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Foed Castro
Chamma
Observada a teologia sob o prisma natural, metalúrgicos e alquimistas antecipam-se em suas práticas artesanais às elucubrações mitopoéticas dos filósofos, desenvolvendo-se nos primórdios da Civilização uma experiência de caráter simultaneamente religioso, no qual Espírito e Matéria se fundem, comprovando tal humanismo incipiente a intrínseca relação que há de prevalecer no Renascimento alemão de Frankfurt, onde foram elaborados os epigramas, ora convertidos em paráfrases e aqui apresentados. Praticantes de uma ciência e uma teofania, os alquimistas pretendiam dominar a Natureza. Tal objetivo carregado de magia vigorava com a finalidade de alcançar o aperfeiçoamento do homem. A metamorfose ou ato de transformação anima a representação em todos os tempos e em todos os níveis, desde o mineral ao vegetal, do humano ao espiritual, colocando-se em pauta para o alquimista a maturação do embrião, de modo a atingir na idade adulta o aperfeiçoamento. O Tempo é o agente de precipitação, tendo em última instância como referencial simbólico o ouro, associado à "luz de pedra do Sol", cuja simbiose mítica com o metal o alquimista persegue junto ao forno, utilizando como solvente o fogo. A opus alchimicum associada ao Tempo visa a transcender a matéria e alcançar como plenitude espiritual a redução emblemática da imagem, que se transforma com o metal em realidade física e social. Tal operação corresponde ao desdobramento de um processo que se consumaria no ouro, tendo como referencial metafísico o eu, ao qual o alquimista se volta na tentativa de atingir a identidade, de maneira a restabelecer a dualidade originária do ser. O alquimista seria o agente de uma arte mágica precursora da química. Construir/reconstruir é uma constante do alquimista, que visa a atingir por meio do fogo o aperfeiçoamento. Pesa a Beleza na Forma. A imagem é a síntese a conferir dimensão simbólica ao ouro qual ferramenta mineral em direção ao real. O eu é o Outro, o que, não sendo, se reveste da Forma que o pensamento produz. Contra o Nada opõe-se a transformação que transcende a dimensão mineral do ouro, análogo ao eu que, ao voltar-se para si, cumpre o projeto de depuração na ação. O emergir do real para si tem como estágio derradeiro a consciência, cujo corpo ao despertar corresponde ao eu. De maneira que a dualidade é o sujeito que o Outro representa enquanto identidade. O Nada a intercalar o espaço que subsiste entre um e outro é o fenômeno ôntico presente na realidade e transformado em linguagem mineral que o alquimista trabalha visando ao ouro como alça de mira que persegue junto ao forno. Como cristalização da luz o ouro atravessa os vários estágios de maturação mineral. Se por um lado atinge a purificação do metal, por outro lado alça-se ao estágio espiritual que o alquimista almeja a fim de encontrar a Verdade. E fabulação inesgotável é o laboratório do alquimista ao precipitar o Tempo na transmutação dos metais. O saber vincula-se à Natureza e ao Tempo que, ao projetar-se na realidade, se reúne sob a forma de conhecimento. Precipitar o labor da Natureza utilizando o fogo, extrair de sua fonte geradora a essência cristalizada no diamante, no ouro, ou na cor da luz, que se diversifica, passando do negro aos vários matizes da claridade, é o ideal do alquimista, que se antecipa ao filósofo, resguardando o princípio natural do fogo sob a ação do logos oculto no eu. Condenado à necessidade, a liberdade é o vínculo a unir o objeto de transformação que a consciência assume, cuja relação formal o alquimista persegue visando encontrar no metal a luz espiritual. O mergulho nos atributos essenciais da matéria, utilizando como ferramenta o fogo, precipita a ação, interferindo o alquimista no desempenho temporal em um gesto de interação a transcender a substância. A solidão do eu é a solidão de Deus, e do alquimista, que tudo vê ao redor em liberdade. O contato com o ferro através de meteoritos encontrados na Terra, por muito tempo foi utilizado pelos primeiros metalúrgicos em sentido hierogâmico a