O ENVELOPE PARDO
 
  
  
  
  
   
O velho retirava as algas do canal sob os plátanos 
 no ritual resistente. Perguntei - "Que árvore
é esta?" 
 "C'est un platane, Monsieur. Um platane très
vieux. Je crois 
 qu'il a plus de cent ans" - 
 e retomou o seu ritual. 
 Um outro velho 
 imaginava peixes no anzol imóvel 
 no fundo turvo do pântano. Sob o plátano,  
 entre as folhas caídas, documento do
verão que passou, 
 Rue du Docteur Peret, Circuit Fleurie, Vonnas, 
 descansava de transbordante viagem 
 Envelope Pardo 
 endereçado a um estrangeiro irredemido 
 sem qualquer indicação do remetente. 
 ................................ 
   
 Terá vindo do leilão surrealista 
 no sonho e vigília dessa noite angustiada, 
 um estranho leilão de quadros eróticos,
em Cannes, 
 onde cada peça, nas tonalidades jaune
e demi-vert, 
 representava imagens em movimento contínuo 
 e composições do abstrato real 
 sobre o vasto écran suspenso na rua?- 
 Terá sido daí 
 que veio o Envelope Pardo 
 contendo um anúncio e o sofrimento 
 para o escolhido? 
  
   
 - Ou terá vindo 
 de alguma remota ilha helênica do Mar
Egeu, 
 talvez Poros 
 com o aviso e a advertência do ritmo 
 de Séferis, o poeta grego - "escuta
mais uma vez, 
 as estátuas estão nos museus.
As sombras da noite 
 são um efeito da luz". Tu as voyagé,
tu as vu 
 beaucoup de lunes, beaucoup de soleils. 
 Tu as touché morts et vivants 
 tu as ressenti la douleur de l'adolescent 
 et le gémissement de la femme, 
 l'amertume de la verte enfance -  
 tout ce que tu as ressenti s'écroule 
 si tu ne fais pas confiance à l'espace
blanc. 
 Peut-être y trouveras tout ce que tu
croyais perdu, 
 l'éclosion de la jeunesse 
 et le juste naufrage des ans. 
 ....................... 
   
 Tenho já os cabelos grisalhos 
 a mi-chemim da terceira vida, o Envelope Pardo 
 poderia ser também 
 a notícia do suicídio de Durrel 
 vinda das ruelas obscenas de Alexandria 
 ou talvez Corfu. A Letter From Darkness -
enfim 
 chegamos aos anos mais difícies de
suportar 
 em que cada cabelo branco é uma ameaça 
 e comparamos as cópulas antigas com
as recentes 
 e descarregamos nosso ralo esperma 
 nos corpos dos novos discípulos 
 para aliviar-nos da carga acumulada, 
 du regret que nous donne leur jeunesse, 
   
 "And in the coital slumber poaches 
 from lips and tongues the pollen 
 of youth, to dust the license of our art." 
   
 chegamos enfim aos anos maduros 
 os terríveis da agonia 
 e não podemos suportar essa maturidade
mortal - 
 e a febre do sobrevivente se consome 
 entre todas as sombras da incerteza do combate. 
   
 We have arrived there, after all, the two of
us. 
 ……………………………………………………. 
   
 O Envelope Pardo talvez contivesse 
 a última carta de Vincent: 
 In medio noctis vim suam lux exerit, 
 é no meio da noite que a luz retorna 
 ou desaparece para sempre, explicando 
 as cores do "Champ de Blé Aux Courbeaux",explicando 
 cada detalhe da gênese da loucura -
"ma vie aussi 
 est attaquée à la racine même". 
   
 "Puis, comme le crepuscule tombait, 
 représente-toi le silence, une petite
allée 
 de grands peupliers avec leur feuillage d'automme 
 et le large chémin fait de boue, 
 tout en boue noire, la bruyère à
l'infini 
 où le ciel se reflète et où
pourissent des racines." 
   
 Le troupeau indocile progresse sur le chémin
de boue. 
   
 Il, comme nous, avance péniblement 
 vers le matin du dimanche d'été. 
 .......................... 
   
 And the Myth endures, "pai 
 vejo em Paris, pela primeira vez na vida 
 a construção da fome e o mecanismo
da máquina, 
   
 "Une nuit d'Été en Ville", supostamente 
 um filme de amor 
 é de plástico - tenho medo 
 de pasteurizar-me, contudo 
 une autrichienne de Viena 
 convidou-me para ouvir Mozart na Madeleine: 
 para não correr o risco de me desapontar 
 talvez vá a Dublin procurar Joyce - 
 parfois 
 leio "Paroles" de Prévert" - 
   
 "If not you 
 how could I clean my brains 
 from the tempestuous clouds of my youth and 
 from the abyss of passion? I need the shovel 
 to excavate my own undergrounds 
 and feed, from the roots, 
 the expected leaves of poetry -  
   
 If not you 
 how could I learn to spell emotions 
 how could I reach 
 that untouchable green stone?" 
 ..................... 
   
