Quando, em 1963, Astrid Cabral publicou os contos de Alameda, muitos críticos
e escritores importantes anunciaram-lhe um destino literário grandioso.
Contra a justa expectativa, ela silenciou por dezesseis anos. Em 1979,
publicou Ponto de Cruz, que também obteve boa recepção.
Mas os costumes já começavam a mudar. A crítica diligente,
honesta e generosa praticamente já havia sido despejada dos jornais
e, por isso, seus livros posteriores acabaram sofrendo a indiferença
e o injusto silêncio.
Astrid Cabral, entretanto, com a força dos criadores autênticos,
construiu um sólido edifício poético com os cinco
laboriosos livros que agora se reúnem.
Em Alameda tínhamos vinte contos. Seus personagens eram flores,
árvores e frutos que se transformavam em personagens trágicos,
destinados à morte. Mas a sutileza da atmosfera narrativa mitigava
o profundo pathos daqueles minúsculos destinos que espargiam humanidade.
Ali já se desvelava uma das chaves da poética de Astrid Cabral:
a consciência do desastre de toda existência aliava-se ao possível
heroismo humano. Mediando essa tensão entre resistência e
condenação, estava a arte, a beleza, a sutileza formal e
sensível..
Em Ponto de cruz e nos livros seguintes, a originalidade do olhar e da
voz de Astrid Cabral se afirmará com a mesma força das verdades
elementares. Duas são as linhas de força de sua lírica:
uma que investe na interioridade (pessoal e geográfica), outra que
busca decifrar o enigma do exterior, sejam os países, como em Torna-viagem
e Rês desgarrada , sejam as ameaças da existência.
A seção inicial de Ponto de cruz se concentra no amor e no
sexo. À primeira visada, pensamos tratar-se de júbilo e exaltação
erótica, uma vez que o poema de abertura afirma o poder cosmogônico
do fogo amoroso. Entretanto, logo nos damos conta de que o contínuo
trabalho do tempo, sombra a que não se pode escapar, vai arruinando
mesmo os instantes de prazer autêntico. Em "Modo de amar", por exemplo,
a presença da destruição é rejeitada:
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
Acentua-se o papel demiúrgico do amor, mas o dístico final
funciona como uma espécie de anticlímax, afinal as ruínas,
as cinzas e a lama estão à espreita, são a contrapartida
lógica da criação. O poema que se segue já
se mostra inteiramente envolto pelas brumas da angústia que o sexo
não logra extinguir:
Pesado é o coração
do escombro de teus sonhos
e dos mortos que em teus ombros
repousam imortais.
O amor de ontem
é cinza feota chumbo.
Cicatrizes e rugas
lavram a tua carne
de aflições temperada
e a vazante das veias
irriga-se
de subterrâneas lágrimas antigas.
"Réquiem"
Importa pouco que a derrocada pós-coito seja atribuída ao
outro. As subterrâneas lágrimas antigas (epíteto insuperável!)
que, paradoxalmente, temperam o corpo e golpeiam o espírito se referem,
afinal, a todos os amantes.
Poderíamos lembrar que Carlos Drummond de Andrade nos ofereceu uma
série de memoráveis poemas em que do amor se despiam todas
as vestes convencionais para lhe contemplarmos apenas a crueldade óssea.
Mas Astrid Cabral opta por mais sutileza, quase a escondendo o traço
amaro da experiência que ela parece expor com alegria. Eis sua originalidade.
Em outros casos, sobretudo quando trata diretamente do tema da existência,
a nota cortante ecoa naquela minúscula mas tenaz resistência.
É o caso de poemas como "Circunstância-mor", em que a inviolabilidade
do ser ganha contornos heróicos:
Mas tua carapaça
refratária, intacta
não trinca o toque
de nenhum afago.
