Silas Correa Leite
O Horror
dos Miseráveis
“Que não temas amar sabendo
Que embora a vida seja sombra e luz
Num palco de perplexidades
Aqui estarei para que venhas(...)
E
se souberes querer que em mim
Tenhas pouso e pasto e sacrilégio”
Lia Luft
Lançado
pela Editora Nelpa de São Paulo, o belo Romance “A
Dualidade” do já consagrado escritor (poeta e ficcionista)
de Ponta Porã-MS, Arine de Mello Jr, pelo próprio título da
obra já se apresenta de alguma maneira: a luta do bem contra
o mal nos seus mais plenos estágios, de espirituais a
sobrenaturais, na cidade de Paraíso que, paradoxalmente ao
que o próprio nome alude, é mais do que uma espécie assim de
filial do inferno em tempos de dezelo público neoliberal,
dívidas sociais impagas, injustiças criminosas e mesmo um
quadro de abandono social histórico, numa usurpada geografia
de contrastes sociais do norte do Brasil.
A “luta”
brava não só e exatamente pelas causas sociais ou
agro-rurais, na conturbada região de Altamira; portanto não
entre classes dominantes e miseráveis como foco, ou mesmo
sem terras contra latifundiários num tema político, mas a
miséria mesma em todo o seu triste horror, evocando a mente
não os miseráveis de Paris, mas os miseráveis expropriados
dessa nossa afrobrasilis latrina sulamérica católica com
suas aberrações de toda ordem (ou desordem) entre a hiléia
verde e o homem explorador ainda satanizado. Pra começo de
conversa, um amargurado homem urbano, de uma grande cidade -
com suas estátuas, igrejas e cofres - perdido, infeliz, à
procura de si mesmo; peregrino a buscar sinais e sentido
para viver, e sobreviver de algum modo, que vaga até dar-se
errante em plagas de cafundós pra lá de onde o Judas perdeu
o tênis all-star, um lugar perdido no mapa, mas em que há
atribulações de seres como reses tangidos com medo para o
redil dos submissos, lugar que terrivelmente tem a sua
historicidade degradante toda própria, onde exploradores do
povo estão impunes, onde as forças do mal convergem para uma
hecatombe, onde não se sabe quem é bandido e quem é
autoridade constituída, e onde, ainda por cima de tudo, como
pano de fundo por assim dizer, descontroladas forças
sobrenaturais se juntam para criar uma espécie de apocalipse
moreno-tropical como sinal de começo do fim do mundo. O
autor vai longe, tem imaginação, carrega nas tintas,
pintando o pré-caos.
Numa
impressionante narrativa realista, onde o personagem
principal como que, se atendesse a um chamado espiritual de
um tempo que já se perdeu nas dobras dimensionais do espaço,
fugindo de si mesmo e querendo purgações de alguma maneira,
como por uma estranha coincidência (muito além das
fronteiras da alma); como uma profecia bíblica cai no olho
do furacão de um local abandonado por Deus, e como numa
batalha de miseráveis, em união pra lá de ecumênica junta-se
a um pastor, um espírita, um católico, tudo isso entre
matadores de aluguel impunes, jagunços, pervertidos,
grileiros, ateus, loucos, garimpeiros, cegos, velhacos,
ossadas e cadáveres, tentando enfrentar o que não sabe
exatamente o que é e quem é, mas um verdadeiro legado do
demo em vidas passadas e com cobranças num devir próximo, em
terra de muito ouro e pouco pão, do nosso estilo
mestiço-afrobrasilis de tantos renegados entregues à própria
sorte, numa área perigosa de garimpo, local sem alma e sem
lei, onde reina a arma branca ou uma valentia sobrevivencial,
tudo figurado pela dona Morte. Vai por aí o belo romance.
Arine de
Mello Jr, já elogiado por um dos melhores poetas brasileiros
de então, Ascendino Leite, que dele diz “(...)Autor que
honra e enriquece nossa linguagem lírica de modo
irresistível e une com a vida nossa à do nosso país e da
nossa comunidade comprometida com os valores de uma
expressão poética(...)”. Ou ainda elogiado pelo maior
proseador brasileiro, Moacyr Scliar, que comenta dele: “O
autor tem um excelente domínio da forma poética, muita
sensibilidade, muita imaginação(...)”.
