À
guisa de contribuição ao cinqüentenário do aparecimento
do EU, o intelectual paraibano Horácio de Almeida publicou
em 1962, a importante monografia - Augusto dos Anjos - Razões
de sua Angústia.
Trata-se
de uma interpretação científica, que objetiva estudar
o autor do EU por um novo ângulo, ou seja - a inquietação
de sua personalidade.
Não
considera válido afirmar que Augusto dos Anjos era um louco, mas
admite não ter sido ele um homem igual aos outros.
Lembra que
a causa da desordem do seu sistema nervoso é assunto já conhecido,
pois que a mãe do poeta, quando ainda em "estado de gestação,
sofreu uma comoção das mais fortes, causada pela perda imprevista
de um irmão querido, estudante de medicina, de quem o sobrinho nascituro
herdaria o nome e as conseqüências do choque. O traumatismo
moral, que tão fundamentalmente abalou a mãe, perturbou-a
por muito tempo, além mesmo da gravidez. Ao que se sabe, ficou desajustada
da mente pelo resto da vida, com preocupações de grandeza
e fidalguia".
Entende Horácio
de Almeida que, "obviamente, tal fato não podia deixar de refletir-se
no filho em gestação, com distúrbios os mais evidentes
em seu sistema nervoso".
Enquanto
o pai e os irmãos demonstravam um comportamento normal, o poeta
"dava a impressão de um desajustado". E conclui: "... Assim
como está provada a hereditariedade dos caracteres biológicos,
não há negar também a dos psicológicos, sobretudo
quando provém da linha materna, na modalidade do caráter,
da inteligência, do sentimento".
A essa razão
da angústia de Augusto dos Anjos, o percuciente analista acrescenta
uma outra: o rigorismo adotado pelo pai, na formação intelectual
do poeta, que ficou empanturrado de filosofia materialista, haurida em
Darwin, Haeckei, Spencer, Schopenhauer, de permeio com as idéias
tempestuosas de Tobias Barreto e de seus seguidores, entre eles Martins
Júnior, que, como adepto de Augusto Comte, conseguira introduzir
no Brasil a chamada poesia científica.
Tudo isso,
na mente de um rapaz de 15 a 16 anos, teria necessariamente de causar tremenda
confusão, especialmente num temperamento retraído, com sintomas
de morbidez orgânica e psíquica, como era o caso de Augusto
dos Anjos.
A principal
causa da angústia do poeta, destilada na quase totalidade de sua
produção artística, teria sido, provavelmente, o infortúnio
no amor, exatamente numa fase da vida em que, na criatura humana, os impulsos
do sexo manifestam-se com ma s intensidade.
Nascido e
criado no Engenho Pau d'Arco, num ambiente tranqüilo e buc6iico, teria
todas as condições para ser lírico, como observa Horácio
de Aimeida.
No entanto, com apenas 16 anos de idade, já se considerava
um desgraçado, cuja vocação para o infortúnio
irrompia em quase tudo aquilo que, de mais importante, emergia da potencialidade
excepcional do seu cérebro.
Depois de
demonstrar o paralelismo de símbolos e força criadora, observado
entre Augusto dos Anjos e Arthur Rimbaud, desenvolve Horácio de
Almeida uma série de importantes considerações e passa
a lembrar que, "na idade em que os encantos do mundo douram a existência",
o jovem poeta "falava como um homem que já perdeu o ideal da vida,
dominado por um ceticismo acabrunhador".
Para fortalecer
a sua afirmativa, cita o soneto - Psicologia de um Vencido, acrescentando
que se torna difícil acreditar "tenha sido escrito por um adolescente
para quem o cotidiano devia correr, na melhor das suposições,
sem problemas materiais":
"Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia igual à ânsia
Que escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme - este operário das ruínas,
Que o sangue podre das carnificinas
Come e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!"
Prosseguindo
em sua análise, conclui Horácio de Almeida que, além
das causas já mencionadas ("... a deformação de uma
sensibilidade que vinha do berço e o predispunha ao desequilíbrio
das sensações entre o eu e o mundo externo", assim como "a
perda da crença e, paralelamente, a terrível doença
que se atribuía") - existe um fato mais grave a atormentar profundamente
o poeta, ou seja, a frustração no amor.
O meticuloso
analista, considerando a hipótese de um romance amoroso malogrado,
passa a desenvolver uma série de pesquisas, através de várias
estrofes do EU, com a finalidade de identificar e definir os símbolos
de que se utilizou o poeta, para exteriorizar a sua mágoa, a sua
revolta, a perda de sua crença, a sua desgraça, enfim.
