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José
Mário Pereira
Afora referências bibliográficas e índice onomástico, são 1.838 páginas que incluem notas e um apêndice com textos de Jaime Alazraki, Jean L. Andreu e Juan Carlos Onetti. O primeiro volume, com 198 cartas, vai de 1937 a 1963; o segundo, com 258, de 1964 a 1968; e o terceiro, com 275, se estende de 1969 a 1983, ou seja, até meses antes de sua morte. Diz o crítico e amigo Saúl Yurkievich, na introdução, que "as cartas de Julio o representam comovedoramente. Não de todo, certamente, não por inteiro, porém sempre com essa cálida, fervorosa e pródiga humanidade que era qualidade entranhável de sua pessoa. Poucos escritores conheço que tenham tanta disposição epistolar". E arremata: "Estas cartas são sua verdadeira autobiografia". É verdade: nelas nada encontramos de supérfluo, afetado ou insincero. Enviadas dos mais diversos lugares – Viena, Saigon, Teerã, Nicarágua – a personalidades como Octavio Paz, José Lezama Lima, Mario Vargas Llosa, Virgilio Piñera, Tomás Eloy Martínez, Italo Calvino, Haydée Santamaría, Roberto Fernández Retamar, Leopoldo Marechal, Jorge Edwards, Jack Lang e os editores Francisco Porrúa e Mario Muchnik, entre outros, elas são essenciais para se compreender não só o homem e o escritor Cortázar como também o papel do intelectual progressista na América Latina dos anos 50 para cá. As primeiras cartas, remetidas da província de Buenos Aires, onde lecionou no começo da vida, dão conta das descobertas literárias, da decepção com a tradução francesa do Fausto de Goethe por Gerard de Nerval (livro que só perceberá melhor na versão italiana), do interesse por escritores como Rimbaud, Rilke, Mallarmé e Musil, do amor por Dostoiévsky e Artaud, do entusiasmo pela música de Bach, Debussy, Cesar Franck e Poulenc, do fascínio pelo pianista Brailowsky. Nesse período, para melhorar o orçamento, Cortázar traduzia – entre outros, Edgar Allan Poe. Não são cartas apressadas, mas meditadas e bem escritas, fundamentais pelo que trazem de entendimento da sua ficção. Elas nos permitem constatar a massa de leituras do então jovem Cortázar, que já em 1940 demonstrava intimidade com a obra de Unamuno e Heidegger. Há textos políticos, comentários sobre o dia-a-dia, as viagens, o trabalho de escritor, os projetos realizados e os adiados. Faz inúmeras referências a escritores como Carlos Fuentes (aqui apelidado de "Águia Asteca") e Gabriel García Márquez, declara admiração por Italo Calvino e Vicente Huidobro e é minucioso no trato com agentes literários. Cuidadoso com as versões de suas obras, aos muitos tradutores explica termos e fornece soluções, procura supervisioná-las pessoalmente; algumas – como a americana de Los premios – quase reescreveu. E o detalhismo o leva a pedir ao editor Porrúa que dê atenção ao tratamento gráfico das lombadas de seus livros, pois são a parte visível nas estantes. Fica no leitor o sentimento de que refletia sobre tudo à volta, procurando extrair o essencial. "I'll die a cronopio yet", afirma, a certa altura, enigmático. Para quem aprendeu a admirar o autor de Histórias de cronópios e de famas, esta publicação expõe um homem afetivo, solidário, desprovido de inveja, profundamente ético e generoso. Na relação com os correspondentes é sempre afirmativo, empenhado em entender as razões do outro; com a mãe, Herminia Descotte de Cortázar (1898-1990), demonstra a todo instante carinho e preocupação. No auge do regime autoritário na Argentina, o filho, por questões de segurança, viajava a São Paulo para encontrar-se com ela ("não é que o Brasil seja um paraíso, mas pelo menos sei que não corro um risco tão direto", observa em abril de 1975 à professora Raquel Thiercelin).
