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Alcir Pécora


 


Prefácio do livro Um Estrangeiro na Legião, de Roberto Piva




I

 

Após ter trabalhado na organização das Obras Reunidas de Hilda Hilst, lançadas pela editora Globo, a oportunidade de editar o conjunto das obras de Roberto Piva pareceu-me uma nova e extraordinária empreitada, considerando-se, antes de mais nada, a qualidade de sua produção poética, certamente uma das mais decisivas da poesia contemporânea brasileira. E há também algo de comum entre a literatura de Hilst e a de Piva, a despeito de suas diferenças evidentes: ambas excitam a imaginação de uma vida menos ordinária, sem jamais mascarar o que ela tenha de mais ordinário, e até de sórdido. Bem ao contrário: são literaturas que querem encarar tudo. Justamente por isso, uma vez exposto à leitura delas, é difícil resistir à admiração das pessoas que as conceberam: gente que despudoradamente diz o que ninguém quer ouvir, e está disposta a pagar o preço pela inconveniência. Difícil não amar gente inconformada, num mundo de mansos.

Isto dito, o trabalho efetivo de lidar com a poesia de Piva foi diverso em tudo ao de Hilst. Para começar a obra de Piva está decididamente centrada na poesia, que já nasce com alta qualidade, ao contrário do que ocorre com sua colega de ofício, que produz em vários gêneros, e cuja maturidade vai sendo conquistada ao longo do entrecruzamento deles. Também, quantitativamente, a obra de Piva reúne muito menos livros. Esses dois aspectos bastaram para me convencer de que a melhor edição da obra de Piva não precisaria de muito mais intervenção do que a da cronologia. Acresce dizer que a produção da poesia de Piva, vista ao longo do tempo, descreve um desenho cronológico bem particular. A publicação dos seus livros parece dar-se por surtos, e mais exatamente por 3 grandes surtos de duração variável: o da primeira metade dos anos 60; o da segunda metade dos 70, que se estende à primeira dos 80; e enfim o do final dos anos 90, que se estende até o presente. Os grandes intervalos desses momentos privilegiados de publicação mantêm uma estrita e curiosa regularidade: 12 anos. Parecem bastante largos para caracterizar momentos diferentes, senão de produção, ao menos de empenho de comunicação com um público mais amplo.

A leitura dos próprios textos permite justificar uma proposta de publicação em 3 volumes: um para o primeiro período, de viés beat, whitmanniano e pessoano; outro para o segundo, de traços psicodélicos e experimentais; e um terceiro, para um período mais recente, predominantemente místico e visionário. Convém notar, desde logo, contudo, que os elementos mais relevantes de um período permanecem em todos os outros, havendo aspectos de continuidade e coerência marcantes em todo o conjunto, como, por exemplo, o seu efeito de alucinação. Seja como for, a dominante poética em cada conjunto apresenta diferenças significativas. Em termos de composição dos versos, distinções podem ser igualmente sustentadas em relação aos 3 períodos: o verso mais longo do primeiro; os cruzamentos-limite de prosa e poesia, bem como os experimentos gráficos do segundo; os versos mais curtos e regulares do terceiro, entre outros distinguos a serem analisados nos posfácios dos volumes, distribuídos a críticos com grande familiaridade com a obra de Piva.


II

 

O presente volume está voltado para o material dos anos 60. Gostaria de apenas mencionar, nesta breve introdução, alguns aspectos da poesia explosiva do juveníssimo autor. O primeiro deles diz respeito ao sistema de oposições manifestamente esquemático proposto nos poemas. Não há meio-termos nem meio-tons aqui. Este caráter de manifesto está nítido nos textos assinados por “Os que viram a carcaça”, de 62, mas não é exclusivo deles. Assim, “crepúsculo” e “aurora”, “motocicleta” e “lambreta”, “maconha” e “licor”, “box” e “tênis”, entre tantíssimos outros termos, tornam-se partidos ou escolhas a serem urgentemente feitas, de modo a definir um lado, o do poeta e seus amigos, ou o lado contrário, o dos poetas árcades, dos gabinetes dos políticos, das bombas de gás e radiopatrulhas, dos negociantes, dos patrões e operários, dos estudantes e advogados etc. “D.H. Lawrence” ou “Valéry”, “Artaud” ou “Hegel”, “De Chirico” ou “Mondrian”, ou exemplarmente: “Sade” ou “Eliot”? Piva escolhe os primeiros termos das oposições, onde também se alinham “Barrabás” (não “Cristo”), “corpo” (não “mente”), “gambás” (não “cegonhas”); onde se está pela “violência” contra a “lógica”, as “baterias” contra os “violões”, o “ânus” contra a “vagina” -- onde, enfim, se define um “nós” contra “eles”, ou melhor, contra “vós”, pois o que se delineia é um campo de batalha e não uma queixa impotente e desenganada.