Perseguindo
esse objetivo, destaca algumas estâncias de A Ilha de Cipango que,
por ser um dos melhores poemas de Augusto dos Anjos, vai aqui reproduzido
por inteiro:
"A Ilha de Cipango"
"Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito...
Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Para, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!
Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!
Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
A cuja sombra descansou Colombo!
Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade.
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!
E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!"
No conteúdo
das quatro estrofes de A Ilha de Cipango que cita - oitava até décima
primeira - identifica Horácio de Aimeida, através da linguagem
simbólica usada no poema, elementos suficientes para supor que a
causa do infortúnio do poeta teria sido, provavelmente, o triste
epílogo do seu primeiro e desgraçado amor.
O eminente
ensaista transcreve o soneto - A Árvore da Serra e a seguir passa
a demonstrar que nesse outro quadro a sua suposição ainda
se torna mais clara, no sentido de desvendar o motivo principal da tragédia
psicológica em que se debatia o genial criador do EU e Outras Poesias:
A Árvore
da Serra
— As árvores,
meu filho, não têm alma!
E esta árvore
me serve de empecilho...
É
preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que
eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai,
por que sua ira não se acalma?!
Não
vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs
almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore,
meu pai, possui minh’alma! ...
— Disse —
e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não
mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando
a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos
golpes do machado bronco,
O moço
triste se abraçou com o tronco
E nunca mais
se levantou da terra!
E acrescenta:
"Numa e noutra composição, como se vê, o assunto é
tratado em linguagem hermética. Aliás, o uso da metáfora
é freqüente nele mais ainda quando alude ao drama da consciência".
Parece-me
de tal modo importante essa parte da pesquisa de Horácio de Almeida,
no sentido de evidenciar a origem da angústia de Augusto dos Anjos,
que considero imprescindível mais esta citação:
... Um corte
transversal nas duas composições - A Ilha de Cipango e A
Árvore da Serra - entremostra a desventura amorosa. A cena
teria se passado no Engenho Pau d'Arco, residência do poeta.
O moço triste era ele, e a namorada, a árvore da serra, que
possuía a sua alma. A bem amada já havia cedido o seu
amor ao poeta, como adiante veremos.
I
Por ser uma
jovem de condição humilde, um junquilho entre cedros, o pai
austero, orgulhoso de sua estirpe ou premido pela família, determinou
ou concordou tirar para sempre da presença do filho aquela flor
silvestre, que o tinha preso aos seus encantos, crendo que, com o desaparecimento
do empecilho, pudesse ter uma velhice calma".
A investigação
realizada por Horácio de Almeida afigura-se-me importante contribuição
para que seja corretamente interpretado o conteúdo do EU e reveladas
as razões da angústia do seu criador.
Não
obstante, vários intelectuais paraibanos não aceitaram a
hipótese do caso amoroso do poeta do Engenho Pau d'Arco, chegando
a considerá-la absurda. Apresentava-se entre outros argumentos
a circunstância de Órris Soares e José Américo
de Almeida, ambos amigos e condiscípulos de Augusto dos Anjos, não
terem registrado aquela triste ocorrência na vida do poeta, exatamente
quando estava atravessando uma quadra em que as solicitações
do sexo tornam-se brutalmente exigentes.
Horácio
de Almeida passa a colher novos elementos para defender a sua tese e o
faz com a coleta de subsídios novos, alguns quase irretorquíveis.
Através da conferência proferida na Academia Mineira
de Letras, em Belo Horizonte, no ano de 1970, sob a denominação
de Augusto dos Anjos - Um tema para debates, Horácio de Aimeida
assegura que a notícia do amor frustrado que teria causado até
mesmo um certo desequilíbrio mental na pessoa do poeta, comecava
a ser confirmada. E acrescenta que o primeiro a levantar a ponta
da cortina para a revelação do obscuro drama passional foi
Humberto Nóbrega, que, à página 163 do seu livro Augusto
dos Anjos e Sua Época, assevera:
"Não
é possível afirmar que Augusto. se tenha conservado incólume
ao amor. Possivelmente a perda da bem amada, que foi um ideal truncado
pela morte, constituiu o episódio gerador de suas freqüentes
revoltas contra a religião de seus pais".
Reporta-se
a José Lins do Rego, quanto a um depoimento em que o afamado romancista
admite haver o poeta escondido "uma mágoa secreta, um rancor que
não confessa. contra a própria mãe".
