No tempo da delicadeza
Angela Gutiérrez lança, hoje à noite, seu novo
livro, Avis Rara, conjunto de 32 histórias curtas, publicado pelas
Edições UFC. São quadros delicados, onde personagens
femininas ganham o primeiro plano, ambientadas numa Fortaleza mais amena
e suave, com certa malícia sem crueldade, muita imaginação
e bem querer
Eleuda de Carvalho
da Redação
Angela Gutiérrez: retratos de mulheres e recomendações
de Moreira Campos (Foto: Thiago Gaspar)
[03 Outubro 02h34min]
Comece pelo começo, embora você possa mergulhar nestas
páginas como quem desembrulha delícias, e tanto faz por que
lado se degusta o doce, o mel. Mas quem recebe o leitor é a menina
azougada, que implicava com a carnavalesca venta de seu Joaquim. Então
vem Bebel, sua prosódia singular, a dar cascudos afetuosos nos meninos
sob sua guarda. Ou esta pacata Virgínia, amando nas madrugadas mornas
os artistas de cinema. Os netos e suas malícias, quando ouviam vovô
Tôni contar a mesma história, ou aquela outra que desejava
a boneca de louça, desbotando dentro de sua caixa, tão perto
e inalcançada.
Mas sempre mostra a carinha e os cabelos dourados a garotinha curiosa,
encantada pelas palavras, como esta, dupla, ''avis rara'', que ela guardava
na sua caixinha de tesouros. O gato Ravenot e sua dona, ''eu, meu bem,
sou livre e desimpedida''. Na calçada, Secunda e Alissa espiam Orson
Welles que passeia, na hora do sol se pôr. Tem ainda a menina das
areias, Marina moça na praia, a empregadinha boseira, a correntinha
de Iara, a saudade de Davi, procurando sua estrela. E a janela de Vitória,
vitalina que nada, uma artista a imaginar.
Angela Gutiérrez abre sua arca de maravilhas, de lá saltam
as estrangeiras, a comprida miss Colbert, que não cabia nos retratos,
a italiana que endoideceu, os sonhos eróticos em francês de
Madame Vieira. E as moças malassombradas, vestidas de branco nas
luaradas do Náutico, os gêmeos Charles e Percival que não
sabiam mijar em pé, a doutora Mocinha muito gordinha no seu fordeco.
Vem de lá a esquecida, a velha morta e sozinha, a noiva de João
Batista, o cemitério. E a menina que não gostava de dormir.
Veja: quando você virar a última página, vai saber,
todas elas, eles, a cidade, pulsam no seu coração.
O POVO - O título do livro seria Boneca de Louça. Por
que a mudança?
Angela Gutiérrez - Foram alguns motivos. Primeiro, notei que,
quando eu falava em Boneca de Louça, sempre as pessoas confundiam
com Canção da Menina. Acho que pelo fato de ser boneca e
menina, juntavam. Aquilo me tocou que parecia uma repetição.
Depois, eu relendo, pensando em outro título, achei que Avis Rara
era bastante significativo, eu já tinha um poema, ''Avis rara'',
na Canção da Menina. E Avis Rara, ao mesmo tempo que já
significava a mulher da boneca de louça, porque a mulher é
uma avis rara, significava também a palavra poética, aquela
que você guarda dentro da caixinha, mais azul do que a pedrinha azul
do anel, como digo no poema. Eu já tinha escolhido o nome novo,
e fui no Estrigas, porque ele tinha feito as ilustrações
quando era Boneca de Louça. Fui pensando na capa, o Estrigas disse,
o que você quiser meu... Dei de cara com este pássaro do Aldemir
Martins, disse, ah, é esse que eu quero, aí o Estrigas, você
sempre gosta das coisas difíceis. Mas telefonou para o Aldemir,
me colocou na linha, o Aldemir conversou comigo, disse que era um prazer.
OP - Gostei demais de você ter mantido nas orelhas de Avis Rara
o texto afetuoso do mestre Moreira Campos.
AG - Tenho muita saudade dele. Na verdade, eu nem digo que amei, eu
amo Moreira Campos. Ele foi um mestre por vários motivos, entre
eles, porque foi muito amigo do meu pai, que graças a Deus está
aí vivo, e é da mesma idade, eles conviveram quando jovens.