O mais inexperto dos ouvidos não deixará de perceber que
o arranjo polifônico da consoante oclusiva /t/ com toda a gama
de timbres vocálicos (tua, rfratária, intacta, trinca, toque)
constitui precisa imagem a espelhar a sensibilidade avessa ao contato do
ser em causa, ser cujo trabalho é preservar sua intimidade
na gema de pedra
que ninguém penetra)
Não entraremos em considerações sobre a presença
feminina na poesia brasileira. Nem recorreremos a sínteses mudas
sobre a frieza de Francisca Júlia e a sensibilidade de Cecília
Meireles. Queríamos apenas observar que, entre os anos 70 e 80,
muitas escritoras ousaram investir em detalhes próprios à
vida e à experiência da mulher. Ana Cristina César,
Adélia Prado e Suzana Vargas são apenas alguns exemplos distintos
e representativos. Astrid Cabral, a seu modo, trouxe para o centro poético
não apenas a sensibilidade feminina, que observa a vida de maneira
nova, mas também os próprios fatos e acontecimentos domésticos
que, só a partir daquela sensibilidade, parecem capazes de proporcionar
a experiência lírica. Vejamos o poema que dá título
a Ponto de cruz:
Lá fui eu ao armarinho
(tangida por que ventos
por que pérfidas sereias?)
comprar um dedal de amor.
Voltei com este coração
são sebastião de alfinetes.
Não é apenas a originalidade do coração e suas
minúsculas setas sangrentas que nos desconcertam. É também
o drama da jovem perdida num périplo absurdo e anti-homérico
--- os ventos e as sereias de Ulisses não conduzem ao happy end.
Há um tema recorrente em Astrid Cabral: o café da manhã.
Desse episódio diário e insignificante, ela retira verdadeiras
iluminações. Em "Manhã", a antropomorfização
de xícaras, torneiras, manteiga, pão e leite se opõe
à falta de significação do mundo dito real, aquele
que vem cifrado nos jornais. Ainda em Ponto de cruz está "Café
da manhã". O poema, diga-se assim, denuncia os ritos bárbaros
sob nossos gestos simples e automáticos do cotidiano:
O trigo, ontem livre ao vento
é pão cativo no teu ventre.
(...)
E o café aos goles é sangue
que, vampiro, engoles.
A consciência feminina pode também revelar-se dolorosa e cruel.
Em certo texto, a escritora sensibiliza-se com a tragédia invisível
das mulheres que se esgotam nas tarefas diárias:
Elas caminham para a morte
pelas sendas de suas rugas
e cobrem os seios lassos
não de tecidos grossos
mas de restos de sonhos.
Da memória de outros dias
elas se nutrem e não
das carnes que temperam
com cebolas.
"Sendas de Rugas"
Depois de Ponto de Cruz, Astrid Cabral publicou Torna-viagem (1981). Trata-se
de livro irmão de Rês desgarrada (1994), pois, como ele, consiste
em poemas de voluntário (quem pode afirmar?) exílio. O último
foi escrito nos Estados Unidos, o primeiro no Oriente: Líbano, Síria,
Grécia, Irã... A voz lírica nos conduz, como se fora
um guia turístico da alma de outras culturas, sempre salientando
imprevistos acidentes, regiões, detalhes de uma geografia metafísica.
Elemento criador e transubstanciador das experiências convertidas
em poesia é a memória. Inicialmente, o "fato"poético
se dá no encontro da memória oriental, sua história
e seus mitos, com a observadora certamente desconcertada, pois filha de
uma cultura em que a história não passa de tênue sopro
na iminência de se apagar. Em seguida, tem-se a distância entre
a experiência lírica e o ato criadfor. Segundo a própria
escritora, sete anos se passaram desde a viagem real até a imaginária.
O que importa é que sua memória logrou reter aquela viagem
de maneira tão viva que, por segundos, chegamos a duvidar de sua
informação. Quase tocamos a alça de um vaso/ constelada
de crustáceos que o mar deposita nas mãos da poeta. Lembramos
a urna grega de Keats, contemplamos a beleza no fragmento a destruir-se
e ouvimos, pela mágica da lírica, o marulho do insondável
mar:
Na palma antes parece
estranha orelha de barro
escancarada ao marulho
do mar a arfar eterno
A orquestração vocálica do primeiro verso citado (quase
toda em "a") vai repercutir nos dois últimos, em que o marulho do
mar a arfar chega a nos entontecer, pois ouvimos as ondas à nossa
frente (de sete sílabas, quatro trazem "ar") e só descansamos
com a confortante palavra eterno e seus fonemas abertos.
Na apresentação de Torna-viagem, Ivan Junqueira observou
que, embora os motivos do livro sejam os lugares, o espaço, portanto,
sua apreensão se dá pela memória, ou seja, pelo tempo.
