Antônio Martins Filho 

Augusto dos Anjos – Razões da Angústia
 
    
          À guisa de contribuição ao cinqüentenário do aparecimento do EU, o intelectual paraibano Horácio de Almeida publicou em 1962, a importante monografia - Augusto dos Anjos - Razões de sua Angústia. 
          Trata-se de uma interpretação científica, que objetiva estudar o autor do EU por um novo ângulo, ou seja - a inquietação de sua personalidade. 
          Não considera válido afirmar que Augusto dos Anjos era um louco, mas admite não ter sido ele um homem igual aos outros. 
          Lembra que a causa da desordem do seu sistema nervoso é assunto já conhecido, pois que a mãe do poeta, quando ainda em "estado de gestação, sofreu uma comoção das mais fortes, causada pela perda imprevista de um irmão querido, estudante de medicina, de quem o sobrinho nascituro herdaria o nome e as conseqüências do choque.  O traumatismo moral, que tão fundamentalmente abalou a mãe, perturbou-a por muito tempo, além mesmo da gravidez. Ao que se sabe, ficou desajustada da mente pelo resto da vida, com preocupações de grandeza e fidalguia". 
          Entende Horácio de Almeida que, "obviamente, tal fato não podia deixar de refletir-se no filho em gestação, com distúrbios os mais evidentes em seu sistema nervoso". 
          Enquanto o pai e os irmãos demonstravam um comportamento normal, o poeta "dava a impressão de um desajustado".  E conclui: "... Assim como está provada a hereditariedade dos caracteres biológicos, não há negar também a dos psicológicos, sobretudo quando provém da linha materna, na modalidade do caráter, da inteligência, do sentimento". 
          A essa razão da angústia de Augusto dos Anjos, o percuciente analista acrescenta uma outra: o rigorismo adotado pelo pai, na formação intelectual do poeta, que ficou empanturrado de filosofia materialista, haurida em Darwin, Haeckei, Spencer, Schopenhauer, de permeio com as idéias tempestuosas de Tobias Barreto e de seus seguidores, entre eles Martins Júnior, que, como adepto de Augusto Comte, conseguira introduzir no Brasil a chamada poesia científica. 
          Tudo isso, na mente de um rapaz de 15 a 16 anos, teria necessariamente de causar tremenda confusão, especialmente num temperamento retraído, com sintomas de morbidez orgânica e psíquica, como era o caso de Augusto dos Anjos. 
          A principal causa da angústia do poeta, destilada na quase totalidade de sua produção artística, teria sido, provavelmente, o infortúnio no amor, exatamente numa fase da vida em que, na criatura humana, os impulsos do sexo manifestam-se com ma s intensidade. 
          Nascido e criado no Engenho Pau d'Arco, num ambiente tranqüilo e buc6iico, teria todas as condições para ser lírico, como observa Horácio de Aimeida. 
No entanto, com apenas 16 anos de idade, já se considerava um desgraçado, cuja vocação para o infortúnio irrompia em quase tudo aquilo que, de mais importante, emergia da potencialidade excepcional do seu cérebro. 
          Depois de demonstrar o paralelismo de símbolos e força criadora, observado entre Augusto dos Anjos e Arthur Rimbaud, desenvolve Horácio de Almeida uma série de importantes considerações e passa a lembrar que, "na idade em que os encantos do mundo douram a existência", o jovem poeta "falava como um homem que já perdeu o ideal da vida, dominado por um ceticismo acabrunhador". 
          Para fortalecer a sua afirmativa, cita o soneto - Psicologia de um Vencido, acrescentando que se torna difícil acreditar "tenha sido escrito por um adolescente para quem o cotidiano devia correr, na melhor das suposições, sem problemas materiais": 
  
                    "Eu, filho do carbono e do amoníaco,  
                    Monstro de escuridão e rutilância,  
                    Sofro, desde a epigênese da infância,  
                    A influência má dos signos do zodíaco.  
   
                    Profundissimamente hipocondríaco,  
                    Este ambiente me causa repugnância...  
                    Sobe-me à boca uma ânsia igual à ânsia  
                    Que escapa da boca de um cardíaco.  
   
                    Já o verme - este operário das ruínas,  
                    Que o sangue podre das carnificinas  
                    Come e à vida em geral declara guerra,  
                      
                    Anda a espreitar meus olhos para roê-los  
                    E há-de deixar-me apenas os cabelos,  
                    Na frialdade inorgânica da terra!" 
            