Quando me aproximei de Moreira Campos na universidade, ele ficava lá,
a figura do pai, aquele homem muito inteligente, muito ligado à
leitura. Ele era muito afetuoso comigo. Mostrei Boneca de Louça
pra ele, que fez vários comentários generosíssimos,
só mesmo de quem me quer muito bem. Na época (1993) ele publicava
''Porta de academia'' no O POVO, me fez a surpresa de me dizer, minha filha
leia hoje o jornal. Achei que não podia perder estas palavras, este
carinho dele. Queria marcar esta minha ligação forte, e convidei
a filha dele, não só por ser filha mas por ser quem é,
a maior contista do Ceará, de uma sensibilidade finíssima,
a Natércia Campos, para apresentar o livro. Dona Zezé (viúva
do mestre) vai estar lá.
OP - Estes retratos de mulheres, retratos não, que elas são
tão vivas, respiram do nosso lado, enquanto lemos. Mas você
as trouxe de uma época anterior, talvez histórias contadas
por seus avós, seus pais, como naquela passagem de Orson Welles
pela cidade...
AG - Exatamente. Papai sempre comentou comigo o fato do Orson Welles
em Fortaleza, que ele o via de longe, tinha vontade de se aproximar mas
ficava constrangido. Então recuperei para o papai a figura do Orson
Welles. Papai dizia que o Orson Welles sempre ia em direção
à Praia de Iracema ver o pôr do sol, me ficou a idéia,
eu pensava: o que ele veria no caminho?
OP - Podemos falar das velhas, mulheres, moças e meninas de suas
histórias, mas a cidade de Fortaleza é um personagem marcante
nas narrativas.
AG - Tenho um amor profundo por Fortaleza. Digo que sou um bicho meio
raro, o fortalezense de muitas gerações é raro. De
certa forma, este livro é também uma declaração
de amor a Fortaleza de hoje mas sobretudo àquela que meus pais contam,
a que meus avós contavam. aquela cidade mais amena. Fico com a consciência
intranquila de ver a miséria, as crianças sem escola, na
rua, este cinturão de pobreza e exclusão. Fico sonhando que
Fortaleza pudesse se recuperar e ser uma cidade para todos e não
para alguns. A Fortaleza daquela época tinha pobreza também,
mas não tinha a miséria de hoje.
OP - Você me disse que escreve com muito prazer. Esta satisfação
entra em choque na hora de editar o livro?
AG - A parte do sofrimento é esta, só em imaginar a gente
já desiste. Tanto que este Avis Rara dormiu nas gavetas, todo despedaçado,
fragmentado. Depois que juntei, ele ainda dormiu muito, você vê,
o texto de Moreira Campos é de 93. A princípio mandei este
texto para a Secretaria de Cultura, tentando um patrocínio pelas
Leis de Incentivo à Cultura, demorou muito por lá. Depois
fiquei muito desanimada porque soube, por outros artistas, que era constrangedor
você colocar debaixo do braço aquele texto e procurar industriais,
comerciantes, empresários para tentar a publicação.
Não me dispus a isso, esta é a verdade. Cada dia se torna
mais difícil publicar no Brasil, especialmente no Nordeste, no Ceará,
mas a gente tem uma porta sempre aberta, que é a Coleção
Alagadiço Novo, do doutor Martins Filho, o intelectual do século
20 no Ceará, um admirável exemplo. E ele acolheu com muito
gosto o livro. As edições UFC são de excelente nível,
podem competir com livros de qualquer editora. Agora, há o problema
da divulgação e distribuição que uma editora
universitária, realmente, não tem verbas para fazer. Mas,
estando publicado na minha cidade, no meu Estado, me satisfaz.
SERVIÇO
Avis Rara - de Angela Gutiérrez. Coleção Alagadiço
Novo, Edições UFC, 116 páginas. Ilustrações
de Aldemir Martins (capa), Estrigas e Oswaldo Gutiérrez Filho. Noite
de autógrafos hoje, 3 de outubro, às 20 horas, no Salão
Nobre do Ideal Clube. Apresentação do livro pela escritora
Natércia Campos.
UM CONTO
Pele de Cobra
- Cómo pesa un muerto! - e deixou cair pelas estradas a pele
que há tanto tempo a recobria.
Quando era pequena, viu no sítio da avó uma pele de cobra
largada no mato.
- É pele de cobra, menina. A danada sai de dentro novinha feito
menino nascendo.
Ninguém a conhecia, ninguém conseguia ver sua pele de
cobra, losangos de angústia e as compridas listas de medo.
Até que, enfim, ltara a pele - cómo pesa un muerto! -
que lentamente vinha desgrudando de seu corpo.
Como Vênus surgida das águas, renasceu.
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