Tal esquematismo não deve de modo algum ser atenuado, ou sequer contextualmente justificado, se se quiser conhecer o núcleo da questão poética que interessa aqui. A escolha sem nuances é condição desta escrita libertina, no sentido forte do termo: aquele no qual está em jogo assinalar os interditos e investir decididamente contra eles, num gesto cujo valor fundamental é o da transgressão, e nenhum outro. Trata-se de esclarecer sem meias-tintas a situação básica de impedimento e repressão que reconhece como constitutivo do mundo burguês, e então lançar-se abertamente ao confronto. O esquematismo está a serviço de uma espécie de demonstração ostensiva do cerco imposto a toda forma de vida, de tal maneira que a verdadeira criação já não pode ser senão fruto da violência. Definitivamente, com Piva, como com Blake, permanecem válidos os parâmetros de um romantismo exacerbado, no qual a prudência é apenas uma solteirona rica e malcheirosa, a serviço da impotência e da negação da alegria.

Um segundo ponto para o qual chamaria a atenção do leitor é a centralidade do sexo nesses jogos de extremos. Como interdito privilegiado, a sua transgressão, é também a via tumultuosa que conduz ao sagrado, ou se confunde com ele. Nos dois principais livros de Piva reunidos neste volume, tal via tumultuosa tem um deslocamento no sentido dominante de seu curso. Em Paranóia, atendo-se ao cenário desequilibrado e perverso da cidade de S. Paulo, a violência que o poeta concentra é sobretudo de caráter profanador, baixo, laico, que visa a verdadeiramente ostentar o lixo que a cidade, ao mesmo tempo, produz e esconde. Em Piazzas, a via profanatória, conquanto permaneça, inclui os excessos dos amantes, a fúria ou transporte extáticos que conhecem positivamente. Num caso ou outro, como ato profanatório baixo ou como excesso amoroso e orgiástico que deixa entrever o sagrado, a poesia não pode ser pensada fora da idéia de transgressão, de violência exigida pela vida represada pelos interditos.

Um terceiro ponto a considerar é que, nos poemas de Piva, usualmente o leitor não dispõe de lugares comuns ou empregos lingüísticos que imediatamente habilitem estratégias de legibilidade. O acesso ao texto exige, não o abandono ocioso ao sem sentido, mas uma experiência, muitas vezes difícil, senão dolorosa, da incompreensão, na esperança de atingir um inteligível outro, talvez mais livre dos clichês que, ao fingir a comunicação de tudo, apenas naturalizam os interditos.

Recusar-se ao sentido é, pois, um tipo de violência exigida pelo verso novo contra o comodismo. A propósito, anoto que se fala um bocado sobre o “surrealismo” de Piva. Convém, entretanto, pesar bem o termo. Pois a sua poesia evidentemente não quer produzir a recusa de uma significação banal para entregar-se a uma outra, banalíssima, na qual a ausência de sentido é apenas uma regra estética, aplicada segundo procedimentos hoje bem conhecidos. Não há forma mais nociva de neutralizar as suas preocupações. A questão decisiva de uma linguagem que se recusa a uma leitura pobre, e, portanto, que visa à construção de um texto abstruso ou incongruente, supõe justamente a manutenção em primeiro plano tanto da questão do interdito, quanto do desejo de transgressão para acesso renovado e criador de sentidos. O procedimento é básico em toda experiência iniciática: é preciso despojar-se dos sentidos, para acumular energia suficiente para a percepção de outros sentidos, que rompam brutalmente as soleiras usuais do conhecimento. A dificultação da leitura é aqui elemento estruturante do sentido.

