Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Ailton Maciel


 

O presente da professora

 

Durante muitos anos Dona Gracinha viveu no interior. Professora de muitas crianças pobres e algumas abastadas. Passados os anos, continuava a mesma, bondosa e sorridente, embora os cabelos brancos denunciassem os seus quase 60 anos. O seu epiderma, já metamorfoseado pelo tempo e pelas vicissitudes da vida, era prova de muitos anos de trabalho árduo e penoso. Porém não lhe faltavam sorrisos e gestos de amor para cada criança.

Já aposentada, ainda dava aulas, quase que sem remuneração, a filhos de operários. Sempre encontrava uma solução para todos os problemas. “Dona Gracinha, eu não tenho lápis, porque papai não...” Ela não deixava o menino prosseguir. Conhecia os problemas de cada um deles. A todos tratava sem distinção. A posição social, a cor, a conformação física, o traje, a dentadura, tudo o mais para ela passava a segundo plano. Por isso, os pais e as crianças adoravam Dona Gracinha. Simples e humanitária, gostava das crianças como se fossem seus filhos, que não os tinha. Encontrara, é certo, quando jovem, vários pretendentes, porém a todos deu uma resposta plausível e bem intencionada: muito jovem, tinha obrigações a cumprir. O tempo foi correndo, e ela nunca se dispusera para o matrimônio. Não que o renegasse. Não, ao contrario: achava o ato mais belo da vida. Mas havia a escola, as crianças pobres... E, casando, o marido poderia interpor-se entre ela e as crianças. Não, melhor não arriscar. E nunca se arrependeu do celibato. Embora solteira, tinha muitos filhos – seus alunos. Quando lecionava no interior deixara muitos rapazes e muitas moças, senhores comerciantes, senhoras casadas, que foram seus discípulos. Hoje, quando raras vezes se dispunha a fazer um breve passeio pelos lugares onde lecionara, muitas das vezes via homens chorarem de alegria e de tristeza, agradecendo-lhe os ensinamentos recebidos quando crianças. E a todos ela visitava. Era seu dever, achava. Porém chorava quando via pobres crianças raquíticas e barrigudas esquivarem-se do seu afeto. Mães que há trinta anos foram suas alunas hoje parecerem espectros humanos – mais velhas do que ela. Mulheres barrigudas, empalemadas e sifilíticas. Homens morrendo de inanição, trabalhando da madrugada ao pôr-do-sol, vergados ao peso do sofrimento, encabulados, tristes e semimortos. Crianças – suas amadas crianças – raquíticas, enfermas, bochechudas, morrendo, morrendo... morrendo, sim, lentamente, de fome e de doenças. Dona Gracinha chorava. Tinha ímpetos de pegar uma autoridade e levá-la a ver aquele inferno. Continha-se, entretanto, a velha professora. Era do amor, da calma e da paz; nunca do ódio e da violência. Ajudava-os, então, no que podia: dinheiro, amor, carinho ou conselho. Dona Gracinha: boa e piedosa. E regressava à capital, triste e pensativa.

Três de fevereiro: dia inesquecível para todos os alunos de Dona Gracinha – o dia de seu aniversário. Não se sabe quem divulgou a notícia nem tampouco como tomou conhecimento daquela data. O fato é que para ela aquele dia parecia mais triste do que os outros. Não gostava de manifestações públicas. Não gostava, repetia, era velha, esquecessem tal coisa. Sinceramente, não gostava. Os meninos sorriam e no dia três lá estavam a cantar "parabéns pra você” e a trazer-lhe humildes presentes: uma galinha, um pato, um sabonete, e outras coisinhas.

Chegando tal dia, os alunos já haviam preparado a humilde cerimônia de aniversário. Todos sentados, quando entrou D. Gracinha. Ergueram-se e começaram a entoar a canção propícia e invariável do “parabéns pra você”. Após isso, a professora proferiu pequeno discurso de agradecimento. Passaram, então, a colocar os presentes, um a um, sobre a mesinha: um bolo, um sabonete, uma pasta dentifrícia, uma escova.... Um dos garotos, o último a dirigir-se à mesinha, saiu a passo lento. Levava às mãos um embrulhinho fino e comprido. Como o papel fosse pouco, todos puderam ver facilmente o conteúdo: um pão. Todos, sem exceção, riram largamente. Dona Gracinha pediu silêncio: censurou a atitude dos meninos. E, sem conter os sentimentos, pôs-se a chorar. Os garotos se fizeram sérios e calados. “Este é o mais valoroso presente que recebi durante toda a minha vida, porque dado de coração. Crianças, nunca deveis zombar do próximo. Vejam: por causa de vocês ele esta chorando”. E, de novo, chorou ela. Os alunos baixaram a cabeça. Dona Gracinha foi até à carteira de Roberto e disse: “Meu filho, não chore. Eles não sabiam que iam ofender a mim e a você”. E deu um beijo no rosto do menino.
Setembro de 1968.

 

 

 

 

 

12.07.2005