Auta de Souza

1. À alma de minha mãe.
2. Gentil.
3. Oração da noite.
4. Pennas de garça. 
5. Tudo passa.
 À ALMA DE MINHA MÃE
 

Partiu-se o fio branco e delicado
Dos sonhos de minh’alma desditosa...
E as contas do rosário assim quebrado
Caíram como folhas de uma rosa.
 

Debalde eu as procuro lacrimosa,
Estas doces relíquias do Passado,
Para guardá-las na urna perfumosa,
Do meu seio no cofre imaculado.
 

Aí! se eu ao menos uma só pudesse
D’estas contas achar que me fizesse
Lembrar um mundo de alegrias doidas...
 

Feliz seria... Mas minh’alma atenta
Em vão procura uma continha benta:
Quando partiste m’as levaste todas!

Natal - Março de 1895.

 

GENTIL

                A essa criancinha de olhos castanhos e
                sorriso claro, que eu vejo sempre   à
                tarde, descalcinha e loura, sacudindo
                beijos...
 
 

Como é gracioso e lindo o pequenino louro
Que às vezes, à tardinha, eu vejo docemente
Passar junto de mim como um sorriso de ouro,
Anjo que vem do Céu na luz do Sol poente.
 

Como é gracioso e lindo! Eu cuido ver um sonho,
- Um sonho cor da aurora e belo como o Mar -
Quando os olhos sem luz entristecidos ponho
Na pupila gentil d’aquele meigo olhar.
 

O seu cabelo guarda a cor serena e doce
Da pálida estrelinha ao despontar do dia.
Talvez que um anjo diga, ao vê-lo: “desmanchou-se
O louro resplendor do filho de Maria!”
 

 ORAÇÃO DA NOITE
 

Ajoelhada, ó meu Deus, e as duas mãos unidas,
Olhos fitos na Cruz, imploro a tua graça...
Esconde-me, Jesus! da treva que esvoaça
Na tristeza e no horror das noites mal dormidas,
 

Maria! Virgem mãe das almas compungidas,
Sorriso no prazer, conforto na desgraça...
Recolhe essa oração que nos meus lábios passa
Em palavras de fé no teu amor ungidas.
 

Anjo de minha guarda, ó doce companheiro!
Tu que levas do berço ao porto derradeiro
O lúrido batel de meu sonhar sem fim,
 

Dá-me o sono que traz o bálsamo ao tormento,
Afoga o coração no mar do esquecimento...
Abre as asas, meu anjo, e estende-as sobre mim.
 

Macaíba - 3 de Abril de 1899.
 

 PENNAS DE GARÇA

                                               VERSOS DO POVO

            I

Responde-me, ó jurity,
Ao que te vou perguntar:
Por que é que o Dia sorri
E a Noite vive a chorar?
 

            II

Não sabes? N’um sonho brando,
O Dia ri quando quer,
E a Noite vive chorando,
Somente porque é mulher.
 

            III

Quando eu nasci, no telhado,
Uma coruja cantou...
Dizia a chorar: coitado!
Um anjo do Céu voou.
 

            IV

Das noites de minha terra
Douradas pelo luar,
Nenhuma delas encerra
A graça de teu olhar.
 

            V

Meus sonhos andam no mundo
Em cantos negros dispersos...
São ondas de um mar profundo...
Ai! triste de quem faz versos!
 

            VI

Nas noites de lua, eu canto
Para esquecer-me de ti.
Minh’alma soluçou tanto
Que o pranto já aborreci.

            VII

Fazem dois dias que penso
N’uns olhos que vi chorar...
Quem me dera ver meu lenço
Aquele pranto enxugar!

            VIII

Ó moça dos olhos puros,
Tão tristes que causam dor...
Teus olhos são mais escuros
Que os olhos do meu amor.

            IX

Meu peito é triste, isolado,
Vazio, nu de esperanças,
Como um ninho abandonado,
Uma casa sem crianças.
 

            X
 

Se eu fosse rapaz, pequena,
E me casasse algum dia,
Só amava uma morena
Que se chamasse Maria.
 

            XI
 

O nome traz alegrias
Sem uma gota de fel,
O coração das Marias
É todo cheio de mel.
 

            XII
 

“Mentira” - alguém me dizia -
O nome engana também;
Eu conheço uma Maria
Que não quer bem a ninguém.
 

            XIII
 

Entanto, ela é linda e boa,
A dona dos sonhos meus...
“Mas deixa-me ir só, á toa,
Por este mundo de Deus.”
 

            XIV

Mulher é coisa ruim,
Dizias esta manhã...
Só pode falar assim
Quem não tem mãe nem irmã.
 

            XV
 

De que me serve falar
Dos homens como ditos vãos,
Se eu vivo para adorar
Os olhos de meus irmãos?
 

            XVI
 

Lá vai uma mãe em prantos
Atrás da filha querida...
Ah! ela não sabe quantos
Desgostos lhe guarda a vida!
 

            XVII
 

Morrer pequenina ainda,
Levando as asas de um véu,
Não vale mais que ser linda
Como as estrelas do Céu?
 

            XVIII

Brancos estão meus cabelos...
Ó dor, onde é que me levas?
Ai! noites de pesadelos,
Ai! dias cheios de trevas!
 

            XIX

Nas noites de lua cheia,
O Céu parece sonhar...
A Lua é como a sereia
Boiando dentro do Mar.
 

            XX

Eu quero bem às crianças
Porque não sabem mentir;
São pombas lindas e mansas,
Passam na vida a sorrir.
 

            XXI

Quando eu morrer, quero um manto
Como o de Nossa Senhora,
Que seja feito do pranto
Do Céu quando nasce a aurora.
 

            XXII

Eu só adoro na terra
Da criancinha o sorriso,
Uma casinha na Serra
E um ninho no Paraíso.

            XXIII

Repousa lá minha fronte
Despindo da Mágoa o véu;
Quem mora em cima do monte
Está mais perto do Céu.
 

            XXIV

Quem dera que eu fosse lírio,
Ó minha Virgem Maria!
Ao menos, este martírio
Durava somente um dia.
 

            XXV

Quando eu morrer, vou assim:
Sustendo meu coração...
Saudade da terra? Sim!
Saudade da vida? Não!

Setembro de 1899.
 

 TUDO PASSA
 

          I

Aquela moça graciosa e bela
Que passa sempre de vestido escuro
E traz nos lábios um sorriso puro,
Triste e formoso como os olhos dela...
 

Diz que su’alma tímida e singela
Já não tem coração: que o mundo impuro
Para sempre o matou... e o seu futuro
Foi-se n’um sonho, desmaiada estrela.
 

Ela não sabe que o desgosto passa
Nem que do orvalho a abençoada graça
Faz reviver a planta que emurchece.
 

Flávia! nas almas juvenis, formosas,
Berço sagrado de jasmins e rosas,
O coração não morre: ele adormece...
 

          II
 

O coração não morre: ele adormece...
E antes morresse o coração traído,
Mulher que choras teu amor perdido,
Amor primeiro que não mais se esquece!
 
 

Quando tu vais rezar, quando anoitece,
Beijas as contas do colar partido;
E o coração n’um trêmulo gemido
Vem perturbar a paz de tua prece.
 

Reza baixinho, ó noiva desolada!
E quando, à tarde, pela mesma estrada
Chorando fores esse imenso amor...
 

Geme de manso, juriti dolente!
Vais acordar o coração doente...
Não o despertes para nova dor.
 

Remetente: Walter Cid
 


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