Carlos Augusto Viana
Cultura,
4.9.2005
Crônica para o cantador de sua
aldeia
Sem lide, por favor! Quebrando protocolo e regras
jornalísticas. Escrever sobre Airton Monte em ocasião do
lançamento de seu livro “Moça com Flor na Boca”, hoje às
20 horas, no Ideal Clube, merece mais que uma notícia de
jornal. Porque, como ele mesmo diz, com humor impagável,
“quem canta bem sua aldeia, canta bem o mundo”. Está
dito e ninguém ouse discutir. A máxima é do cronista de
Fortaleza, além de ficcionista e poeta. O tempo que seus
textos correm as linhas do jornal “O Povo”, diariamente,
ele tentar pescar da memória — “nove ou dez anos”,
arrisca.
A tal “Moça com Flor na Boca” é uma
coletânea com pouco mais de sessenta textos, entre
tantos guardados nas reminiscências da memória mais que
perfeita - um tipo de arquivo recém-descoberto. “Eu
coloco todos os textos que recorto num saco de lixo com
naftalina. É o melhor arquivo que eu descobri”, revela.
O amigo Dimas Macedo - você sabe que ele é louco? -
pergunta, carregou consigo cerca de três mil crônicas
quando tirou férias. Tanto mexeu,
cutucou, peneirou “papéis mofados”, que resultou no
livro. “Ele me deu as crônicas escolhidas para saber o
que eu achava”, diz. É assim no companheirismo, à
vontade, que o cronista fala do livro. À vontade também,
ele fala dos amigos de longas datas, personagens vivos
da vida de Airton e dos textos do cronista; Dimas
Macedo, Carlos Augusto Viana, Moita, Tururu, e outros
tantos entre as calçadas da Gentilândia à Parquelândia.
A matéria-prima das crônicas é simplíssima de encontrar.
“Basta eu conversar com os meus amigos e mandar bala”,
explica.
Airton Monte é dos bons moços, que acha
“frescura” essa lenga-lenga de escritor reclamar do ato
de escrever. “Escritor tem mania de sacralizar o que
escreve, dizer que é doloroso...”, resmunga. É que
Airton é de outro naipe de escritores e cronistas, que
adoram escrever, mesmo que o tema seja bizarro e triste,
quanto as mazelas brasileiras estampadas nos olhos das
crianças que perambulam entre esquinas e sinais de
trânsito. Aliás, são essas, as mazelas, o que mais toca
o cronista.
Da guerra anunciada contra Bagdá, nos
primórdios de 2003, ele lançou olhos tão tristes quanto
o da infância miserável do mundo, infância em guerra. Da
coletânea, “Os Olhos das Crianças de Bagdá” é a crônica
preferida de Airton. Ele pensou nas crianças “porque não
há lugar onde se viva mais em guerra do que aqui”,
justifica. Os olhos de farol dessas crianças são as
luzes sobre o resto do mundo sujeito a intolerância e ao
capital. “O que me importa agora são os olhos das
crianças de Bagdá, a quem roubaram o tantinho que ainda
lhes restava de infância. Os olhos das crianças estão
gritando: — eu acuso:
— Os olhos das crianças de
Bagdá são iguais aos olhos das largadas pelas ruas desta
cidade por onde vivo, transito e me morro de amores. Em
suas pupilas reluzem medo e ódio de todos e de tudo. E
eu me pergunto, já sabendo a resposta. Até quando haverá
crianças com os mesmos olhos que vejo agora nas crianças
de Bagdá? Eis o que me assombra a alma e o que
escrevo”
Não tem feitiço nenhum. O que acontece é
que Airton Monte é um cidadão que ainda gosta do ser
humano, do inusitado de cada dia e fala disso com
orgulho, mas sem esnobismo. E olha, que ele não é
qualquer um. É médico psiquiatra, trabalha com gente de
carne e osso como os seus personagens urbanos, de bares,
futebol e alpendres de fim de tarde. Ele está pronto
para qualquer conversa e fala com o desconhecido, como
se o conhecesse há anos. Por isso gastamos o tempo para
falar do autor, antes do livro, porque o cronista começa
pela alma e depois se espalha pelo resto. Nessas
conversas, ele não perde as comparações para ser melhor
entendido. Esse exercício também se aplica quando fala
dos seus textos. “A crônica pode nascer de parto normal,
fórceps, quando o cronista tem um branco e cesariana”,
define. E isso não é fala publicitária para a imprensa.