          Prosseguindo em sua análise, conclui Horácio de Almeida que, além das causas já mencionadas ("... a deformação de uma sensibilidade que vinha do berço e o predispunha ao desequilíbrio das sensações entre o eu e o mundo externo", assim como "a perda da crença e, paralelamente, a terrível doença que se atribuía") - existe um fato mais grave a atormentar profundamente o poeta, ou seja, a frustração no amor. 

          O meticuloso analista, considerando a hipótese de um romance amoroso malogrado, passa a desenvolver uma série de pesquisas, através de várias estrofes do EU, com a finalidade de identificar e definir os símbolos de que se utilizou o poeta, para exteriorizar a sua mágoa, a sua revolta, a perda de sua crença, a sua desgraça, enfim. 

          Perseguindo esse objetivo, destaca algumas estâncias de A Ilha de Cipango que, por ser um dos melhores poemas de Augusto dos Anjos, vai aqui reproduzido por inteiro: 

                    "A Ilha de Cipango 
             
                   "Estou sozinho! A estrada se desdobra  
                    Como uma imensa e rutilante cobra  
                    De epiderme finíssima de areia...  
                    E por essa finíssima epiderme  
                    Eis-me passeando como um grande verme  
                    Que, ao sol, em plena podridão, passeia!  
   
                    A agonia do sol vai ter começo!  
                    Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço  
                    Preces a Deus de amor e de respeito  
                    E o Ocaso que nas águas se retrata  
                    Nitidamente reproduz, exata,  
                    A saudade interior que há no meu peito...  
            
                    Tenho alucinações de toda a sorte...  
                    Impressionado sem cessar com a Morte  
                    E sentindo o que um lázaro não sente,  
                    Em negras nuanças lúgubres e aziagas  
                    Vejo terribilíssimas adagas,  
                    Atravessando os ares bruscamente.  
  
                    Os olhos volvo para o céu divino  
                    E observo-me pigmeu e pequenino  
                    Através de minúsculos espelhos.  
                    Assim, quem diante duma cordilheira,  
                    Para, entre assombros, pela vez primeira,  
                    Sente vontade de cair de joelhos!  

                    Soa o rumor fatídico dos ventos,  
                    Anunciando desmoronamentos  
                    De mil lajedos sobre mil lajedos...  
                    E ao longe soam trágicos fracassos  
                    De heróis, partindo e fraturando os braços  
                    Nas pontas escarpadas dos rochedos!  
  
                    Mas de repente, num enleio doce,  
                    Qual se num sonho arrebatado fosse,  
                    Na ilha encantada de Cipango tombo,  
                    Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha  
                    A árvore da perpétua maravilha,  
                    A cuja sombra descansou Colombo!  
  
                    Foi nessa ilha encantada de Cipango,  
                    Verde, afetando a forma de um losango,  
                    Rica, ostentando amplo floral risonho,  
                    Que Toscanelli viu seu sonho extinto  
                    E como sucedeu a Afonso Quinto  
                    Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!  
  
                    Lembro-me bem.  Nesse maldito dia  
                    O gênio singular da Fantasia  
                    Convidou-me a sorrir para um passeio...  
                    Iríamos a um país de eternas pazes  
                    Onde em cada deserto há mil oásis  
                    E em cada rocha um cristalino veio.  
            
                    Gozei numa hora séculos de afagos,  
                    Banhei-me na água de risonhos lagos  
                    E finalmente me cobri de flores...  
                    Mas veio o vento que a desgraça espalha  
                    E cobriu-me com o pano da mortalha,  
                    Que estou cosendo para os meus amores!  
  
                    Desde então para cá fiquei sombrio!  
                    Um penetrante e corrosivo frio  
                    Anestesiou-me a sensibilidade.  
                    E a grandes golpes arrancou as raízes  
                    Que prendiam meus dias infelizes  
                    A um sonho antigo de felicidade!  
  
                    Invoco os Deuses salvadores do erro.  
                    A tarde morre.  Passa o seu enterro!...  
                    A luz descreve ziguezagues tortos  
                    Enviando à terra os derradeiros beijos.  
                    Pela estrada feral dous realejos  
                    Estão chorando meus amores mortos!  
  
                    E a treva ocupa toda a estrada longa...  
                    O Firmamento é uma caverna oblonga  
                    Em cujo fundo a Via-Láctea existe.  
                    E como agora a lua cheia brilha!  
                    Ilha maldita vinte vezes a ilha  
                    Que para todo o sempre me fez triste!" 
  