Prosseguindo
em suas pesquisas, Horácio de Aimeida passa a recolher provas mais
evidentes em várias passagens do livro O Outro Augusto dos Anjos,
de Ademar Vidal. Nesta monografia (lançada pela Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro 1962, pág. 79), é mencionado
o primeiro amor do poeta, que se transformou num drama passional, causa
de todo o infortúnio que Augusto dos Anjos destila, em diferentes
segmentos dos poemas enfeixados no EU.
A versão da tragédia amorosa do poeta, anunciada por
Horácio de Almeida, poderá ser assim resumida:
Uma moça
de nome Maria, procedente da Serra da Borborema, fora acolhida na Casa
Grande do Engenho Pau d'Arco, num desses períodos de estiagens,
tão comuns no Nordeste seco. Augusto, na exuberância
dos seus 16 anos, teria gradativamente se enchido de amores pela moça,
havendo entre ambos um envolvimento afetivo, que terminou em relacionamento
sexual. Sinhá Mocinha, com a sua mania de grandeza e considerada
uma espécie de ditadora, nos assuntos de família que exigiam
pronta solução, não aprovou o procedimento do filho,
mas, pelo contrário, determinou o confinamento de Maria que, aliás,
já trazia no ventre o fruto dos seus encontros furtivos com o poeta.
Este, apaixonado, nervoso, atormentado com o rigor paterno, no que dizia
respeito à sua formação humanística e cultural,
encontrou meios e modos de localizar e visitar a sua bem amada, chegando
até mesmo a manifestar desejo de reparar o mal que lhe havia feito,
aceitando-a como esposa. A essa altura, Sinhá Mocinha, ainda
mais enraivecida, teria mandado aplicar uma surra na infeliz amante do
poeta. E os emissários da ditadora do Engenho Pau d'Arco executaram
o serviço" com tal rigor, que a moça perdeu o filho e depois
veio a falecer.
Esta mesma
versão, com pequenas variantes, é narrada por Ademar Vidal,
sendo que, ao invés de Maria, o nome da enamorada do poeta teria
sido Amélia.
Horácio
de Almeida, após novas investigações objetivando colher
elementos que venham comprovar a sua versão, conclui por mencionar
um soneto de autoria do poeta e que, aliás, não consta do
elenco de poemas enfeixados no EU. Esse soneto foi publicado no jornal
O Comércio, em maio de 1902, e consta das "Poesias Esquecidas",
pesquisadas pelo ensaísta De Castro e Silva.
Não
é uma das melhores criações do poeta, mas possui um
grande valor documental, para a elucidação do assunto, objeto
deste capítulo, porque diz assim:
Súplica
num Túmulo
"Maria, eis-me
a teus pés. Eu venho arrependido,
Implorar-te
o perdão do imenso crime meu!
Eis-me, pois,
a teus pés, perdoa o teu vencido,
Açucena
de Deus, Iírio morto do Céu!
"Perdão!
E a minha voz estertora um gemido,
E o lábio
meu pra sempre apartado do teu
Não
há de beijar mais o teu lábio querido!
Ah i Quando
tu morreste, o meu Sonho morreu !
Perdão,
pátria da Aurora exilada do Sonho!
Irei agora,
assim, pelo mundo, para onde
Me levar
a Destino abatido e tristonho...
Perdão!
E este silêncio e esta tumba que caia!
lnsânia,
insânia, insânia, ahl ninguém me responde...
Perdãol
E este sepulcro imenso que não fala!"
A análise
realizada por Horácio de Aimeida, sobre a causa da angústia
de Augusto dos Anjos, sendo embora um tema polêmico, especialmente
entre os intelectuais da Paraíba, representa assunto que não
deve nem pode ser esquecido.
E que a tragédia passional que teria envolvido o poeta ocorreu
por volta do ano de 1900, exatamente quando se inicia uma fase de muita
criatividade e vigor em tudo aquilo que de melhor produziu o poeta genial.
Com efeito,
a Tonalidade excepcional do poeta considerado como bizarro, atormentado,
irreverente, iconoclasta, satânico, barroco, sentimental, simbolista
e também romântico, passou a assumir grandes proporções
exatamente na primeira década deste século. Este motivo comprova,
evidentemente, a procedência da tese de Horácio de Aimeida,
quando afirma a priori e confirma a posteriori que Augusto dos Anjos é
um tema para debates.
(Antônio Martins Filho, in Reflexões
sobre Augusto dos Anjos, vol. XV
da Coleção Alagadiço
Novo – Casa José de Alencar, Ceará. O autor é
da Academia Cearense de Letras, cadeira
n° 3)
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