Auta de Souza

1. A Júlia.
2. O coração e o beijo.
3. Dadá.
4. Doente.
5.Súplica.
 A JÚLIA
 

No teu olhar, cheio da luz chorosa
Que envolve o Espaço quando a tarde expira,
Bóia uma doce mágoa lacrimosa,
Uma saudade indefinida gira.
 

E quando afirmes que não tem começo
A dor sem fim que no teu seio existe
Queres assim, eu muito bem conheço,
Fazer-me crer que já nasceste triste.
 

E falas a sorrir: “Essa dolente
Tristeza amarga que me empana o olhar
É a vaga chorando eternamente
Por não poder se separar do mar...”
 

E se te fito a umedecida boca
E vejo rubro o lábio que sorri,
Logo pergunto, num cismar de louca,
À mente e ao coração, se és tu quem ri.
 

Pois é tão mansa a chama destes olhos
Envoltos na carícia do sorriso,
Que eu penso que teus cílios são abrolhos,
Abrolhos rodeando um paraíso...
 

O CORAÇÃO E O BEIJO
 

Meu coração chorava e eu lhe dizia:
Por que choras assim, pobre criança?
E o triste, a soluçar, me respondia:
Ninguém pode viver sem Esperança.
 

Tu tens a Fé. - A Fé? Mas, o que é d’ela
Sem da Esperança as ilusões serenas?
Um céu à noite sem nenhuma estrela,
Um’alma em flor sem um sorriso apenas...
 

- Mas tens a Caridade. - A Caridade?
Ah, sim! o vinho que embriaga a dor.
Mas eu não amo... Pois, não é verdade
Que a Caridade é o que se chama - Amor?
 

Nisto passava uma criança linda,
Botão de lírio, imaculado e santo.
Meu coração que soluçava ainda
Sorriu ao ver o melindroso encanto.
 

E foi beijar-lhe os pequeninos lábios,
Folhas de rosa abrindo de manhã,
Onde adejavam místicos ressabíos
Dos beijos de uma mãe e de uma irmã...
 

Compreendeu, então, o desolado
A linguagem sublime d’esse harpejo:
Neste mundo de lágrimas povoado,
A Caridade pode estar num beijo!
 

DADÁ
 

Dadá tinha um filhinho muito louro,
Tão louro como um raio de luar.
Aquela criancinha era o tesouro,
O imaculado encanto do seu lar.
 

Dadá o amava tanto que no mundo
Su’alma em cousa alguma achava brilho.
Nada alterava aquele amor profundo:
Só via o berço onde sonhava o filho.
 

Quanto cuidado e que afeição tão santa!
A areia onde brincando ele corria,
Se ela pudesse (ah! se não fosse tanta!)
Mesmo dentro do seio a guardaria.
 

Desejava que a terra fosse um ninho
Habitado por ela e os seus amores;
Queria mais que o buliçoso anjinho
Só visse o céu e só pisasse em flores.
 

Pois se ele era o sorriso de seus olhos
Desde que o esposo para o Além se fora!
Se era a luz que surgia entre os abrolhos
De su’alma tristonha e sofredora!
 

Sorrindo a mãe dizia olhando a terra
E o casto manto azul de lá do céu:
“Sois muito lindo, mas nenhum encerra
Jóia mais linda do que o filho meu.”
 

E tinha bem razão. O seu Laurinho,
Aquela criatura tão franzina,
Guardava lírios brancos no rostinho
E uma rosa na boca pequenina.
 

Não consentia que ele um só minuto
Dos cuidados maternos se afastasse:
Era um contraste a sombra de seu luto
Na alvura virginal d’aquela face!
 

E se às vezes a garrula criança
Disparava a correr jardim a fora.
Dadá pensava que sua esperança
Ia fugindo ou que morria a aurora...
 

Então cismava cheia de receio,
Como se o seu filhinho mais não visse:
E se alcançava, comprimia-o ao seio,
Temerosa que ainda lhe fugisse..
 

Se ele morresse, o que seria d’ela?
Dadá cuidava às vezes tristemente -
Se essa criança era como a estrela
Que guiava os Reis Magos no Oriente?
 

E entre esperanças e temores francos,
Lauro crescia cada vez mais lindo;
Quando falava, os seus dentinhos brancos
Lembravam à gente um bogari abrindo.
 

Um dia, ao acordar, Lauro queixou-se
De que o corpinho todo lhe doía.
A mãe cercou-o de um carinho doce:
O seu filhinho de que sofreria?
 

E ele chorava que fazia pena
Naquela alegre e límpida manhã,
Pálida a face como uma açucena,
E o róseo lábio a murmurar: “mamã”!
 

Dadá beijava aquela mão querida
E os pés e o rosto e o peito nu e a boca:
Queria ver se lhe incutia a vida
Naqueles beijos que lhe dava, louca!
 

O triste pobrezinho soluçava
Entre as carícias do materno afago;
E, em seus olhos, a morte esvoaçava
Bem como um corvo à tona azul de um lago.
 

Antes do sol pender sobre o horizonte
O querubim cessava de existir;
E alguém ainda lhe beijava a fronte:
Era Dadá a soluçar e a rir.
 

Estava louca. D’ora em diante, a vida,
Quem lhe traria ao ninho seu deserto?
Lauro morrera... Branca flor pendida
Caíra murcha num esquife aberto!
 

Ela bem vira quando carregavam
O meigo arcanjo dentro de um caixão...
Almas cruéis! Do seio lh’o arrancaram
E com ele também seu coração!
 

Há muitos anos que isto sucedeu,
Mas, entretanto, o que da morte a salva
É que Dadá, quando contempla o céu,
Diz que seu filho está na estrela d’Alva.
 

DOENTE
 

A lua veio... foi-se... e em breve ainda,
Há de voltar, a doce lua amada,
Sem que eu a veja, a minha fada linda,
Sem que eu a veja, a minha boa fada.
 

Ela há de vir, Ofélia desmaiada,
Sob as nuvens do céu na alvura infinda
Do seu branco roupão, noiva gelada,
Boiando à flor de um rio que não finda.
 

Ela há de vir, sem que eu a veja... Entanto,
Com que tristezas e saudoso encanto
Choro estas noites que passando vão...
 

Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno:
Olha que murcha à falta de sereno
O lírio roxo do meu coração!
 

SÚPLICA
 

Se tudo foge e tudo desaparece,
Se tudo cai ao vento da Desgraça,
Se a vida é o sopro que nos lábios passa
Gelando o ardor da derradeira prece;
 

Se o sonho chora e geme e desfalece
Dentro do coração que o amor enlaça,
Se a rosa murcha inda em botão, e a graça
Da moça foge quando a idade cresce;
 

Se Deus transforma em sua lei tão pura
A dor das almas que o ideal tortura
Na demência feliz de pobres loucos...
 

Se a água do rio para o oceano corre,
Se tudo cai, Senhor! por que não morre
A dor sem fim que me devora aos poucos?
 

Remetente: Walter Cid
 


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