HENRIQUE CASTRICIANO
NOTA (Extraida da 3ª edição
HORTO, 1936)
Auta de Souza nasceu
em Macaíba, pequena cidade do Rio Grande do Norte, em 12 de setembro
de 1876; educou-se no colégio “São Vicente de Paula”, em
Pernambuco, sob a direção de religiosas francesas; e faleceu
em 7 de fevereiro de 1901, na cidade de Natal. Uma biografia simples como
os seus versos e o seu coração...
Ela não conheceu
os obstáculos que encheram de tormento a existência de Marcelline
Desborde-Valmore. Desde muito cedo, porém, sentiu todo o horror
da morte. Aos quatorze anos, quando lhe apareceram os primeiros sintomas
do mal que a vitimou, não havia senão sombras em seu espírito;
era já órfã de pai e mãe, tendo assistido ao
espetáculo inesquecível do aniquilamento de um irmão
devorado pelas chamas, numa noite de assombro.
Assim, desde a infância,
o destino lhe apareceu como um enigma sem a possibilidade de outra decifração
que o luto.
Salvaram-na do desespero
a fé religiosa e o resignado exemplo da ignorada heroína
para quem escreveu o soneto A minha Avó, publicado neste volume.
Horto é, pois,
a história de uma grande dor. Formou-o a autora recordando, sentindo,
penando.
Em casa, o luto sucessivo;
no colégio, as litanias da Igreja; mais tarde, no campo, onde passou
o melhor tempo da atormentada existência, a paisagem triste do sertão
nos longos meses de seca, a compaixão pelos humildes, cuja miséria
tanto a comovia, a saudade dos diversos lugares em que esteve em busca
de melhoras aos padecimentos físicos...
Tudo isso concorreu
muitíssimo para agravar a maravilhosa sensibilidade, de seu temperamento
de mulher; e essa sensibilidade, à medida que a doença aumentava,
se ia tornando mais profunda, fazendo de um ser fragílimo o intérprete
de inúmeros corações desolados.
A primeira edição
do Horto, publicada em 1900, esgotou-se em dois meses. O livro foi recebido
com elogios pela melhor crítica do país; leram-no os intelectuais
com avidez; mas a verdadeira consagração veio do povo, que
se apoderou dele com devoto carinho, passando a repetir muitos de seus
versos ao pé dos berços, nos lares pobres e, até,
nas igrejas, sob a forma de “benditos” anônimos.
Auta, sem pensar
e sem querer, reproduzira a lápis, na chaise longue onde a prostrara
a doença, as emoções mais íntimas de nossa
gente: encontrará no próprio sofrimento a expressão
exata do sofrimento alheio.
E antes de finar-se
ouviu da boca de centenas de infelizes muitos dos versos que traçara
com os olhos lacrimosos, não raro para esquecer o desgosto de se
sentir vencida em plena mocidade.
Não teve cultura
literária vasta.
Recordando cenas
da meninice, vejo-a neste momento, aos oito anos, curvada sobre as paginas
da História de Carlos Magno, outrora muito popular nas fazendas
do Norte, livro cheio de façanhas inverosímeis, sem medida,
sem arte, escrito no pior dos estilos, - mas delicioso para quem o conheceu
na infância.
Lia-o Auta no campo,
os olhos ingenuamente maravilhados, para o mais ingênuo dos auditórios,
composto de mulheres do povo e de velhos escravos, todos filhos d’esse
formoso sertão que exerceu em seu espírito tão salutar
influência.
Depois, chegou a
vez das Primaveras, de Casimiro de Abreu.
Um pouco mais tarde,
no colégio, não leu outra cousa que os compêndios de
estudo e as obras de prêmio, de feição religiosa e
sentimental.
Nesse tempo, o seu
livro predileto foi um romance profundamente triste, Tebsima, episódio
lendário da primeira Cruzada.
Ao sair do internato,
onde aprendera bem as línguas francesa e inglesa e adquirira boas
noções de música e de desenho, começou a ler
alguns autores brasileiros, especialmente Gonçalves Dias e Luiz
Murat.
Estes dois grandes
sonhadores, porém, não tiveram ação decisiva
sobre seu espírito. Não sei mesmo como ela, que detestava
a feitura clássica de certos estilos, podia ler com satisfação
crescente o poeta dos Tymbiras. Nunca me explicou também o motivo
por que os versos tumultuosos de Luiz Murat constituíam verdadeiro
encanto para a sua alma tão meiga, tão cheia de religiosa
ternura.
Nos últimos
anos, as horas que podia dispensar ao convívio dos autores, consagrava-as
aos místicos, a Th. de Kempis, a Lamartine, a S. Theresa de Jesus.
A estes, associava Marco Aurélio, cujos Pensamentos muito concorreram
para aumentar a tolerância e a simpatia com que encarava os seres
e as cousas.
Tal é a história
da sua formação intelectual.
Pode-se, entretanto,
dizer sem exagero que o sofrimento foi o seu melhor guia.
A influência
das Irmãs de “São Vicente de Paula” é visível
em todo o livro.
O próprio
estilo, simples e claro desde as primeiras poesias, parece-me um produto
do esforço das mestras que lhe corrigiram os temas escolares, com
o bom senso e a medida dos franceses.
Mas, sem a dor que
lhe requintou a fé, Auta certamente não teria encontrado
a forma com que deu cor e relevo às visões de seu misticismo.
Assim, o Horto, em vez de uma coleção didática de
salmos católicos, encerra, com a tristeza de um pobre ser cruelmente
ferido pelo destino, perturbado em face do mistério da vida, a queixa
universal do sofrimento humano.
Nos últimos
versos, nota-se a estranha serenidade espiritual a que chegou nos derradeiros
dias, inspirando aos que a visitavam a mais religiosa veneração.
Via-se-lhe, então,
a alma através os olhos brilhantes sem torturas, sem lágrimas.
Naquele corpo desfeito,
tão leve que uma criança pudera conduzir, havia agora um
coração resignado de mártir, sentindo profundamente
o nada da vida, mas sem horror à morte. Realizaram-se o seu desejo:
“Não vês? Minh’alma é como a pena branca
“Que o vento amigo da poeira arranca
“E vai com ela assim, de ramo em ramo,
“Para um ninho gentil de gaturamo...
“Leva-me, ó coração, como esta pena
“De dor em dor até à paz serena.”
A tormenta se desfizera
ao pé do túmulo; e do naufrágio em que se abismou
esta singular existência, resta o Horto, livro de uma santa.
Paris, 4 de Agosto de 1910.
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