Assim, o espaço se temporaliza e o nervo do efeito poético
se encontra mesmo no sujeito lírico. Eis o segredo da densidade
humana desse livro. O fato de ter sido escrito muito tempo depois da experiência
contribui para a unidade dos poemas. Walter Benjamim já havia percebido
procedimento semelhante e, no estudo sobre Proust, anotou: "um acontecimento
vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque
é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois." Apenas
para ficarmos com um exemplar, leiamos o poema de número XIX. Nele
Beirute se converte em poço de tempo:
Oh Beirute/ Beryte
poço de tempo coagulado
calabouço de lembranças
que me entrançam de limo.
Torna-viagem, menos que terrestre, é um livro marítimo. A
poeta, que se transforma em guia turístico da alma, do espaço-tempo,
se revela também um marinheiro consciente de ameaça e do
mistério das águas. Por isso, a célebre metáfora
de Coleridge (túmulo líquido do mar) se desdobra em duas
extasiantes variações:
Os votivos obeliscos
dão adeuses de pedra
junto ao túmulo do mar
A sinistra sina dos suicidas
que da Grotte aux Pigeons
arremetem seus rasos vôos
de corpos implumes rumo ao fundo
azul do líquido jazigo marinho?
Não escapará ao leitor atento que as paisagens aí
apresentadas são exemplos acabados do que Immanuel Kant chamava
de o sublime na natureza. A grandeza dos obeliscos, das grutas, o precipício
fatal e o vasto oceano atordoam e consolam, porque o leitor pode fruí-los
em segurança. Kant conclui afirmando que esses objetos sublimes
"elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem
descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie
totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência
da natureza. "Tanto faz que a fatalidade alcance os obeliscos prestes a
se arremeterem ou os suicidas minúsculos e impotentes, nós
sobrevivemos e assistimos, em segurança, esse espetáculo
doloroso do destino insondável.
Rês desgarrada (1994) também nasceu do mesmo impulso de Torna-viagem:
compreender outra cultura, nesse caso, a americana. O poema-título
---
Pois em Chicago, amigos,
sou rês desgarrada.
Agarra-me sim, danada
a nostalgia da ex-boiada.
Carga pesada esta saudade
dos pastos brasis
onde os buritis sambam
à carícia da brisa.
Perde-se meu ser rural
tão tropical nesta urbe
labirinto de pedra e vidro
sob o cilício do frio.
Oceanos de chão e tempo
cercam-me gélidos, cegos.
Neles, sem sossego navego
e nau sem rumo quase afundo.
--- Vaca na balsa, rês desgarrada ---
Abre o livro já em inesperada apoteose. A mescla de estilos, o sermo
urbanus (labirinto de pedra e vidor/ sob o cilício do frio) e quotidianus
(danada/a nostalgia) se junta a uma saudável mescla de poéticas
de matrizes populares e murilianas, como nos buritis que sambam à
carícia da brisa. O final traz imagem forte, insubstituível
em seu primitivismo quase mítico. O estrato das sonoridades é
mais que pedagógico, com rimas internas e toantes.
O café da manhã agora se torna "breakfast", um achado de
composição,
idéias e sentimentos:
o hábito matinal
de afogar relógios
e cruzar o Atlântico.
---- Brasil, Brasil
O sol de tuas laranjas
no chão da mesa
planta a aurora
que meus dedos colhem ----
O galo da Kellog's surge
mudo em emio dos vivos cantos
de longínquos quintais.
Que comentar sobre o instante iluminador em que o espírito cruza
oceanos e rompe os fusos horários? Toda a imagística das
cores constrastantes (aurora e o chão, ecos fúnebres sob
o império das luzes) aí está a serviço de uma
funda emoção. Trata-se, diríamos, de natureza-morta
pós-moderna, em que ao lado das laranjas brasileiras e vivas aparece
não um galo, morto evidentemente, mas um signo comercial, um logotipo.
Lendo "A velha América"---
Desembarquei na América
com atraso de séculos.
Os búfalos já nos livros
...............................................