Ele é assim com todos. “Meu telefone é disponível para
quem quiser e agora também sou um cronista pós-moderno,
com e-mail e tudo”, brinca. “Com a internet ficou mais
fácil. À tarde, alguém já liga elogiando ou
esculhambando. Quem sabe eu não publico um dia essas
respostas às crônicas”, planeja.
Para o
lançamento do livro, hoje, Airton Monte estará simples e
risonho a espera dos amigos. “O poeta Carlos Augusto
Viana. O Ricardo Guilherme (ator e diretor teatral)
também. Me disse que vai fazer uma performance para uma
crônica minha. Sabe como é. Ator não gosta de diretor,
por isso eu não me meti. Vamos ver lá o que ele
preparou”, diz.
Trecho
“A esta hora tardia em que escrevo, o dia de amanhã
já se anuncia no melancólico cantar de um galo insone,
exilado na cidade grande. Claro que o mundo não pára
enquanto dormimos. As coisas continuam acontecendo,
seguindo seu próprio ritmo.
Quem sabe, em algum
lugar, neste determinado momento, um bebê tenha acabado
de nascer e a humanidade se engrandeceu mais um pouco,
envolta no doce mistério da carne, como se nós todos
milagrosamente ressurgíssemos do nada.
Na mesma
escala do tempo, num botequim da periferia compadre
Raimundo matou compadre Francisco por causa de uma dose
de cachaça pedida e recusada. Em uma cobertura luxuosa
da Avenida Beira-Mar, um marido (respeitável cidadão)
espancou outra vez a mulher só porque ela abraçou e
beijou um velho amigo de faculdade. Trancado no quarto,
olhos fixos na tela do computador, o filho de 5 anos
sente o ódio envenenando sua dolorosa
meninice.
Já no centro da cidade, que jamais
dorme, maus meninos de boas família ateiam fogo a um
mendigo bêbado, só pra tornar a noite menos chata. Pela
internet, um casal ainda jovem se ama por
correspondência e usam nomes falsos e trocam retratos
fictícios.
Num sobradinho branco, de janelinhas
azuis recém-pintadas, à beira do mar, um homem e uma
mulher celebram no altar de Vênus sob as bençãos de
Afrodite. Num terreno baldio, uma criança é estuprada e
morta pelo vendedor de picolés.
Na praia de
Iracema, as vendedoras de flores poetizam a noite
sórdida. Dentro de um mesmo universo multifacetado, há,
ao mesmo tempo, uma lua-de-mel, um velório de pai rico
onde os filhos choram com advogado do lado e com firma
reconhecida.
AIRTON MONTE: “A
crônica pode nascer de parto normal, cesariana,
a forceps ou quando o cronista tem um
branco”
Foto de André Lima
Moça com flor na
boca
Airton Monte ocupa, no Ceará, o posto de cronista
maior. Senta-se, agora, em iluminada cadeira - a mesma,
antes, habitada, hierarquicamente, por João Brígido,
Caio Cid, Milton Dias e Ciro Colares. Não há quem não
lhe reconheça a janela em que, de quando em vez, se
debruça para, de um solar de nuvens, contemplar as
nossas dores, as nossas alegrias ou, tão-somente, os
filamentos que o cotidiano nos oferece em seu estranho
banquete. É, pois, um amigo de alpendre. E preserva o
que, em nós, converte-se em sagrado: o apreço à amizade,
a flor nos túmulos, os corredores da memória, um
fragmento de tarde, o desejo e suas vicissitudes, o
digladiar-se entre Eros e Thanatos, o cotidiano
familiar, a literatura e outras artes...; enfim, a
condição humana, quer a solidão da moça, quer os olhos
das crianças de Bagdá.
O ensaísta Massaud
Moisés, em seu ´Dicionário de termos literários´, (São
Paulo: Cultrix, 1974, p. 131-133) exprime, em síntese,
as várias acepções do vocábulo "crônica" ao longo dos
tempos. No início da era cristã, designava uma relação de
acontecimentos, cronologicamente ordenados, simplesmente
registrados, sem o aprofundamento das causas, tampouco
interpretados. A partir do século XIX, passou a rubricar textos que
só longinquamente se vinculavam à forma primitiva de crônica, pois,
ostentavam, agora, estrita personalidade literária. A crônica, em
sua feição moderna, via de regra publicada em jornais ou revistas,
para, depois, ter uma seleção impressa em livro, concentra-se num
acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor, (um
conflito bélico, a violência urbana, uma cena lírica, um ser, um
objeto, um fenômeno natural etc) em introspecções (o
estar-no-mundo, os sentimentos, os sonhos) ou em motivos
encomiásticos etc. É, pois, uma expressão literária
híbrida: pode assumir a forma de alegoria, necrológio,
entrevista, confissão, diálogo etc, bem como girar em
torno de pessoas fictícias ou reais. Assim, a crônica
habita entre a poesia e conto: implicando sempre a visão
pessoal, subjetiva, ante um fato qualquer do cotidiano,
a crônica estimula a veia poética do prosador; ou dá
margem a que este revele seus dotes de contador de
histórias. No primeiro caso, pode resultar num autêntico
poema em prosa; no segundo, num conto.
