnico, sempre com o objetivo de parecer o mais realista possível. Assim, todas as revoluções técnicas desde os primórdios (o cinema falado, a cor, as telas de grandes dimensões, o som direto e sincronizado etc.) sempre serviram, de alguma forma, a esse propósito.

A forma auxilia o conteúdo na narrativa vendida às audiências. O objetivo principal era o de entreter narrando um real representado e o de formar mentes, através dos sentimentos e não da reflexão. Por sua vez, as platéias compravam ingressos, identificavam-se com o que assistiam, reproduziam comportamentos. O filósofo francês Gilles Deleuze sustentava que a representação do real, massificada pelo cinema clássico, estava bem longe da realidade.

agcinema72.JPG (36982 bytes)O retorno ao pós-guerra. O sentido de realidade, proposto pelo neo-realismo, está além da forma (linguagem) e conteúdo (a temática realista). Havia também um novo papel a ser desempenhado pelo espectador. O mesmo espectador que, anteriormente, assistia um tanto impassível ao filme americano. Nesse cinema, há uma ideologia (ou uma estratégia de marketing) que propõe um final feliz e personagens construídos de forma maniqueísta. O esforço mental máximo do espectador (conduzido pela montagem) é esperar o final feliz. O cinema moderno passou a exigir uma participação maior do público em relação à obra de arte, que incluía, inclusive, o processo de conscientização e de reflexão.

O neo-realismo, ao mostrar uma Itália degradada pela Guerra, com personagens envolvidos em situações e conflitos desesperadores, incorporou progressos à discussão sobre a representação do real no cinema. A linguagem cinematográfica, descoberta com a montagem e os diversos planos fotográficos, foi enriquecida com o advento do plano-seqüência, marca do neo-realismo que determinou um reforço para a idéia de representação do real no cinema. Para além da questão formal, tão ressaltada por Bazin, o neo-realismo perpetrou sistematicamente, em sua primeira fase, os conteúdos sociais. A temática ocupa um espaço fundamental na discussão do real no cinema.

agcinema73.JPG (57404 bytes)O cinema, pensado sob a ótica do neo-realismo, propunha um real mais aproximado do vivido, seja na temática, na forma ou na relação que o filme mantém com o público. A utilização dos recursos de montagem, com a edição de planos e contra-planos, e do plano-seqüência são técnicas (e por que não partes importantes de uma "gramática cinematográfica"?) que explicam e distinguem o clássico do moderno em termos de linguagem. No entanto, a distinção mais eloqüente entre cinema clássico e cinema moderno é a análise conjunta (linguagem, temática, contexto social, cultural e histórico) entre as duas fases do cinema. Deleuze dizia que a grande invenção do neo-realismo era de que nos filmes do movimento "já não se acredita tanto na possibilidade de agir sobre as situações, ou de reagir às situações, e no entanto, não se está de modo algum passivo, capta-se ou revela-se algo intolerável, insuportável, mesmo na vida mais cotidiana". Deleuze refere-se à qualidade inerente não apenas ao neo-realismo, mas a todas as tendências estéticas do cinema que propuseram um real que buscava reproduzir um outro tipo de vivido diferente da proposta clássica, ainda que a audiência, induzida pelo mercado, recusasse tal "espelho de si mesmo".

Quase todas as vanguardas estéticas do cinema atuaram em sentido contrário. Havia – e costuma haver – nos cinemas fora do circuito industrial/comercial – até mesmo em focos da produção independente norte-americana – uma preocupação mais adequada com a recriação do vivido. Uma preocupação com a fidelidade à idéia de vida real, pouco comum ao cinema produzido nos grandes estúdios de Hollywood, o sistema, ou mais popularmente o cinemão. Havia esta preocupação nos autores cinematográficos dos cinemas nascidos (ou consagrados) da escola moderna.

Dessa tradição moderna nasceu no Brasil o cinema novo, assim como floresceram outros cinemas na América Latina e na Europa. O padrão estético deveria ser modificado para que finalmente tais cinematografias fossem reconhecidas criticamente. As motivações que moveram os cineastas do cinema novo foram várias – sobretudo ideológicas –, mas basicamente todas tendiam a desviar de um padrão estabelecido. Defendido ou criticado, o saldo (positivo) do movimento foi sobretudo de natureza estética. A partir do cinema novo, consolidou-se algo que poderia ser identificado como cinema brasileiro, com tudo o que há de bom e ruim em tal classificação.

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