          No conteúdo das quatro estrofes de A Ilha de Cipango que cita - oitava até décima primeira - identifica Horácio de Aimeida, através da linguagem simbólica usada no poema, elementos suficientes para supor que a causa do infortúnio do poeta teria sido, provavelmente, o triste epílogo do seu primeiro e desgraçado amor. 

          O eminente ensaista transcreve o soneto - A Árvore da Serra e a seguir passa a demonstrar que nesse outro quadro a sua suposição ainda se torna mais clara, no sentido de desvendar o motivo principal da tragédia psicológica em que se debatia o genial criador do EU e Outras Poesias: 

           A Árvore da Serra 

          — As árvores, meu filho, não têm alma! 
          E esta árvore me serve de empecilho... 
          É preciso cortá-la, pois, meu filho, 
          Para que eu tenha uma velhice calma! 
  
          — Meu pai, por que sua ira não se acalma?! 
          Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! 
          Deus pôs almas nos cedros... no junquilho... 
          Esta árvore, meu pai, possui minh’alma! ... 
  
          — Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa: 
          «Não mate a árvore, pai, para que eu viva!» 
          E quando a árvore, olhando a pátria serra, 
  
          Caiu aos golpes do machado bronco, 
          O moço triste se abraçou com o tronco 
          E nunca mais se levantou da terra! 
            
   
          E acrescenta: "Numa e noutra composição, como se vê, o assunto é tratado em linguagem hermética.  Aliás, o uso da metáfora é freqüente nele mais ainda quando alude ao drama da consciência". 
          Parece-me de tal modo importante essa parte da pesquisa de Horácio de Almeida, no sentido de evidenciar a origem da angústia de Augusto dos Anjos, que considero imprescindível mais esta citação: 

          ... Um corte transversal nas duas composições - A Ilha de Cipango e A Árvore da Serra - entremostra a desventura amorosa.  A cena teria se passado no Engenho Pau d'Arco, residência do poeta.  O moço triste era ele, e a namorada, a árvore da serra, que possuía a sua alma.  A bem amada já havia cedido o seu amor ao poeta, como adiante veremos. 
  
          I 
  
          Por ser uma jovem de condição humilde, um junquilho entre cedros, o pai austero, orgulhoso de sua estirpe ou premido pela família, determinou ou concordou tirar para sempre da presença do filho aquela flor silvestre, que o tinha preso aos seus encantos, crendo que, com o desaparecimento do empecilho, pudesse ter uma velhice calma". 

          A investigação realizada por Horácio de Almeida afigura-se-me importante contribuição para que seja corretamente interpretado o conteúdo do EU e reveladas as razões da angústia do seu criador. 
          Não obstante, vários intelectuais paraibanos não aceitaram a hipótese do caso amoroso do poeta do Engenho Pau d'Arco, chegando a considerá-la absurda.  Apresentava-se entre outros argumentos a circunstância de Órris Soares e José Américo de Almeida, ambos amigos e condiscípulos de Augusto dos Anjos, não terem registrado aquela triste ocorrência na vida do poeta, exatamente quando estava atravessando uma quadra em que as solicitações do sexo tornam-se brutalmente exigentes. 
          Horácio de Almeida passa a colher novos elementos para defender a sua tese e o faz com a coleta de subsídios novos, alguns quase irretorquíveis. 
Através da conferência proferida na Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte, no ano de 1970, sob a denominação de Augusto dos Anjos - Um tema para debates, Horácio de Aimeida assegura que a notícia do amor frustrado que teria causado até mesmo um certo desequilíbrio mental na pessoa do poeta, comecava a ser confirmada.  E acrescenta que o primeiro a levantar a ponta da cortina para a revelação do obscuro drama passional foi Humberto Nóbrega, que, à página 163 do seu livro Augusto dos Anjos e Sua Época, assevera: 

          "Não é possível afirmar que Augusto. se tenha conservado incólume ao amor.  Possivelmente a perda da bem amada, que foi um ideal truncado pela morte, constituiu o episódio gerador de suas freqüentes revoltas contra a religião de seus pais". 

          Reporta-se a José Lins do Rego, quanto a um depoimento em que o afamado romancista admite haver o poeta escondido "uma mágoa secreta, um rancor que não confessa. contra a própria mãe". 