 Maybe the Second Letter "Pela Vida". 
   
 - "Como nadar no infinito sem fé 
 e sem loucura? 
   
 O saxofone me fascina, e agora tenho a noção 
 pela primeira vez sozinho 
 do que é criar um lugar - mas é
muito difícil 
 escrever uma carta - vou usar 
 a mesma máquina que você usou 
 para falar dos seus momentos, 
 para ver se assim te conheço melhor
- 
   
 acho 
 que te sinto com medo 
 de um grande sorriso 
 ou de um abraço forte, não sei
por que 
 você não elimina a distância 
 que separa o caminho da sua mão 
 dos corpos amigos, daí 
 te escrever esta carta pela vida 
 na madrugada de Nova Iorque". 
 .................. 
 Pode ser que o Envelope Pardo 
 seja uma mensagem que perdi 
 de mim mesmo: ici 
 je fais des infusions, pode ser 
 que apenas esteja compondo 
 uma natureza-morta 
 com fotografias de flores artificiais. 
   
 Estou esgotado e com frio. 
 Arredondo minha vida 
 nas calmarias da pequena vila francesa 
 e não descubro os instrumentos possíveis
- 
   
 onde os terei colocado, como 
 saíram do meu arsenal? 
   
 É preciso 
 ensaiar todos os discursos em voz alta 
 para reduzi-los implacavelmente 
 a uma só palavra  
 ainda não pronunciada 
 e assim redefinir o que restar 
 de minha condição humana. 
   
 ("La peine de mourir 
 m'a si fort embrasé 
 que mon feu s'est uni au soleil.") 
   
 Chove espaçadamente sobre os pépinières 
 onde germinam as plantas e se organiza 
 a primavera em estufa, nos vasos de barro. 
   
 Escuto outra vez o sussurro 
 de Mr. Stratis Thalassinos 
 entre os agapantos -  
   
 "nenhuma pedra 
 marca a passagem dos fugitivos 
 ou indica as ilhas de fumaça e mármore 
 de onde ressurgem, em vagas, 
 as imagens dos poetas" -  
 nenhum sentimento 
 basta para se possuir uma mulher 
 uma ilha ou uma árvore: em toda esta
calma 
 nada é mais justificável 
 do que a alegria perdida 
 que nunca espera 
 pelo seu dia de ressurreição. 
 ...................... 
   
 Foi uma madrugada intermitente 
 de vigília e sono 
 pressentindo o caminho 
 do Envelope Pardo -  
   
 "Une Nature Morte Avec Bible"et, toujours, 
 une jeune femme ravie - vagamente 
 na recepção do hotel 
 me falaram dele, desse arauto misterioso 
 de onde poderiam revelar-se 
 fantasmas e anjos, 
 mas nada me entregaram, embora 
 eu verificasse diariamente os plátanos 
 la route fleurie e tenha passado várias
vezes 
 pela manhã e no fim do dia 
 pela Rue du Docteur Peret 
 conferindo atentamente as folhas caídas,
os roseaux 
 e o velho que lia sempre o mesmo jornal amassado 
 muito circunspecto das notícias. 
 ................. 
   
 C'était à la Poste, enfim, 
 por determinação da lei 
 que abriram o Envelope Pardo 
 para uma verificação de circunstância: 
 Havia dentro apenas 
 sem nenhum interesse para a alfândega 
 ou para as autoridades em geral 
 duas revistas periódicas de confissões
eróticas 
 cartões-postais muito antigo de Nova
Iorque, Paris e Londres, 
 manuscritos em papel vergé de idade
indeterminada 
 transcrições de poemas românticos
em letra adolescente 
 diversas cartas amareladas 
 um fac-símile da primeira edição
dos Ensaios do Montaigne 
 uma folha com uma composição
ginasial, 
 um cartão de Natal, muito terno, com
letra de criança 
 uma receita especial de soupe d'écrevisses 
 e um velho retrato desbotado, sem bordas, 
 datado de 20 de maio de 1943 
 que mostrava, num grupo de enterro, 
 um menino assustado 
 de olhos muito abertos 
 vestido solenemente numa farda colegial 
 a contemplar 
 sua primeira versão de morte. 
 Vonnas, setembro
91. 
  
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