Se suspeito da versão “surrealista”, tal como usualmente se formula, e se, à imitação de Bataille, reforço o sentido inalienável de interdito e violência nesse primeiro volume da poesia de Piva, o movimento de ajuste crítico à sua poesia obriga a referir um outro aspecto importante dela: o tratamento nada óbvio do verso que a sustenta. Em Paranóia e Piazzas, predomina ainda o verso longo, ainda que mais acentuadamente no primeiro que no segundo. De início, para se aproximar dele, é adequado acentuar, como faz o próprio Piva, o ditirambo dionisíaco como a sua matriz: sem estrofes regulares em números de versos, de pés, de métrica ou de rima, tudo se submetendo ao emprego de ritmos exaltatórios e declamativos, que celebram a alegria de viver, os transportes da mesa, do corpo, do sexo. Certamente tudo isto está na poesia de Piva, mas nem por isto a questão está resolvida, e a reponho apenas como um desafio renovado aos seus leitores antigos e recentes.

É claro que a descrição rigorosa dessa poesia energética demandaria um estudo muito mais acurado do que o possível aqui. No entanto, uma simples passada de olhos por um poema como Ode a Fernando Pessoa, publicado neste volume, permite demonstrar a complexidade de sua construção. Considere-se, por exemplo, o primeiro verso, longuíssimo: O rádio toca Stravinsky para homens surdos e eu recomponho na minha imaginação a tua vida triste passada em Lisboa. Bem considerado, pode-se destacar nele uma divisão de 6 membros, a saber: O rádio toca Stravinsky/ para homens surdos/ e eu recomponho/ na minha imaginação/ a tua vida triste/ passada em Lisboa. Ou seja, o verso longo se recompõe facilmente como 6 redondilhos, alternados entre maiores e menores. Mas não é só: se se reunir os membros dois a dois, conheceremos que o conjunto do verso se compõe de 3 versos de 12 sílabas, alexandrinos, pois, em sentido lato, sendo que o último deles, arredonda-se num alexandrino perfeitamente equilibrado, com o acento principal na sexta sílaba! Não é sempre assim o resultado da análise cuidadosa dos versos, nem eu estou a afirmar que a regularidade métrica organize rigidamente os versos. Não se trata disso. O ponto de interesse é mostrar como a questão rítmica da poesia de Piva exige estudo mais complexo do que se tem feito, e não pode ser entendida como bem descrita apenas por conta das propriedades exaltatórias que evidentemente ela contém.

Por último, devo referir aqui que a literatura de Piva leva a sério, mais do que qualquer outra coisa, o poder da própria literatura. É literatura embebida em literatura, que respira literatura, que fala o tempo todo de literatura. Um levantamento sem qualquer intuito de exaustividade encontra, em Paranóia, referências explícitas a Mário de Andrade, Dostoiveski, Lautréamont, Rilke, Garcia Lorca, Machado, Rimbaud, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Dante, Whitman, Leopardi, Tolstói, Oscar Wilde, Gide, Kierkegaard, Artaud etc. Se passarmos a Piazzas, estão lá, além de vários dos já citados, Maiakovski, Nietzsche, Rimbaud, Blake, Mary and Percy Shelley, Sade, Baudelaire, Isaac Asimov, Villon, Apollinaire, Michaux, Byron, Swift, Jarry etc. etc. Predomina, mas sem hegemonia, a linhagem maldita do romantismo, o que ajuda a esclarecer o fato de que, mesmo neste primeiro volume, quando o aspecto laico da profanação é mais evidente, a literatura já se insinue como limiar do sagrado. O caminho da transgressão significa, nestes termos, supor que a literatura é, por excelência, o lugar onde ainda se sustenta e respira uma potência resistente à institucionalização da vida. Tanto o interdito de significação, quanto o ritmo exaltatório estão ambos a serviço desse ato de proclamação, sem dúvida crente, de uma espécie de onipotência poética, exercida na libação irrestrita e anárquica do sexo e de toda sorte de excessos voluptuosos.
 

 

 


 

15/03/2006