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Jorge Lúcio
de Campos
A poem is a machine made out of
words.
![]() Descrever o Grande vidro ou La mariée mise à nu par ses célibataires, même ("A noiva desnudada por seus solteiros, mesmo"), como reza seu complemento operacional, a Boîte verte (1934) (1), para muitos a opus magna de Marcel Duchamp (1887-1968), é algo relativamente simples. Qualquer um pode fazê-lo in loco, bastando que se disponha a visitá-lo no Museu de Arte da Filadelfia (onde, por sinal, se encontra parte considerável da produção e da antiprodução duchampianas). Compõem-no, basicamente, dois painéis de vidro (o conjunto mede 1,76 cm de altura por 2,72 cm de largura) emoldurados em alumínio. Quanto às suas esfíngicas personagens (2) como que hipostasiando uma nativa filosofia do amor e do desejo no painel superior, se situa o mecanismo-mor que o artista designou como sendo a Noiva (ou a pura transcendência feminina) e, no inferior, os que chamou de Solteiros coadjuvantes (ou a mera impotência masculina) (3). Assimilar corretamente suas regras intrínsecas de funcionamento não seria, por outro lado, nada fácil, se tornando imprescindível, para tanto e antes de mais nada, levar em conta as preciosas informações (4) ou a physique amusant ("física jocosa"), como Duchamp as denomina deixadas por ele na já referida Caixa verde. A tarefa mais espinhosa de todas é, sem dúvida, decodificar-lhe a mensagem, atribuir-lhe um sentido que lhe esgote as quase infinitas possibilidades de leitura (5). O hermetismo de suas pretensões míticas praticamente tornou-se um obstáculo apesar de algumas heróicas tentativas (que o digam estudiosos do naipe de Octavio Paz, Thierry de Duve, Arturo Schwartz, Robert Lebel e Michel Carrouges) quase que intransponível para uma leitura crítica. Duchamp trabalhou no Grande vidro por quase dez anos (deixando-o, ao que parece, propositalmente incompleto em 1923). Inspirou-o uma representação do romance-peça teatral Impressions d'Afrique (1910), do então obscuro Raymond Roussel (1877-1933) (6), por ele assistida, em 1912, no Théâtre Antoine de Paris, juntamente com Guillaume Apollinaire e Francis Picabia. Trata-se de um dos marcos de sua Obra, ou como diria Paz, de "uma obra sem obras: (onde não há) quadros, a não ser os ready-made, alguns gestos ( ) e um grande silêncio" (7),da qual acabou sendo excluído o seu inicial flerte retínico bem mais notável nas primeiras telas impressionistas (cf. Paisagem em Blainville, 1902), nabis (cf. Paraíso, 1910/11), pós-impressionistas (leia-se lautrequianas, cf. Mulher cocheira, 1907) e fauves (leia-se matissianas, cf. Retrato do Dr. R. Dumouchel), do que no período intermediário quase que totalmente consagrado à expressão cronofotográfica do movimento cubo-futurista e kupkiano (cf. Jovem triste num comboio e Dulcinéia, ambos de 1911). O Grande vidro pode ser considerado a mais emblemática de suas antipeças mais ainda que a curiosa instalação Étant Donnés: 1º La chute d'eau, 2º Le gaz d"éclairage ("Dado que: 1º A queda d'água, 2º O gás de iluminação") ou Conjugação (8) isso porque talvez seja a única a cumprir "totalmente" o desígnio de especularidade simbólica ambicionado por Duchamp. Embora enfatizando, mesmo que inviesadamente (9), a temática do ato sexual, tornaram-se célebres a suas várias dubiedades, pois, mesmo dobrada sobre si mesma, a sua mensagem encontrar-se-ia o tempo todo diante do espectador, refletindo (virtualizando), desafiadoramente, a rostidade observante deste último. Quem se dispõe a interpretá-lo vê-se, inevitavelmente, diante de um "espelho-armadilha" que, ao buscar fabricar toda uma realidade (poética) autônoma, o faria, contudo, dentro de um paralelismo absoluto com o concreto, numa espécie de competição dialética com a realidade. Ou, como assevera ainda Paz, "voltada sobre si mesma, empenhada em destruir (e, ao mesmo tempo, reconstruir, eu acrescentaria) aquilo mesmo que cria" (10). Por outro lado, é profundamente sintomática a transparência vítrea que lhe serve de álibi: nada mostrar, para nada servir, nem mesmo como um simples empecilho à visão.
