Antônio Mariano
Lima
As Águas Duras de Germano Rocha
O ensaísta
Hugo Friedrich declara, no seu a Estrutura da Lírica Moderna, que
a dicção "européia do século XX não
é de fácil acesso"; que essa lírica "fala de maneira
enigmática e quase obscura". E cita, entre outros, os poetas Rilke,
Apollinaire, Perse, Lorca, Yeats e T. S. Eliot.
Transferindo
as observações do crítico para cá, apontaríamos,
no panorama nacional, Murilo Mendes, Nauro Machado, Afonso Ávila,
os irmãos Campos, Décio Pignatari na fase atual, sem falar
na experiência concretista e seus desdobramentos.
Na Paraíba,
para nos determos em alguns, lembraríamos Augusto dos Anjos, Políbio
Alves, Juca Pontes, José Antônio Assunção e
Abrahão Cost'Andrade.
O salto da
poesia européia ao pequeno estado nordestino serve ao propósito
de introduzirmos Germano Rocha, poeta cearense radicado há dez anos
entre nós, e sua segunda experiência poética "Estalactites
do Silêncio". Dividido em cinco partes (O começo, O corpo,
A solidão, A morte e Pós-escritos), o livro tem 52 poemas,
exercitando temas que variam da temática amorosa à social.
Retomando
o raciocínio seguido por Hugo Friedrich, a poética de Germano
Rocha também não é de fácil leitura. Em algumas
peças, temos a impressão de que o poeta as fez para si mesmo
esperando que as tomássemos dele ao decodificá-las. O que
afinal de contas é a dinâmica da relação público-artista:
toda leitura é uma apropriação de um discurso nem
sempre ou quase nunca coincidindo aquilo originalmente concebido.
O poema homônimo
abre em "O começo" esse Estalactites do Silêncio. São
estrofes angustiadas, quase desabafo, a constatação de um
quadro imposto, o inefável, a dificuldade de quebrar as barreiras
do incomunicável, onde pouco podemos fazer para mudá-lo.
A propósito estes versos, à página 17: |
As estalactites do silêncio
vazio incêndio
vilipêndio
ablação. |
Nada melhor
do que eles para representar a impotência e ao mesmo tempo a obstinação
do escritor diante do processo criativo, o sofrimento para dar origem ao
novo ser partindo da matéria bruta do papel em branco até
o objeto texto. A expressão "Vazio incêndio" quer significar
a alegria passageira de um achado que não valeu; "vilipêndio",
o desprezo desse mesmo achado e finalmente "ablação" que
no estado de dicionário quer dizer "tirar por força, ou seja
o ato renegado de insistir na busca daquilo que ainda não existe,
a tentativa de arrancar no nada o novo.
"O corpo",
parte seguinte do livro atem-se ao palpável, ao que existe ou existiu,
que alegra, entristece ou simplesmente arrebata pateticamente à
sua constatação. Veja-se o poema "Ciúme": |
Lavar as brasas na língua
serventia
de loucas ladainhas
nômades
na ventania
assim
confuso olhar
perdido no pranto
pântano
do beijo
derradeiro
soluços engasgados
nas tripas
do ciúme
encalacrado
em migalhas
de amor. |
Atente-se
no inusitado dessa construção: "lavar as brasas na língua",
com o seu predicado "serventia de loucas ladainhas nômades". É
assim que Germano começa descrevendo esse sentimento primitivo
e universal que é o sensação de posse ameaçada,
essa querela sem sentido vagueando sem residência fixa. Tal qual
nos flagramos quando somos tomados por ele. E "lavar as brasas na língua"
é uma imagem muito eficiente para retratar esse estado de
espírito. Trata-se da própria incapacidade de se conter,
queimado pela dolorosa inquietação; ou, em se contendo, sofrer
mais. O eu lírico do poeta parece fechar os punhos e trincar os
dentes quando reconhece que deixou de compartilhar da comunhão com
o outro na sua totalidade ficando apenas detentor "do ciúme/encalacrado/em
migalhas/de amor".
No poema "Fiapos",
página seguinte, encontramos o poeta detido na parte externa do
órgão genital feminino. Nesta primeira estrofe, à
maneira dos concretistas, é como se contemplasse o objeto desejado
num exercício de alçar vôo: |
V-ul vul vul
v-a va va
vul-va
vulva
uva |
Como se,
depois de bater asas e subir ela se desequilibrasse e caísse na
sua boca - como uma uva.
Em "Rastros"
(página 26), depois de vagar à toa na "perdida madrugada//rastros/seculares/de
vaginas orvalhadas". Lembra-nos o ritmo de noctívagos e carentes
de afeto que, embriagados, varam noites à procura de amor para,
no fim da jornada, encontrar apenas o sexo amanhecido da prostituta, que
o poeta, sublimando chama de "vaginas orvalhadas".
A identificação
do objeto do desejo, o lamento da perda e do desencontro numa eqüidade
de "lágrimas (que) perturbam os porões do rosto", os "corpos
apocopados de pudor/cravados de bocas/sangrentas", a "compota de beijos",
o "sumidouro do gozo" que nem sempre aflora completam as grutas de "O corpo".
"A solidão",
terceira parte, é onde efetivamente a angústia se corporifica: |
A luz
a sombra
imagens
movimentos
desacordes
tons calados
escuridão
o impacto
do vento
ao relento
dissabores
cíclicos
perdição
armadilhas
grutas
esconderijos
no solitário beco
sem saída
podridão
fugas
grades
silêncio
no orvalho
o orgasmo
reflexo delirante
tolos todos sempre
solidão. |
As piores
luas e suas fases. Como Augusto dos Anjos bebendo um pessimismo extremo
em Shopenhauer, o poeta perdeu-se em desvãos e curvas reconhecendo
"saber de ontem/que hoje/pouco útil é/ o trilho/no labirinto
da solidão" . "E até a puta de meus sonhos morreu" ( página
43).
