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Luisa Futoransky
LER AS PEDRAS As cidades, como os amores, possuem diferentes maneiras de se revelar diante de nós. Uma maneira de entender a cidade contemporânea é desentranhar a relação e tratamento com que brinda a suas ruínas. Ler as pedras porque elas são, mais do que nada ou ninguém, depositárias de utopias, caprichos ou ignorância. Os planos das cidades de nosso trânsito definem um esboço que vai de nossas plantas a nosso imaginário que lhes restitui a dimensão única e intransferível da emoção. Que canto de sereia possuem as ruínas, para enganar, geração após geração, os viajantes. Talvez a palavra que melhor convenha para referi-las seja fascinação porque, objeto de horror ou de contemplação, a indiferença lhes é alheia. As ruínas desmentem por si mesmas a frágil pretensão do conceito de obra concluída. Domesticadas, embelezadas ou enigmáticas, simples ou labirínticas, pilhadas ou polidas, conjugam em si, em forma irrefutável o tempo pretérito condicional do vivo para evoluir dentro de um presente mineral, um senhorio vegetal ou também um refúgio atávico e animal. Testemunhos de cuidado ou de barbárie, seu destino é estar afastadas, desde o começo, da função primeira a que as construções foram destinadas por seus arquitetos e contemporâneos. Os esforços para visualizá-las dos peregrinos que convocam, são ímprobos: concebê-las policromas em sua palidez, íntegras em suas fragmentadas mutilações, buliçosas no mercado da vida ante sua desorbitada mudez. Sobretudo dignas, ante o desfile incessante a que a avidez por divisas de nosso tempo as submete. Quase sempre sofrem intermináveis manipulações já que são deslocadas, enterradas e desenterradas com periódica arbitrariedade. As ruínas, como os ossuários, provam a abolição das fronteiras e nacionalismos laboriosamente engenhados. A nova pirâmide do Louvre evocará acaso o espírito chinês de seu arquiteto ou mais a pompa, circunstância e ansiedades de nossa época? O visceral paralelepípedo do Centro Pompidou revelará a arquitetura italiana ou inglesa do final do século XX (por causa de seus criadores) ou o alento libertário que definiu o maio de 68 francês?
Ljubljana tem um rio. Bastante modesto se o comparo com as desembocaduras do Yagtsé ou do rio da Prata mas, para rio que não é de deserto e seca o ano todo menos três dias em que arrasa tudo porque a areia lhe resvala pelo lombo, está normal. É rio para coroá-lo de pontes breves e atravessá-las com passagem de cruzar canal veneziano por passarelas românticas e outonais. Rio pouco navegável, me parece. Gosto das cidades com nomes, dinheiro, consoantes e sorrisos incompreensíveis. Desjejuo com chicória. Os encanamentos do hotel cheiram mal, como meu vizinho no avião. Rapidamente me recordo da roupa íntima de algum amante. Esse cheiro entre úmido e podre que toma a lã uma noite, como se a houvesse levado nas costas por um século um fantasma e não se vai nunca da pele, jamais. Parece, parece Praga, pelo amarelo, o rosa esvaído de creme pasteleiro da praça dos castelos, mas sei que não estou em Praga. Rechonchudos, os bolivianos nas cidades do norte tocam o cuatro, o charango, a quena. De preferência nos finais de semana e próximo dos grandes armazéns. Como chegaram com suas cuecas, suas agudezes, a queimação de suas caras de outros ventos e seus ponchos ao centro de Ljubljana? Quando o inverno crescia onde emigram? Fazem ninho com as cegonhas nos campanários do sul? Na grande praça do mercado muitos postos vendem velas. Círios de cores em plástico vermelho, em vidro branco com cristos com coroa de espinhos e sangrando. De todos os tamanhos. Menos virgens. Pimentões grandes e brilhantes, bordeaux, tinto, verde delicado em grinaldas, como auriflamas, como jóias. Bananas trespassadas. Alguns repetem que as provaram recentemente depois da guerra, para mim os sabores novos foram kiwis, abacates e melões. Ljubljana a de cera, mel e ervas. Próxima está Celje, quem conhece o castelo da Bathory, digo quem conhece porque as pronúncias e os mapas me intranquilizam. Nem toda ruína sombria cobiçou serial killers. Concedo a ti o benefício da dúvida, Celje. Em um quiosque um racimo de homens come arenques às nove da manhã, em outro lugar também do norte vi que deslizavam da mão ao cargueiro, como as focas no zôo, me parece que era um Sábado na rua maior de Estocolmo ou de Roterdã. Porém as pessoas não agradecem. Não me lembro se sonhei ou desejei em Ljubljana. Mas não estou muito segura. Na realidade, não estou segura de nada, exceto de respirar. Às vezes. |
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