Tal ruptura, no nível estético, com a sensibilia (ou o que Duchamp, por vezes, chamou de condição l'art pour l'art da própria arte) (14) demandaria, necessariamente, uma outra concepção do sujeito-artista e do objeto-obra. Se este último deixou de ser proposto como signo (reduzido, sob este aspecto, a um sistema de projeções do tipo essência/aparência, forma/conteúdo etc.), para ser pensado como "pura significância", livre, portanto, da opressão pragmática do jogo hermenêutico, o sujeito-artista, por um lado, deixou de ser simplesmente "aquele que une as idéias num contexto (ou numa ordem) e faz da imagem (aparência) algo que revela a forma das coisas (sua essência)" (15), o objeto-obra, pelo outro, também não pôde mais "ser visto como simulacro (assim como) seu sentido relacionado a uma idéia como garantia de seu existir" (16). O escopo de Duchamp foi implementar uma nova tentativa (decerto, a mais radical de todas) de afrouxamento da camisa de força do socius, ou seja, de sua milenar imposição à arte dos rigores da lei e da função. Como que complementando a proposta dadaísta que "inaugurou uma velocidade experimental, uma mobilidade com vistas à criação de novos esquemas, que acabou por se tornar para o artista contemporâneo uma necessidade imediata: (sendo) sua obrigação andar mais depressa do que o mercado, aprofundar o seu trabalho, de modo a adiantar-se ao inevitável processo de absorção e transformação ideológica de seu produto" (17), a de Duchamp se propôs, sobretudo, mostrar como "a arte (em sua condição de) instituição social, (de) história, se impunha autoritariamente ao seu servidor, mascarando as verdadeiras relações (fantasmáticas) que mantinha com ele" (18),e denunciar como, sob tal ótica, "o objeto de arte se tornava, para o seu produtor, (apenas e tão-somente) o lugar onde se projetavam, confusa e imaginariamente, as questões levantadas pela sua própria prática e que só podiam emergir daquela maneira como projeções inconscientes, como indagações metafísicas etc." (19) Em segundo lugar, seria bom atentar também para o fato de que a eloqüência cifrada de o Grande vidro permite que possamos considerá-lo uma das mais bem sucedidas alegorias do imaginário moderno já realizadas. Todas as senhas descalibrantes do novo mundo da velocidade maquínica a que há muito nos submetemos estão ali sabiamente aludidas. Cáustico ou não, é inegável o interesse que Duchamp nutriu (à maneira de Da Vinci que, por sinal, também teve os seus apontamentos publicados, isso nos anos 1880) pelo elemento tecnológico. Trata-se, sem dúvida, de um interesse compartilhado na época por outras personalidades igualmente mito-desconstrutoras caso do já aludido Roussel, em Locus solus (1914) e por Alfred Jarry, em Gestos e opiniões do Doutor Faustroll (1911) e que, na verdade, exprime toda uma inquietação, por parte da cultura da virada de século pelas alvíssaras científicas.
De um modo ou de outro, sua funcionalidade solteira, absurdamente gratuita, quase que só nos diz respeito, ao refletir, aos olhos mais atentos, a parte de nós mesmos que estamos talvez sempre "pondo a perder" o que realmente somos e insistimos em dissimular num mundo em que as senhas de um tecnologismo desenfreado parecem não só se sobrepor, como também desbaratar toda a visceralidade do antropológico. Contudo, nos alerta Carrouges, a despeito de toda essa sensação geral de distanciamento típica da hegemonia férrea do Gestell heideggeriano que, há muito, não deixamos de exacerbar frente aos aspectos mais primevos de nossa genealogia (fenômeno este que antes se revela fruto de um pretencionismo cultural enciclopedista do que qualquer outra coisa), "os mitos permanecerão agindo, como sempre fizeram, no conjunto de nossas atividades. Tanto os jornais, os esportes, a vida cotidiana, as artes, a literatura, a ciência, a política e as técnicas, quanto os sonhos continuarão a ser comandados em segredo por uma imensa trama mítica cujas constelações imagéticas, por mais insólitas ou banais que possam parecer, (inexoravelmente) governam o mundo moderno" (23). Felizmente, apesar de toda a rigidez de tal bloqueio perante uma mentalidade que hoje, mais do que nunca, é tratada como pré-científica, é possível diagnosticar uma certa tomada de consciência, senão da carnadura protoconceitual dos próprios mitos modernos e pós-modernos (Carrouges destaca entre os primeiros "o do progresso, o dos paraísos perdidos, o da greve geral e o do super-homem"), ao menos de sua focalização entre outros pontos cegos que não a política e a religião. O pensador alemão Walter Benjamin foi um dos primeiros a nuançar teoricamente este terrível páthos de transitoriedade que acabou tomando de assalto o homem deste século, quando de suas agudas disquisições sobre Charles Baudelaire (24). Sob este aspecto, não seria complicado aninhar ambos, juntamente com Duchamp, num mesmo clã poético (integrado por nomes como os de Stéphane Mallarmé, Villiers de l'Isle-Adam, Isidore Ducasse, Egon Schiele, Franz Kafka e Francis Bacon, entre outros) (25), precioso porque urgente, porque fatal, porque tragicamente fadado aos caprichos do desencanto NOTAS
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