Falando
sério, com um handicap destes, o autor só poderia estrear
muito bem como romancista numa ficção limpa, fluente. Logo
de cara o romance “A Dualidade” se nos apresenta um prefácio
edificante de Caio Porfirio Carneiro que apresenta o autor
do livro: “O autor desce fundo no passado de Paraíso e
descobre surpresas espantosas e espetaculares(...). Com uma
disposição e sede de justiça, o personagem narrador enfrenta
todas as tempestades e borrascas demoníacas(...). Paraíso é
um sarcófago, um símbolo regional de alcance universal,
entre o Bem e o Mal, entre Deus e o demônio em atmosfera
lúdica(...). A busca da justiça social aos deserdados contra
o poder dos que, lá em cima, acomodam-se com os cordéis do
comando”.
É isso.
Com os cordéis da contação sob domínio, o autor delineia um
teatro ora de absurdos, ora de incompletudes, ora de um
adubo humano entre carcaças e sofridas acontecências
ribeirinhas que o personagem narrador, como um herói de
ocasião, veio cobrar, justiçar. Será o impossível? Arine de
Mello Jr, Advogado, com passagem pela Administração Pública
em sua aldeia natal, Ponta-Porã, MS, é já autor de 3 livros
de poemas: Estes Momentos (2004), Outros Momentos (2005) e
Reflexões dos Momentos (200&), todos lançados pela Scortecci
Editora de São Paulo. Vargas Llosa dizia: Escrever é uma
obrigação para nos dar uma apaziguação existencial”. A busca
do personagem principal é a busca também do autor como
testemunho de um tempo, seu tempo, nosso tenebroso tempo?
O autor
trabalha a tez chã de uma área em conflitos, narra os
desacertos dos miseráveis que bem retrata em preto e pranto,
o horror da própria miserabilidade social, rituais
demoníacos, seres doentes, mistérios, erranças, encarnações
datadas, e ainda, aqui e ali, poético e um filosófico
prisma: “Onde está a inteligência humana?(...). Onde está o
lado bom da vida que é o amor? Na globalização dos mercados?
Nos preços dos remédios? Nas sementes modificadas dos
alimentos?(...) Nas guerras, nas armas sofisticadas?(...) A
compaixão de Deus está nesse inferno que ele criou para
separar o o joio do trigo(...) Li nomes naqueles corações de
vidro(...)”
É isso,
Arine de Mello Jr conta do joio e do trigo, quando não estão
os dois num só – ah a espécie humana tão desumana - uma
espécie assim de “troios” humanos, pseudo-humanos. O horror
da miserabilidade e desesperança.
Talentoso,
no entanto, lidando com um tema arenoso, o autor não cai na
falácia panfletária, mostra todo seu caldo cultural, sua
inteligência criativa, narra na primeira pessoa a
vivificação letral dos fatos. O livro de cara custa a
engrenar, fica algo suburbano, de uma altura pra frente,
situado o conflito emergente, corre a corrente narrativa com
garbo, é difícil de largar até chegar aos mistérios,
contundências e final; você quer saber, quer continuar, tal
a historiação entrando literalmente nas entranhas das almas
sucumbidas pelo caos, pela maldade humana, pelos podres
poderes de áreas periféricas desse Brazyl S/A; o espectro
horrendo do devir que se afigura trágico, as injustiças
sociais e o risco de uma desgraça mundial a partir daquele
lugar perdido no tempo e no espaço, como se um filme se
passando na sua cabeça de leitor cativado ao ler e “ver” as
cores das imagens correndo. “A Dualidade” é com todas as
letras, o próprio eixo do romance, o leitmotiv; o núcleo em
toda a construção literária de fio a pavio. Ganha quem gosta
de leitura de qualidade onde o mal e o bem se confrontam e,
bem ou mal, todos saem perdendo, porque o custo vem da
derrama de lágrimas e sangue. Mas, afinal, é Deus ou o diabo
que mora nos desfechos?. Leia o livro. Você vai adorar. Faz
valer a pena conhecer um escritor de gabarito.
|