Os aficcionados encontrarão nesta correspondência um veio poderoso onde minerar a obra do mestre de "A casa tomada", o conto publicado por Borges que o lançou ao estrelato. Sempre lúcido no trato da arte narrativa – foi também fino ensaísta – comenta com precisão os críticos de sua obra, anotando a miopia daqueles que deixaram intocados temas que considerava relevantes, e espanta-se com os que viram exatamente o contrário do que pretendeu realizar. Entusiasma-se diante de um ensaio inteligente, como o de Néstor García Canclini, frisando, porém, que "no tengo el elogio fácil…" Intelectual de preocupações universais, Cortázar nem por isso ficou alheio aos prazeres da vida moderna: foi um antenado cultor do jazz e do cinema. Interessou-se desde a juventude por Louis Armstrong, Thelonius Monk, John Coltrane, Chet Baker, Miles Davis, assim como pelo cubano Bola de Nieve; elogiou Resnais, Buñuel, Mizoguchi, o Godard de Le mépris, e fez restrições ao cinema de Antonioni e Fellini. Conta em detalhes o qüiproquó da negociação dos direitos autorais de "Las babas del diablo", que Antonioni desejava filmar, com o produtor Carlo Ponti e seus advogados. Confessa então não ter esperanças de que o conto sobreviva na adaptação, mas não se preocupa, por achar que outra é a linguagem do cinema. No campo social, a questão da democracia na América Latina é tema recorrente. Há muitas referências a Che Guevara, Allende, Fidel e outros líderes políticos da esquerda latino-americana. Fascinado pelo povo cubano, escreve 15 cartas ao amigo José Lezama Lima, cujo Paradiso o entusiasmou a ponto de empenhar-se por vê-lo editado na Europa. Reflete sobre a revolução castrista e pondera que o perigo constante a ameaçá-la são as "pressões estalinistas". Solidário com a luta pela liberdade de expressão, consumiu boa parte da vida em congressos, denunciando perseguições e apoiando intelectuais caídos em desgraça nas ditaduras do continente, como o cubano Heberto Padilla. As 25 cartas remetidas a Mario Vargas Llosa, seu companheiro no Conselho da Casa de las Américas, são importantes para se entender o progressivo distanciamento do autor peruano (hoje naturalizado espanhol) do ideário da Revolução Cubana. Logo após tensa reunião provocada por um artigo de Llosa contra Fidel Castro, o argentino aconselha o colega a procurar acertar-se com Cuba, por entender a ilha como símbolo de resistência ao imperialismo americano. Coerente, recusou convite para lecionar nos Estados Unidos. Mesmo quem não reza pela cartilha do socialismo não pode deixar de entender as razões ideológicas e humanitárias de Cortázar, sobre quem escreveu Juan Rulfo: "Tem um coração tão grande que Deus necessitou fabricar um corpo também grande para acomodar esse seu coração".
Ao tradutor americano Gregory Rabassa, autor do livro O negro na literatura brasileira, admite desconhecer nossos escritores. Como não consegue ler em português os contos de Guimarães Rosa, o faz em espanhol. Refere-se ao poeta Thiago de Mello como "cronópio", e mostra-se disposto a enfrentar a obra de Clarice Lispector, mas entusiasmo verdadeiro demonstra pelos poemas de Carlos Drummond de Andrade, para quem reserva os melhores adjetivos, mesmo reconhecendo que poesia sempre perde na tradução. A lista dos brasileiros citados é pequena: Carlos Drummond de Andrade (2 vezes), Chico Buarque de Holanda (1), Clarice Lispector (1), Glauber Rocha (1), Guimarães Rosa (1), Haroldo de Campos (1), Jorge Amado (1), Nélida Piñon (8), Thiago de Mello (2) e Augusto Boal, que não consta do índice onomástico mas aparece numa observação de Cortázar à mãe, em 1983, como "um grande diretor brasileiro" que iria dirigir em Graz, na Áustria, uma peça sua, escrita 30 anos antes. Com Rabassa, que morou no Rio de Janeiro, comenta a beleza da chica Nélida, e entende-se que Gregory tecera observações sobre a aparência da autora de A república dos sonhos. Compulsando esta correspondência é possível encontrar muito do sentimento do autor em relação ao auto-exílio – viveu quase a vida inteira fora da Argentina. Em julho de 1964, explica a Graciela de Sola por que não volta: "Há razões de fundo, e a mais grave é minha total inadaptação às formas argentinas de vida". Mais adiante esclarece: "Minha Argentina está tão fresca e tão cabal na recordação que toda confrontação com seu presente me lacera incuravelmente. Creio que até agora essa recordação me tem servido para escrever uma obra muito argentina. (…) Por enquanto sou um argentino que anda longe, que tem que andar longe para ver melhor."
Julio Cortázar virou cult até no mercado fonográfico. Já se editaram dois discos: o primeiro, Trottoir de Buenos Aires, de 1995, reúne os tangos que escreveu, com música de Edgardo Cantón na voz de Juan Cedrón; o outro, de 99, organizado por Pilar Peyrats, é uma antologia do jazz e do blues que pontuam as conversas no Club de la Serpiente em Rayuela. Suas 731 cartas nos devolvem o autor de estilo inconfundível e permitem conhecer melhor o ser humano lúcido e original, que mesmo atribulado por dificuldades e doenças nunca perdeu a alegria, e achava maravilhoso "ter vivido neste século". A editora Alfaguara realizou um feito de rara importância literária e política, que contribui para reaquecer o interesse pelo universo do autor desaparecido há 26 anos. Lamentamos apenas que a edição não contenha um índice de assuntos, para facilitar a pesquisa, e esperamos que se publique logo no Brasil pelo menos uma antologia desta indispensável documentação. |
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