celebrar a união do céu e da terra. Curiosamente, do mesmo modo a Alquimia tem como princípio o casamento dos opostos. A fusão dos elementos em um só corpo é o fim da transmutação. Sua dinâmica incorre na interação espaço-temporal como princípio e fim, que se renova na união de Espírito e Matéria, tendo como sujeito o embrião. O Tempo na maturação da matéria é precipitado pelo alquimista ao submeter os minerais ao fogo na prática manipuladora que a matéria sofre contrariando sua prolongada combustão natural. Desta maneira o metal é transmutado em ouro como materialização do fogo. Narra o mito que o primeiro ferreiro, africano, foi inventor tanto do fogo da agricultura, da domesticação e da religião. A imaginação preside tais relatos que se fixavam no fogo como realidade convertida em imagem do ferreiro, articulador do raio. O ferreiro era o forjador da criatura. A esquizofrenia arcaica concebia o sexo como detentor do fogo, que o próprio ferreiro produzia. O embrião correspondia ao esperma, e, em última instância, ao canto do martelo, que o ferro em brasa despertava na bigorna. A sombra na água era a alma do ferreiro. Correr atrás de si no espelho era encontrar o Outro. Nas inúmeras ramificações do fogo a matéria é uma rede interna composta de artérias e vasos capilares atravessada pelo espírito que o ferreiro trabalhava ao malhar o ferro amolecido no braseiro. O alquimista por sua vez sutiliza a Natureza, utilizando o mercúrio, o enxofre, o sal, a fim de alcançar o ouro, cuja pureza mineral corresponde ao eu.
A Forma reage ao Espírito, despertando o sentido nos atos, em uma troca de ação e reação, da qual o sujeito é agente e paciente. em tal paradoxo o equilíbrio está no desafio a convocar o discernimento na ação, cuja reação produz a Forma que tem na arquitetura seu verdadeiro leitmotif. A sacralidade do metal torna excêntrico o trabalho do ferreiro, associado ao Canto e à Poesia. suas armas são o raio e o relâmpago, tal como é o martelo de Thor na mitologia escandinava. A apoteose do homo faber é criar objetos, afirma Mircea Eliade. Em sua origem o ferreiro é dançarino, músico, feiticeiro, curador. "Os objetos são criados a partir da palavra. O ferreiro mítico é um Herói Civilizador", conclui Eliade. As realidades últimas eram suas conhecidas. Como dono do forno, o ferreiro possuía o poder do fogo. assim o ferrador participava do prestígio do ferreiro junto ao cavalo. A ferradura é um rito do matrimônio. "O cavalo fantasma ao chegar à ferraria era ferrado." O taoísmo na China assemelha-se à Alquimia, lê-se em Herreros y Alquimistas. Para divinizar-se o alquimista devia produzir o cinábrio, ouro potável, e ingerir o metal. A imortalidade era uma constante nas mitologias associadas ao crescimento dos minerais. O regresso ad uterum se fazia recolhendo-se o alquimista a uma gruta, tal como os taoístas, que viam no fundo do vale o abrigo derradeiro. Se a Alquimia é uma etapa que procede a Química, seu fundamento a um tempo experimental e esotérico está impregnado de uma inquietação filosófica que se estenderá de Moisés a Leocipo de Mileto e Demócrito de Abdera, 500 anos a. C. O Patriarca dos hebreus trouxe de Ur conhecimentos da Alquimia e da Cabala. O mesmo conhecimento dos gregos, que transformariam o politeísmo astronômico da Suméria na mitologia dos deuses antropomórficos. O monoteísmo mosaico é representado por Iavé. Como instância numinosa do rito, a Alquimia incorpora-se ao drama existencial nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, denotando tal dramaturgia o esoterismo dos arquétipos que presidem a representação da Matéria que o alquimista persegue. "No vaso milagroso reside o segredo alquímico", proclamava Maria a Profetisa, "referindo-se ao esperma, do qual nasce o filius philosophorum, a pedra milagrosa." Cf. Jung (Psycologie und Alchemie), onde o autor cita um trecho do livro de Mircea Eliade, cuja leitura serve de base a este breve ensaio e às paráfrases em forma de sonetos feitos a partir dos epigramas retirados do Rosarium Philosoforum e do Scurtinium Chymicum presentes com índice de ilustrações e legendas