---- Temos a dolorosa sensação de que, mais do que estrangeiros
nos Estados Unidos, somos estrangeiros deste século predador. Astrid
também descobre uma surda oposição entre cercas concretas
e inúteis do nosso país e as abstratas, que se erguem nos
corações americanos.
A primeira edição de Rês desgarrada trazia um iluminador
prefácio de José Santiago Naud, que foi capaz de perceber
o complexo crueldade/ ternura, marca distintiva da escritora. Sua análise
da terceira parte ( "Outro clima") expõe, com propriedade, os princípios
poéticos do lifvro, restando-nos sublinhar a riqueza de tons com
que Astrid desenha a neve e com ela constrói metáforas, ora
fúnebres, ora líricas, mas sempre viçosas.
Em 1986, lançou nova reunião de poemas: Lição
de Alice. O título e a epígrafe de Lewis Caroll, mais a capa
com quadro de Ismael Nery já indicavam uma das vertentes do livro:
o surrealismo. Surrealismo de imagens murilianas, de paisagens à
Dali, à Magritte, à Chirico, enfim à Astrid Cabral,
como em:
Boca
livre trânsito
de vocábulos e aves
fruições e frutos.
Boca
sede de gozo e poder
pombos lhe pousam
entre os dentes ávidos
pêssegos se imolam
cindindo-lhe os lábios.
"Boca"
Ou, ainda, no denso "Jardim secreto":
Nesse jardim tão noturno
empilham-se crespas trevas
em touceiras de veludo.
(...)
Frutos exóticos cevam-se
no rubro sangue do crime
coalhado em antiga terra
enquanto à sombra de urtigas
vida e morte, unas se integram.
No primeiro, contemplamos a imensa boca, aves, frutos e desesperos. Já
no segundo (irmão de "Jardim", de Drummond), a composição
consiste na colagem de uma série magistral de correlato objetivos
que indiciam o sentimento trágico e inexprimível da escritora.
Se Torna-viagem se abria para o espaço amplo, para o exterior (em
todos os sentidos), Lição de Alice se concentra na intimidade,
no mínimo espaço, na vida doméstica e nas experiências
de uma voz sensível, muitas vezes, outras, extremamente cáustica,
não faltando mesmo, aqui e ali, um toque de crueldade. O leitor
de Astrid Cabral não deve se deixar envolver inteiramente por sua
sensibilidade. Como antídoto, preste-se atenção aos
versos finais de "Nudez"---
Mas bendizemos o corpo que nos redime
e nos queremos selvagens, puros, nus.
Salvos pela misericórdia de nossa miséria.
--- em que o paradoxo da última linha não nos deixa esquecer
nossa condição liliputiana. Ao lado desse pendor crítico,
há também uma tentação pela agressão
pura, agressão contra as falsas convenções. Afinal,
em "Cave canem", Astrid nos adverte:
Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia.
Estamos vendo que, sem embargo de extrema e finíssima sensibilidade,
a poesia de Astrid Cabral nela não se esgota, navega por tonalidades
e temas os mais crespos. Sua insuspeita rebeldia também se expõe
na maneira bruta como, às vezes, trata o sexo ---
Desceu a vales de axilas e virilhas
às crateras da boca e do ânus.
"Corpo e Alma"
--- ou a religião. Afinal, o caminho para chegar a Deus se expõe
como a "vera fictícia escada" e, nas "Interrogações
I", podemos ler:
Depois, quando o longínquo
estiver perto: Deus diante
de nós presente e eterno
ou o não-Deus a descoberto
rompido enfim o lacre
do enigma que nos fulmina.
Não será deselegante, entretanto, observar que o ânimo
crítico de Astrid Cabral se volta preferencialmente contra certas
convenções da vida atual. Vários de seus flashes focalizam,
como se disse, ritos bárbaros sob os véus do cotidiano. Além
disso, há outros instantes em que a condição contemporânea
se deixa ver na completa perda de valores, como em "Esquartejamento".
No poema, uma modelo vende centímetro a centímetro todo o
seu corpo, até chegar ao ponto em que não mais se distinguem
alma e imagem. De um modo geral, sua abordagem desse esvaziamento espiritual
é bastante simples, corresponde ao olhar ingênuo e interrogativo.