"Gotas de
Ar" (página 52), privilegia o elemento sinestésico. Aqui,
como em outras passagens, Germano nos dá uma mostra de seu dom de
construir boas imagens e lidar com o inusitado, o que nos leva ao estranhamento,
matéria essencial da atmosfera poética. No mesmo poema encontramos
"alfinetes de prantos" e "sombra aos pedaços": |
Vela
ilumina
gotas de ar
no oco do beijo
vela
derrete
alfinetes de pranto
no bojo da alma
angu-de-caroço
tristeza
cisma
ser
sombras
aos pedaços. |
A solidão,
com efeito, é um bom material para ser abordado em todas as artes
porquanto faz parte da existência humana. É um dos temas universais,
que não se esgota e depende apenas do tratamento que recebe. Como
observamos em Estalactites do silêncio, é um assunto que ponteia
todo a obra.
"A morte",
quarta parte do livro, deveria ser o fim de tudo. Ou, pelo menos da coletânea
de poemas. Mas não é. Não acabamos aqui. A morte é
somente um detalhe. Que conta e muito quando o que se quer é
explorar as matizes que o tema oferece. E mais do que explorar: denunciar,
sensibilizar. Em "Carro de boi"(página 64), poema de fundo social,
o lado lúdico não é desprezado, como toda Arte ( e
aqui grafo arte com A maiúsculo). A recorrência às
sílabas anasaladas como OM ( de fome) AN ( de rangem) INHO ( de
caminho), ÃO (de cambão e embrião), IN (de destino)
e ÃE (de mãe), sugerem-nos o som contínuo do girar
lento das rodas deste veículo: |
O carro de boi
esqueletos
de cana
feudal
de fome
fome de fome
rangem de fome
os ossos do carro de boi
no pó
do rastro da roda
círculo
de fome
no caminho do carro de boi:
boi carreiro
boi de cambão
grave embrião
do nada
da fome
os bois de esqueletos
destinos
de fome
de crianças
nas mães esqueletos
bois de fome. |
Aqui é
certamente a parte mais rica em poema com tema e tratamentos variados.
Em "Cor de rosa" (página 65), Germano explora o minimalismo da "mosca/petrificada/no
lençol/cor-de-rosa". Em "Honra"(página 67), estamos diante
de um possível duelo para defender brios feridos como "olhos fuscos/arrenganhados/no
outono". "Noite"(página 68) também traz identidades semânticas
com a Morte. Em "Natureza morte" (página 72), em vez de frutos partidos
e expostos vemos um defunto. "Tons azuis"(página 75), é o
melhor poema para encerrar este ciclo. A figura de estilo de que o poeta
lança mão é a ironia. Logo percebemos que de azul
os versos não tem nada. Antes o vermelho ou o negro funesto: |
As vísceras
saltam da boca
aberta
inútil
em tons azuis
o grito sufocado
em pânico
emporcalha
o tapete
da sala de estar
fração de instante
fruição aviltante
do beijo roubado
natureza
cem porcento
morte. |
Na última
parte do livro, Pós-escritos, Germano que nos convencer que
existe poesia após a morte. E de fato está certo. Mas com
poemas que não se livram da alusão à tragicidade,
caso de "Rastilho" e "Prisma", se bem que este último termine acenando
para "um espanto de vida".
Afirmamos
no início fazendo que a poesia de Germano Rocha não era de
fácil leitura. Alguns poemas sseguem tom e ritmo de um fluxo de
consciência, quase escrita automática com associações
mais jogo de palavras, o puro e simples ludismo verbal do que raciocínio
lógico. Há também a forma inconvencional do corte/verso,
o vocabulário rebuscado, as imagens estranhas, de certa forma inacessíveis
ao leitor comum, não muito afeito às manhas e roupagens da
linguagem poética. Mas vemos com T.S.Eliot que a poesia pode comunicar-se,
ainda antes de ser compreendida.
Embora não
se trate de um poeta acabado, como a minha, a dele, como toda poesia em
construção, Germano não se apresenta como colecionador
de pérolas mas não há negá-lo que seus poemas
atingem a condição descrita por T. S. Eliot, a partir do
momento em que se instala ou não a cumplicidade com o leitor.
Do que retratam
as peças deste livro poderíamos encontrar similitudes com
aquela mesma guerra sem testemunhas de que nos fala Osman Lins: a formação
do escritor em segredo, o seu processo criativo, o seu longo aprendizado;
é o próprio Germano Rocha desde o início de
sua juventude, pacientemente tentando forjar novas expressões, errando
muito e aprendendo, a água mole em pedra dura, batendo sem pressa,
num moto-contínuo até vazar o inefável, a ausência
oponente.
Fim de primeira
aventura. Na leitura do texto literário trabalhamos com a especulação
e podemos ir além ou ficar aquém de onde chegou o autor da
obra. Este e seus futuros leitores haverão de perdoar-me nas faltas
e excessos. Genialidade seria em algumas horas de leitura lograr se aventurar
pelas mesmas cavernas visitadas pelo poeta e reconhecer idênticas
protuberâncias quem caem gota a gota dos tetos interiores, quem sabe
as próprias lágrimas do senhor Rocha nas suas pelejas secretas.
Poetas acabados,
leitores acabados... Talvez não seja o que venha ao caso neste momento
final. Certo porém é que nos expomos por ousar fazer sem
arsenais de métodos nem fórmulas pré-fabricadas estes
dois exercícios tão delicados. Tão certo também
é que nem eu nem ele nos preocupamos se "fantoches/ acadêmicos
/nos vigiam/ de suas torres". |
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