Mário de Andrade

A Meditação sobre o Tietê

Água do meu Tietê, Onde me queres levar? - Rio que entras pela terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta O peito do rio, que é como si a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. De repente O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar?... Por que me proíbes assim praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me induzindo com a tua insistência turrona paulista Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... Já nada me amarga mais a recusa da vitória Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim. Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante, E fui por tuas águas levado, A me reconciliar com a dor humana pertinaz, E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens. Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por Estas minhas próprias mãos que me traem, Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos, Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada Se perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões. Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci, Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil, Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima! Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias, Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes, Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas, Varando terra adentro no espanto dos mil futuros, À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final! Eu desisiti! Mas do ponto entre as águas e a noite, Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem, De que o homem há de nascer. Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando As cordas oscilantes da serpente, rio. Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou. Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu. Contágios, tradições, brancuras e notícias, Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo, Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora. Destino, predestinações... meu destino. Estas águas Do meu Tietê são abjetas e barrentas, Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses. Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas, Silvos de tocaias e lamurientos jacarés. Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás, Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal. Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens, Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri! E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela Engruvinhado de dor que não se suporta mais. Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos! Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda! Nordeste de impaciente amor sem metáforas, Que se horroriza e enraivece de sentir-se Demagogicamente tão sozinho! Ô força! Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda, Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me Demagogicamente tão só! A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua Si as tuas águas estão podres de fel E majestade falsa? A culpa é tua Onde estão os amigos? Onde estão os inimigos? Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e Os iletrados? Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga! E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas Do Instituto Histórico e Geográfico, e os museus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos, Celso niil estate varíolas gide memoriam, Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as Novas ruas abertas e a falta de habitações e Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!... Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha De ti em tua ambição fumarenta. És demagogia em teu coração insubmisso. És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico E antiuniversitário. És demagogia. Pura demagogia. Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas. Mesmo irrespirável de furor na fala reles: Demagogia. Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia: Demagogia. Tu és em meio à (crase) gente pia: Demagogia. És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia: Demagogia. És demagogia, ninguém chegue perto! Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto Esperto Ciumento Peripatético e Ceci E Tancredo e Afrodísio e também Armida E o próprio Pedro e também Alcibíades, Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor, O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas, E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno, Porque és demagogia e tudo é demagogia. Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes! São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro, Esse é um presidente, mantém faixa de crachá no peito, Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro. Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes, Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas Em zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés. Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares, E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses; Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem, Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada, Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando De dirigir a corrente com ares de salva-vidas. E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca, E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar No bicho o corpo do crucificado. Mas as águas, As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão. Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe! Berra de amor humano impenitente, Cega, sem lágrimas, ignara, colérica, investe! Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade, E contra os fariseus e as lontras luzidias. E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes. E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e Pundhonor. Pum d'honor. Qué-de as Juvenilidades Auriverdes! Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta Essa demagogia, é tamanha, Que eu tenho medo de abraçar os inimigos, Em busca apenas dum sabor, Em busca dum olhar, Um sabor, um olhar, uma certeza... É noite... Rio! meu rio! meu Tietê! É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens. É noite e tudo é noite. O rio tristemente Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam As altas torres do meu exausto coração. Me sinto esvair no apagado murmulho das águas Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito Quereria sofrer, talvez (sem metáforas) uma dor irritada... Mas tudo se desfaz num choro de agonia Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge, E me larga desarmado nos transes da enorme cidade. Si todos esses dinossauros imponentes de luxo e diamante, Vorazes de genealogia e de arcanos, Quisessem reconquistar o passado... Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo A cauda do pavão e mil olhos de séculos, Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo Da por todos chamada Civilização Cristã... Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam, Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória. Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens Não querem me ajudar no meu caminho. Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente De luzes inimagináveis e certezas... Eu não seria tão-somente o peso deste meu desconsolo, A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite, Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio. Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio Murmura num banzeiro. E contemplo Como apenas se movimenta escravizada a torrente, E rola a multidão. Cada onda que abrolha E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto Mirim dum crime impune. Vêm de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo, E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros, E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio. Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios Nesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meu Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens! Quem pode compreender o escravo macho E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre Entre injustiça e impiedade, estreitado Nas margens e nas areias das praias sequiosas? Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero Que o rosto do galé aquoso ultrapasse esse dia, Pra ser represado e bebido pelas outras areias Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam A trágica sina do rolo das águas, e dirigem O leito impassível da injustiça e da impiedade. Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas, Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens, Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala, Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo, E rola mansa, amansada imensa eterna, mas No eterno imenso rígido canal da estulta dor. Porque os homens não me escutam! Por que os governadores Não me escutam? Por que não me escutam Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes? Todos os donos da vida? Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo, Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito Metálico dos números, e tudo O que está além da insinuação cruenta da posse. E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem O retrato a ólio das inaugurações espontâneas, Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior. E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção, Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei. Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos, Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante: Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito, Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio, Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações. Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva, E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas, E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor... Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado Ao fogo irrefletido do amor. ...eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também O amor do amor, Maria! E a carne plena da amante, e o susto vário Da amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já amei Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal. E também, ôh também! na mais impávida glória Descobridora da minha inconstância e aventura, Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz! E eu não sabia! eu bailo de ignorâncias inventivas, E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei! Quem move meu braço? quem beija por minha boca? Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração? Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?... Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras, Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece Úmido nas espumas da água do meu rio, E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor. Por que os donos da vida não me escutam? Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontes Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas. Meu baile é solto como a dor que range, meu Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados! Eu converteria o humano crime num baile mais denso Que estas ondas negras de água pesada e oliosa, Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo. Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada. Como é possível que o amor se mostre impotente assim Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens, Trocando a primavera que brinca na face das terras Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio! É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite! Eu não enxergo siquer as barcaças na noite. Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza, E me disfarça numa queixa flébil e comedida, Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra, Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa, Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas, No reflexo baixo das nuvens. São formas... Formas que fogem, formas Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes inacessíveis, Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!... Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza Outra vida melhor do outro lado de lá Da serra! E hei-de guardar silêncio Deste amor mais perfeito do que os homens?... Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado. No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável! Eu sou maior que os vermes e todos os animais. E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos, Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado, Maior que a estrela, maior que os adjetivos, Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias, Transfigurado além das profecias! Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança. Eu me acho tão cansado em meu furor. As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas Para o peito dos sofrimentos dos homens. ... e tudo é noite. Sob o arco admirável Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca, Uma lágrima apenas, uma lágrima, Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê. 30/11/1944 a 12/2/1945


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