Mas, à segunda leitura, surpreendemo-nos com uma sofisticação
que nasce exatamente da simplicidade.. Nesse sentido, evocar a poesia de
Emily Dickinson será, menos que obviedade, um dever.
Em poemas como "Happy end"---
Findou-se a surda batalha.
No bolso do paletó
o invisível passaporte
para o invisível mor.
--- a constatação singela conduz à mais densa reflexão,
ao mais drummondiano ceticismo. Já "A inútil luta" descreve
a decadência física e os vãos artifícios na
vã tentativa de congelar a juventude ---
A juventude? Exilada
em antigos retratos
recordações já trôpegas
--- ou de reacender o coração, que hoje se encontra
................Ameaçado
não de paixão, mas da taxa
de colesterol em alta.
Enfim, Lição de Alice constitui o centro luminoso da poesia
de Astrid Cabral, algo equivalente a Claro enigma, na obra de Drummond.
Publicado simultaneamente à Lição de Alice, Visgo
da terra enfeixa meia centena de poemas todos dedicados ao Amazonas. Em
três veios temáticos (terra, água e seres) derrama-se
uma memória, ao mesmo tempo, dolorosa e aliviada. Entretanto, tal
divisão corresponde mais ao grau que ao gênero das lembranças,
uma vez que a existência, tema último dos poemas, há
de sempre supor uma série de circunstâncias.
Ao contrário dos livros anteriores, em Visgo da terra predominam
os poemas longos, de versos também dilatados, o que lhe acentua
o caráter meditativo e o amadurecimento da voz lírica ---
essa voz complexa, prenhe ainda de impressões infantis, mas trabalhada
pela vivência do adulto maduro e cético. Em breve apresentação,
Octavio Paz pôde afirmar que a grande lição da poesia
de Elizabeth Bishop se encontrava nos "poderes imensos de la reticencia".
A expressão se ajusta a Visgo da terra. Os animais, as plantas,
os rios, todo o mundo amazônico se exibe em closes irretocáveis.
Sabemos que ali houve algo, talvez uma iluminação, talvez
uma catástrofe, mas o sujeito lírico silencia. Apresenta-nos
o espetáculo do mundo e emudece. Seu silêncio é pathos
e mistério.
Se nunca foram inexistentes, a ironia e o humor não passavam de
tênues insinuações nos livros anteriores. Em Visgo
da terra , ainda uma vez diferente, eles se expandem chegando ao riso escancarado.
As histórias de assombração (na medida certa para
arrepiar os inocentes) e sua legião de monstros são recontadas
com o necessário encantamento, numa linguagem límpida e evocativa.
Há também aqueles casos provincianos, hilariantes como em
"Ponte Cabral"---
E subia de madrugada o leiteiro
o camburão de alumínio entornan-
do o leite batizado de rio onde
não raro intrusos peixes boiavam
nos copos para o espanto de todos.
--- em que o anacoluto, a quebra vocabular e a repetição
se organizam magistralmente, criando uma linguagem bastante próxima
do falar rude. No entanto, o que predomina nessas memórias é
mesmo a consciência da catástrofe de toda existência.
Mas, nietzschiana, Astrid Cabral não teme o destino, aceita-o, descobre
o heroísmo possível, o amor fati quando escreve:
Rio Negro
contigo arrastas rumo ao abismo
invisível carga de risos de meninos
orgasmos de jovens, ais de velhos.
Sereno soberano também me carregas
na deriva da vida até o oculto oceano
refluindo fluindo indo indo...
Por fim, resta observar que, no panorama atual da literatura brasileira,
Astrid Cabral ocupa um lugar privilegiado, por expressivo motivo: ela mantém
viva a tradição da poesia meditativa (às vezes, filosófica
mesmo), evita as invencionices (senis ou pueris) e, sobretudo, cultiva
valores estéticos contemporâneos, sem se deixar escravizar
pelos grilhões do neo-parnasianismo, que tem confundido fulgor estético
com rigor mortis. No texto já citado, Octavio Paz escreveu: "Imaginação
descreve a operação poética como um jogo gratuito:
liberdadea define como uma eleição moral. A poesia de Elizabeth
Bishop tem a ligeireza de um jogo e a gravidade de uma decisão."A
bem poucos poetas do Brasil contemporâneos essa caracterização
é tão adequada quanto a Astrid Cabral. |