António José Maldonado

Voltaremos aos Nomes
                   A Saint-John Perse
                           
                   
        Voltaremos aos nomes
- quantos quantos nomes que se adiam -
mas voltaremos aos nomes de todas as ur- 
bes e de todas as crias
à servidão de um povo      às túnicas dos
vivos 
aos abismos da anatomia voltaremos 
que dizer do corpo e seus assombros 
voltaremos à boca 
ao seu cheiro de prelo e de correio 
mensageira do verbo 
do carro com locatário - que destino? 
        Voltaremos ao pouco estuque ins-
talado na mão no braço no pé rasteiro
ao ritual das unhas e à orelha de per- 
meio      aos quantos cinco sentidos. 
        Voltaremos às rugas e ao seu corropio
ao sangue deslizante      à matéria da nudez
à terra parturiente em seu gemido
à grande sala de vagarosa amplidão
aos rios - longos longos rios do tempo -
e à sua caligrafia 
fartos rios com vogais e correntes 
e aos mares      a todos os mares pio- 
neiros 
ao seu impulso de espuma e de navios 
aos cais de todas as esquinas 
e de marinheiros esguios. 
         E como responder ao branco-azul aglo-
merado das águas
a esse coração de espaços cegos 
líquido sôfrego que flutua entre o peito 
da grande muralha e o rancoroso olhar 
da audácia.
        Mentiríamos se não disséssemos
que ao lume tumefacto voltaríamos
a todo o lar erguido sobre a técnica an- 
tiquíssima do fogo      aos seus exportado- 
res e expectantes incêndios
ao rebanho das coisas voltaremos 
à liturgia polémica do galo o pórtico das
manhãs abrindo 
à tralha da casa      à alvenaria e ao tijolo 
à trave abandonada       ao dormitório e às go- 
teiras envolventes 
ao sono das papoilas      às madeiras que es- 
talam na noite a desoras 
e à sem razão de um choro 
ao lixo nocturno voltaremos 
às litanias      aos atalhos e oficinas 
às litografias 
        - quantos quantos nomes - que sei eu?
aos bonzos e muitas bandejas onde serví-
ramos cordeiro voltaremos 
à punição do tempo e às gárgulas da paz
à letra sem acerto e à clepsidra escorrendo 
aos correctos archeiros e a outras tantas 
coisas repetidas voltaremos
        Mas que sei eu?
voltaremos ao corpo e seu destino
às cidades costeiras e aos forasteiros
que fomos e seremos 
ao coro dos navios e seu destino 
aos subúrbios das galés e seu destino 
aos líquidos retiros voltaremos 
aos estendais da íris onde alugamos so- 
lertes sonhos e as janelas vagueiam 
à formiga e ao seu minúsculo miolo de  
justiça      aos baldios e pradarias 
à cabra cuspida do monte 
aos búfalos e garanhões da noite 
ali onde a égua prenhe do vale relincha 
e o êxtase fermenta 
aos olhos reclinados em pompas e vaivéns de 
ventos
sangue de bacelo no despojo e nos rápidos
prodígios 
ao dorso suculento junto à violência do 
potro voltaremos 
aos arcos ocultos      aos destroços do dia 
aos cachos viris de sumo sob alpendres 
aos vitrais e rústica alfazema 
às tréguas nas batalhas      aos letreiros va- 
zios     às insígnias das nuvens - que Sibilas? vol- 
taremos 
ao parapeito e preceitos do céu 
e que sei eu?     aos anjos e sua versão de
humanos      voltaremos a Deus e à sua ri- 
gorosa altura      ao pavor da Beleza
à secundária cultura da morte
ao fedor do aterro      e à existencial ma-
gnólia de todos ignorada
voltaremos ao ciclo e ao terreiro de todas
as palavras geradoras do primeiro dia e do fim.
 
 
Do livro "Voltaremos aos Nomes" - Inédito em papel e tinta
 
Remetente : Maria Alice Vila Fabião

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  20  de Março de 1998