TIRÉSIAS
 
  
Eu, que estou cansado de abraçar frouxos
abraços 
 a abatido pelo esgotamento do mesmo sono 
 aberto e sangrando de feridas curadas 
 e marcado por cicatrizes invisíveis 
 como certas reses e baleias do fundo do mar, 
 eu 
 que vim, cego e bêbado, 
 desafiando a noite e as estradas 
 em plena luz do dia, eu 
 que me julgo haver estado em todas as feridas 
 e ferido por mim mesmo em nome 
 de todos os seres humanos 
 na totalidade 
 do meu sofrimento pessoal, eu, 
   
 Akhenaton, Tirésias, Hamlet, Gilgamesh, 
 servo todo-poderoso dos ares e dos despenhadeiros, 
 da ilusão e do medo da eternidade,
eu 
 que adivinho as palavras antes de me dizerem 
 e me esqueço facilmente de tudo que
aprendi, eu 
 que ando despreocupadamente 
 pelas ruas esquecidas de Siena, Joigny, Santiago 
 e tantas outras cidades medievais modernas,
eu 
 de antepassados inventados invencíveis 
 e que tentei cultivar ao sol do deserto as
flores do inverno 
 e padeci de calor no meio da neve 
 esvaiando-se em cansaço, eu 
 que me julgo extraterrestre 
 e não encontro muitas vezes o caminho
de volta 
 para o quarto do hotel, 
 esqueço o nome de meus irmãos 
 o telefone de casa, e não sei, 
 embora fantasie, a origem de meus ancestrais,
eu, 
   
 Tirésias outra vez, cego desprezando
o mito, 
 psicanalisado, 
 um faraó sem divindade e sem incesto, 
 me entrego agora: - que venha o anunciador 
 acima de minhas descrenças, os símbolos 
 depois da realidade e a lembrança 
 antes do esquecimento: 
   
 nada mais quero ver. 
   
 E que a luz se faça 
 ou não se faça 
 mas longe de meus olhos cegos 
 que nunca pretenderam de fato conhecê-la. 
 Rio, maio 88. 
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