A crônica
de abertura do livro ´Moça com flor na boca´, de Airton
Monte, (Fortaleza: Editora UFC, 2005)- e que a este dá o
título, já faz uma síntese dos elementos recorrentes do
autor: o lirismo, a ironia mordaz, o jogo dos contrastes
e a circularidade: A esta hora tardia em que
escrevo, o dia de amanhã já se anuncia no melancólico
cantar de um galo insone, exilado na grande cidade.
Claro que o mundo não pára enquanto dormimos. As coisas
continuam acontecendo, seguindo seu próprio
ritmo.
Quem sabe, em algum lugar, neste
determinado momento, um bebê tenha acabado de nascer e a
humanidade se engrandeceu mais um pouco, envolta no doce
mistério da carne, como se nós todos milagrosamente
ressurgíssemos do nada.
Na mesma escala do tempo,
num botequim da periferia, compadre Raimundo matou
compadre Francisco por causa de uma dose de cachaça
pedida e recusada. Em uma cobertura luxuosa da Avenida
Beira-Mar, um marido (respeitável cidadão) espancou
outra vez a mulher só porque ela abraçou e beijou um
velho amigo de faculdade. Trancado no quarto, olhos
fixos na tela do computador, o filho de 5 anos sente o
ódio envenenando sua dolorosa meninice.
Já no
centro da cidade, que jamais dorme, maus meninos de boas
famílias ateiam fogo a um mendigo bêbado, só para tornar
a noite menos chata. Pela internet, um casal ainda jovem
se ama por correspondência e usa nomes falsos e troca
retratos fictícios.
Num sobradinho branco, de
janelinhas azuis recém-pintadas, à beira do mar, um
homem e uma mulher celebram no altar de Vênus sob as
bênçãos de Afrodite. Num terreno baldio, uma criança é
estuprada e morta pelo vendedor de picolés.
Na
Praia de Iracema, as vendedoras de flores poetizam a
noite sórdida. Dentro de um mesmo universo
multifacetado, há, ao mesmo tempo, uma lua-de-mel, um
velório de pai rico onde os filhos choram com advogado
ao lado e com firma reconhecida. Ah, quantos dramas,
quantas tragédias acontecendo agora enquanto escrevo,
inclusive uma canção que se solta pelo ar, uma estrela
cadente, uma nuvem esculpida caprichosamente pelo vento,
um homem solitário recitando poemas de amor e seu
coração gritando vida, meus olhos sonhando com a mágica
visão de uma moça linda, com um sorriso de jardim
suspenso da Babilônia e, certamente, irremediavelmente
com uma flor na boca, que o poeta colherá
inevitavelmente, imune ao veneno de todos os
espinhos.(p. 7 e 8 )
As passagens ´A esta
hora tardia em que escrevo...´ (1º §) e ´Ah, quantos
dramas, quantas tragédias acontecendo agora enquanto
escrevo...´(7º§) apontam um elemento inerente à
composição de Airton Monte: a circularidade; isto é, os
enunciados estabelecem entre si vasos comunicantes, e a
escritura resulta de um entrelaçar-se de fios, à
semelhança de uma teia. Tecelão, o Autor possui um
fio-mestre; deste, podem desprender-se outros fios, mas
àquele estarão subordinados.
Cronista, o autor se
apresenta ao leitor como um homem comum, que também luta
pela sobrevivência, que, como qualquer outro homem,
trabalha, ainda que destoe do quadro geral: ´o dia de
amanhã já se anuncia´ à cidade, mas para ele, cronista,
é uma ´hora tardia´, pois, da mesma forma como aquele
´galo´, ele, também, é um ´insone´ e um ´exilado´, em
sua ´caverna´ - espaço de sua criação.
A ´máquina
do mundo´ o faz tecer uma série de reflexões acerca dos
contrastes que compõem a crosta do cotidiano. E, como
´As coisas continuam acontecendo´, passa a colher,
aleatoriamente, alguns episódios, configuradores do
espetáculo humano, estabelecido no grotesco, uma vez que
ao lado do belo reside o feio; do puro, o impuro; da
virtude, o pecado etc.
