Augusto Severo Netto

POEMA DO CONFLITO ETERNO
 
Por que esse silêncio
essa paz
essa calma
essa ventura falsa que pedem os circunstantes:
“mostra-a em teu rosto”
sem reparar decerto o não poder fazê-lo
por não sentí-la em mim
por não trazê-la na alma.
 

Tenho os lábios gretados
como o leito dos rios onde a água é lenda
meu sorrir é queixa
minha prece um grito
um eco de revolta irremediável
do irremediável e milenar conflito
represado comigo desde o ter nascido
entre o que nasci e o que me fez a vida.
 

É um andar sem descanso
na vereda estreita
sinuosa
e comprida
dos anos que eu vim desde o ser como fora
até o dia em que estou sendo o que sou agora.
 

Não há praias à vista
nem montanhas
nem portos
e as rochas do caminho desgastadas de vento
de tempo
e desencanto
desgastadas da chuva de um oculto pranto
que ninguém assistiu mas que eu chorei e choro
são polidas e frias
e tem os cantos mortos.
 

Sonhei-me girassol
crisântemo
azaléia
e fecundei-me espinho
parasita 
e cardo
 

Talvez por isso ardo
e me esbato
e me evolo
à luz de gambiarras que iluminam o palco de
                                         passadas comédias
onde estão encenando um drama diferente
de quase não querer
de descrença
apatia
onde se escuta ainda o ressoar distante
dos tambores que deram o rítmo de outrora
cadenciando os passos de ter sido um dia

E eu sigo sonhando

Anseio nebulosas
estrelas
promontórios
adro de catedrais
sinfonias
aquários
canções de acalanto
arco-íris
e lagos.
 

Mas é querer somente
o meu sorrir é queixa
minha prece um grito
um eco da revolta irremediável represada comigo
desde o ter nascido
entre o que nasci e o que me fez a vida
a dor de não ter sido 
um clamor quase mudo
de pouco ter achado e ter sonhado tudo
o escutar sangrento
e longe
do horizonte
no eco de um profundo e milenar conflito.

  
Remetente : Walter Cid

 ÍNDICE DO AUTOR | PÁGINA PRINCIPAL