          Prosseguindo em suas pesquisas, Horácio de Aimeida passa a recolher provas mais evidentes em várias passagens do livro O Outro Augusto dos Anjos, de Ademar Vidal.  Nesta monografia (lançada pela Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro 1962, pág. 79), é mencionado o primeiro amor do poeta, que se transformou num drama passional, causa de todo o infortúnio que Augusto dos Anjos destila, em diferentes segmentos dos poemas enfeixados no EU. 
A versão da tragédia amorosa do poeta, anunciada por Horácio de Almeida, poderá ser assim resumida: 

          Uma moça de nome Maria, procedente da Serra da Borborema, fora acolhida na Casa Grande do Engenho Pau d'Arco, num desses períodos de estiagens, tão comuns no Nordeste seco.  Augusto, na exuberância dos seus 16 anos, teria gradativamente se enchido de amores pela moça, havendo entre ambos um envolvimento afetivo, que terminou em relacionamento sexual.  Sinhá Mocinha, com a sua mania de grandeza e considerada uma espécie de ditadora, nos assuntos de família que exigiam pronta solução, não aprovou o procedimento do filho, mas, pelo contrário, determinou o confinamento de Maria que, aliás, já trazia no ventre o fruto dos seus encontros furtivos com o poeta.  Este, apaixonado, nervoso, atormentado com o rigor paterno, no que dizia respeito à sua formação humanística e cultural, encontrou meios e modos de localizar e visitar a sua bem amada, chegando até mesmo a manifestar desejo de reparar o mal que lhe havia feito, aceitando-a como esposa.  A essa altura, Sinhá Mocinha, ainda mais enraivecida, teria mandado aplicar uma surra na infeliz amante do poeta.  E os emissários da ditadora do Engenho Pau d'Arco executaram o serviço" com tal rigor, que a moça perdeu o filho e depois veio a falecer. 

          Esta mesma versão, com pequenas variantes, é narrada por Ademar Vidal, sendo que, ao invés de Maria, o nome da enamorada do poeta teria sido Amélia. 

          Horácio de Almeida, após novas investigações objetivando colher elementos que venham comprovar a sua versão, conclui por mencionar um soneto de autoria do poeta e que, aliás, não consta do elenco de poemas enfeixados no EU.  Esse soneto foi publicado no jornal O Comércio, em maio de 1902, e consta das "Poesias Esquecidas", pesquisadas pelo ensaísta De Castro e Silva. 

          Não é uma das melhores criações do poeta, mas possui um grande valor documental, para a elucidação do assunto, objeto deste capítulo, porque diz assim: 

          Súplica num Túmulo 

          "Maria, eis-me a teus pés.  Eu venho arrependido, 
          Implorar-te o perdão do imenso crime meu! 
          Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o teu vencido, 
          Açucena de Deus, Iírio morto do Céu! 

          "Perdão!  E a minha voz estertora um gemido, 
          E o lábio meu pra sempre apartado do teu 
          Não há de beijar mais o teu lábio querido! 
          Ah i Quando tu morreste, o meu Sonho morreu ! 

          Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho!  
          Irei agora, assim, pelo mundo, para onde  
          Me levar a Destino abatido e tristonho... 

          Perdão! E este silêncio e esta tumba que caia!  
          lnsânia, insânia, insânia, ahl ninguém me responde...  
          Perdãol E este sepulcro imenso que não fala!" 

          A análise realizada por Horácio de Aimeida, sobre a causa da angústia de Augusto dos Anjos, sendo embora um tema polêmico, especialmente entre os intelectuais da Paraíba, representa assunto que não deve nem pode ser esquecido. 
E que a tragédia passional que teria envolvido o poeta ocorreu por volta do ano de 1900, exatamente quando se inicia uma fase de muita criatividade e vigor em tudo aquilo que de melhor produziu o poeta genial. 
          Com efeito, a Tonalidade excepcional do poeta considerado como bizarro, atormentado, irreverente, iconoclasta, satânico, barroco, sentimental, simbolista e também romântico, passou a assumir grandes proporções exatamente na primeira década deste século. Este motivo comprova, evidentemente, a procedência da tese de Horácio de Aimeida, quando afirma a priori e confirma a posteriori que Augusto dos Anjos é um tema para debates. 
           
   
  

(Antônio Martins Filho, in Reflexões sobre Augusto dos Anjos, vol. XV 
da Coleção Alagadiço Novo – Casa José de Alencar, Ceará. O autor é 
da Academia Cearense de Letras, cadeira n° 3)
 
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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  17 de dezembro de 1997