Assim, no mesmo instante
em que nasce um ´bebê´, fazendo com que a humanidade se
engrandeça ´no doce mistério da carne´, num ´botequim da
periferia´, um compadre matou o outro, por motivo banal.
Mas, como a violência está entranhada no homem, e
ultrapassa a fronteira da miséria social, numa
´cobertura de luxo´, um ´marido´ - ironicamente composto
com um ´respeitável cidadão´ - espanca, também por
motivos banais, a esposa, enquanto em outro quarto,
preso ao computador, o filho, criado na abastança, já
destila ´ódio´, reconhecendo o absurdo de sua infância
infeliz.
Concomitantemente, no ´centro da cidade,
que jamais dorme,´ porque abriga o lixo social -
prostitutas, travestis, trabalhadores noturnos etc -,
´maus meninos de boas famílias ateiam fogo a um mendigo
bêbado, só pra tornar a noite menos
chata´.
(Nessa passagem, o cronista relembra um
episódio que, em verdade, aconteceu em Brasília: jovens
de classe média alta - todos estudantes - atearam fogo
ao corpo do índio Galdino que dormia em um banco num
ponto de ônibus, já que se perdera dos companheiros -
vieram a uma audiência no Planalto - e esperava
encontrá-los ao amanhecer. Os jovens - assassinos do
índio - declararam, à época, que fizeram aquilo porque
estavam entediados.)
Como se vê, não se tratou de
um gesto imotivado. É certo que, em relação à vítima,
eles não cultivavam qualquer sentimento de ódio, de
vingança etc. Na pós-modernidade, o consumo chega a um
ponto de reificação que se torna monótono; desse modo,
eles consumiram uma imagem que eles mesmos produziram: o
desespero do índio em chamas - um espetáculo visual que
tem, assim, relação com o consumo; pois, afinal de
contas, estavam ´entediados´.
A imagem do ´casal
ainda jovem´ que se ama por correspondência e usa nomes
falsos e troca retratos fictícios´ remete a uma
problemática da contemporaneidade: a teatralidade
social, a dificuldade de comunicação, a artificialidade
das atitudes. A sexualidade, ainda que esteja ligada à
verdade individual, é escorregadia, imprecisa e
desemboca em dúvidas e em interrogações. Se num
´sobradinho branco´, um casal celebra o amor liberto das
convenções sociais, num ´terreno baldio, uma criança é
estuprada e morta´.
Airton Monte, em muitas
passagens de suas crônicas, entrega-se ao poético e nos
brida com imagens surpreendentemente belas: ´Na Praia de
Iracema, as vendedoras poetizam a noite sórdida´. As
´flores´, no espaço noturno, substituem as palavras de
amor e de amizade, e estes sentimentos, confirmando o
paradoxo humano, palmilham, na ´Praia de Iracema´, o
mesmo território das drogas, do álcool e da
prostituição.
Por fim, em meio a canções,
estrelas, nuvens, o poeta sonha ´com a mágica visão de
uma moça linda... com uma flor na boca´ - a ´flor´ surge
em toda a sua força lírica, como símbolo de esperança,
mesmo que frágil, a insurgir-se contra os descaminhos do
mundo, a desumanização. A ´moça´, trazendo na boca uma
´flor´ é o quadro da promessa de renovação tanto do
mundo quanto do coração do poeta, que, ´imune ao veneno
de todos os espinhos´, colherá aí o seu grão de
beleza.
Airton Monte é um cronista consciente de
seu papel. Sabe, exatamente, a dimensão de seu nome na
cidade. Tem consciência da repercussão do que expõe em
seus textos. Escatológico, convive com a consciência da
decomposição de tudo, do destino do perecível, por isso,
de quando em vez, abraça a efemeridade.
Airton
Monte escreve em ziguezague; desse modo, um de seus
procedimentos é o de eliminar verdades absolutas; e
brinca com o leitor, ao conduzi-lo por caminhos falsos
ou rotas incompletas. Funciona mais ou menos assim:
apresenta um argumento, enumera justificativas e finge
completar o pensamento; mas apenas finge completá-lo,
pois, logo em seguida, toma um outro
rumo.
Finalmente, ressalta-se o discurso
intertextual como uma das marcas de seu discurso
literário, uma vez que é um leitor voraz e carrega
dentro si, entrelaçados, fragmentos de tantas léguas de
livros; bem como de canções, amante que é de jazz, de
blues, da bossa-nova, do samba-canção, dos boleros
etc.
Carlos Augusto
Viana Editor
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