em Herreros y Alquimistas. A profunda intenção na prática da Alquimia era alcançar na Natureza o núcleo da geração resumida no embrião, que se desenvolve do mesmo modo ad uterum da Terra, a qual o alquimista espelha resumindo os veios minerais do Grande Forno, de onde emerge a consciência, voltada para o fogo primordial gerador de vida. O minerador, o ferreiro e o alquimista praticam experiências mágico-religiosas em suas relações com a substância. O alquimista identifica-se com as matérias-primas da Natureza, o enxofre, o mercúrio, o chumbo, a água, o sal, o fogo, a terra, o sangue, os quais correspondem à Pedra Filosofal, na longa via da operação extraordinária. Os pássaros, os peixes, o homem, o dragão, todos correspondem a essa única fonte, mesmo a vili figura. As crianças brincam com a Pedra Filosofal, afirma a tradição alquímica (ludus poerorum). A ubiqüidade da Lapis Philosophorum é o tema principal do alquimista. O sonho de Zósimo, transformado em água, que tanto impressionou a Jung, corresponde ao "leite da virgem" e à "sombra do Sol". Estes são alguns dos vários nomes da "Pedra dos filósofos" na linguagem secreta, análoga à dos poetas. "O paradoxo da hierofania, conclui Mircea Eliade, consiste em que manifesta o sagrado, incorporando o transcendente a um objeto desprezível". A obtenção da Pedra eqüivale ao conhecimento perfeito de Deus. A opus alchymicum possui analogias profundas com a vida mesma. "O homem portador da Pedra torna-se invulnerável; mantê-la na concavidade da mão, o faz invisível", narra o mito. Assegurar a perfeição da Matéria é o fim do alquimista. O Forno é a sede do Caos primordial, onde perecem e ressuscitam as substâncias. Tal a águia, "que rejuvenesce ao mergulhar no Sol", o alquimista aspira retirar do fogo a alma rejuvenescida com o mercúrio. O corpo é o espelho da alma.
EPIGRAMMA
VIII
Est avis in mundo
sublimior onmibus, Ovum
Prova de fogo do ovo filosófico:
Cujus ut inquiras, cura sit una tibi. lbumem luteum circumdat molle vitellum, Ignito (ceu mos) cautus id ense petas: Vulcano Mars addat opem: pullaster & inde Exortus, ferri victor & ignis erit. Atento, vibra com firmeza a espada. A ave de cujo vôo dentre todos os vôos o mais alto é o ovo, do qual aqui cuidamos, se refere a ti. Pura, a clara protege a fulva gema no núcleo em formação. O embrião resiste ao inimigo, pondo à prova sua força. A gema é ave e o ovo, a forja e o raio do marcial Vulcano a serviço de um deus. Igual ao frango o rijo lutador em sua origem possui o fogo vitorioso, o gládio, que tudo verga, sendo o vencedor. EPIGRAMMA
XIV
Dira fames Polypos
ducuit sua rodere crura,
Tal o dragão ao devorar a cauda,
Humanaque homines se nutriisse dape. Dente Draco caudam dum mordet & ingerit alvo, Magnâ parte sui fit cibus ipse sibi. Ille domandus erit ferro, fame, carcere, donec Se voret & revomat, se necet & pariat. a fome prenuncia o que se mostra como excrescência, excesso a demonstrar o que o dragão, comendo, representa comparado ao virtuoso, que se nutre do sacrifício. Com os próprios dentes o dragão ao morder a longa cauda ingere o ventre. De si descuidado, o alimento ultrapassa a necessária porção. Assim transforma-se em veneno o corpo que ao nutrir-se se devora. Cabe ao homem tornar de ferro a fome, Qual cárcere engolir e vomitar, Pois assim ajustando-se renasce EPIGRAMMA
L
Alta venenoso fodiatur
tumba Draconi,
"O Dragão e a mulher mutuamente
Cui mulier nexu sit bene vincta suo: Ille maritalis dum carpit gaudia lecti, Hae moritur cum qua sit Draco tectus humo. Illius hinc corpus morti datur, at que cruoere Tingitur: Hace operis semita vera tui est. se devoram, cobrindo-se de sangue" venenoso na tumba que ambos cavam prisioneiros da mesma relação escolhida, de tantas alegrias, para morrer cobertos pelo sangue que ao sepultar com seu calor os corpos faz ligar como laços recobertos o fogo que os devora como a atar a alegria do gozo sob o teto a espargir com o rútilo fulgor a tintura que aumenta após a morte: Este o caminho pelo qual se opera, este é de ti o curso verdadeiro. |
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