Álvaro Pacheco

Pobreza
 
 
I 
  

em comarcas do nada se limita 
essa posse de nenhum haver 
num mínimo de chão - terras de memórias 
erígidas em cercas impalpáveis 
como o gado cabrum e a palmeira 
no indistinto chão de água salobra 
  

são quatro palmos de couraça contra a vida 
a três palmos de desdenho contra a morte 
contidos na comarca indemarcável 
dessa posse de mínimos haveres 
no haver de não ter posse nem rumo 

se erige na areia o latifúndio 
imenso como o tempo e a pobreza 
se tecem nessas Datas invisíveis 
a cerca e a esperança em toscos troncos 
que se ressecam no censo de seus donos 
proprietários sem haver nem posse. 

no fim do dia se levanta a terra dura 
na corrida do campo ressequido: 
se contêm as comarcas - peixes mortos 
como a dura fantasia de existir 
num mínimo de haver sem posse alguma 

límpido e seco aqui se põe 
um passado secular sem ancestrais: 
cada dia é seu domínio e cada filho 
uma data de amor não consumado: 
são redes e currais de vento e sonho 
no cercado nu, sem continente 

esperamos nosso passo - não há rastros 
só memória de um futuro que não chega, 
quantas horas se ganhar, para mais perto 
não estar do muito amor, é água e sol 
o alimento dessa posse e desse chão 
e desse povo que reluta em persistir 
numa ereta existência, resistindo 
à permanência e ao corpo - um não haver 
na mais posse mínima da vida.

                                                          Parnaíba, 12/01/74
 
II 
  

como escamas 
é assim esse povo 
superpondo-se: pobreza, tempo e ancestrais 
ninguém sabe as pontes, as palhas 
que cobriram os leitos 
e incendiaram as esperanças, esse povo 

que não está na carne, na rede 
no gado magro que povoa o campo 
e nos meninos mais magros que nada povoam: 
que longo esse tempo, que longe o amor 

e só uma testemunha curvada e remota 
na palmeira nua 
como escamas do povo: aqui não há 
abundância de verde - e todo o arco-íris 
é uma cor única no estar cinzento 
inescapável 

a linha do horizonte não tem fim: 
nem começa o horizonte nesta fome de ser; 
que destino implacável 
se jogou aqui: uma haste 
inútil como uma cerca ao vento: não temos 
casa, apenas restos 
de morte vegetal: não se povoará aqui 
a vida 
a não ser de ricos - e os ricos, 

quem os conhece? que terra os viu, que legenda 
alimentaram neste solo árido 
com o suor de suas mortes? 

o filho não verá o mar 
como não viu o pai 
nenhuma terra fértil: foram posseiros 
de um simples trânsito 
(se isso pode ser) 

habitamos casas vegetais: nada perdura 
além de um vento seco 
e da morte periódica 
não há uma pedra 
que nos testemunhe, nem nós mesmos 
testemunhamos: deixamos que nos vejam 
e eles não se confrangem 

há uma soleira para cada dívida: 
não temos dúvidas nem certezas: 
nem isso temos 

esta é a porta por onde não passará: 
foram feitas assim as tuas portas, 
apenas símbolos 
de uma coisa aberta 

este é o teu gole quente 
para dormir com sede 
não terás a semente 
e estará vazia 
a tua rede 

entre dois paus, ao céu aberto 
armarás a espera e a esperança: 
não te pertence o céu e nem a caça 
te conhece: voltarás vazio 
ao teu terreno de aluvião 
no meio do mar que não existe 

que pena não terem marcado em teu flanco 
mesmo com fogo, um sinal de posse, 
que te deixasse possuir o duradouro 
das marcas de tua vida 
dos sonhos de tua morte!

                                                    Rio, 21/2/74
                                                                                   

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 Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  01  de  Julho  de  1998