Batista de Lima
Os mosaicos de Thereza Leite
A narrativa de Maria Thereza Leite
revitaliza a relação personagem/espaço, principalmente apresentando
a casa de moradia como uma carapaça de proteção que o ser humano
transporta e transforma enquanto a vida pulsa. Revitaliza porque
geralmente se incrusta num ambiente onde antes a vida se esvaíra
sorrateira ou trágica. Sua chegada é para a reanimação desses
ambientes semimortos.
Thereza Leite escava na memória um
monturo de imagens partidas e começa a emendá-las. Daí surge a casa
de moradia. Mas dessa casa reconstruída surgem outras casas também
desmontadas que necessitam da sua perícia para ressussitá-las. São
imagens de pessoas depauperadas em colóquio com objetos em desuso
que suplicam por revivências. São pedras, tijolos, jarros, vidrilos,
cerâmicas, cristais, retratos e personagens, todos estiolados à
espera de mãos milagrosas que lhes animem. É um cascavilhar do que
foi varrido para o fundo do quintal. Esse monturo jaz na memória da
autora que através da escritura vai unindo lascas de vidro, cacos de
louça com frisos dourados, um pedaço de cristal partido, miçangas,
uma branca perna de louça – só uma – da bailarina da caixa de
música. Tudo o que fora jogado fora agora é reciclado pela memória,
revitalizado.
São contos escritos geralmente em
primeira pessoa, com final imprevisível mas fechado, com a
personagem principal fazendo parte de uma saga urbana onde seu
destino, muitas vezes está ligado ao destino dos outros, o que lhe
subtrai o livre arbítrio. Mas no caso do primeiro deles, “Mosaico”,
que dá nome a este seu primeiro livro, a personagem é uma deficiente
que recupera a vitalidade na construção da casa nova, de uma nova
carapaça. Clariceana nas suas intertextualidades, Thereza Leite se
esmera na limpeza do texto como a personagem Dona Alzira se empenha
na limpeza da casa. Quando Ana aparece, é para repovoar a antiga
casa em desuso e como um “Bagdá Café”, ela reinstaura a vida na casa
em desuso, como forma de reinstaurar a vida no seu corpo deficiente,
ou como Thereza instaura na escritura, a recuperação da saga que
retém na memória e que se não narrar se perde no ostracismo.
Há pois em Maria Thereza Leite, uma
estética do esboço. Uma impressão sobre uma estrutura que desmontada
vai dando lugar a outra. O texto é uma construção sobre fundações já
existentes. Se o personagem tem uma deficiência ou uma doença
incurável, é um ponto de partida para uma humanização dessa falta de
alguma coisa. Impressionista na sua técnica de narrar, vai pintando
o arcabouço memorial de onde herdou o quinhão mais precioso dos
ancestrais: as narrativas do ambiente familiar. Todos os bens
materiais foram dispensados quando da sua escolha de herança, só
desejou tomar posse das histórias que o pai contava, da cor azul das
coisas e das frases que escorregavam das páginas dos livros da velha
estante. O pior dos seus tormentos seria pois um dia não ter mais o
que contar e, principalmente, não ter a quem contar. Sua alma é sua
história, salvar essa alma é narrar sua história.
Quando a chamamos de clariceana nos
reportamos à atmosfera caseira que cria, mas principalmente, ao
conto “A angústia das árvores do parque”, que nos remete ao Jardim
Botânico carioca da nossa autora de origem ucraniana. Daí que o
“travo amargo na boca”, “o silêncio desesperador”, a audição de
“vozes ausentes”, “o dia nascido morto”, “os ossos molhados”, a
tepidez da tarde, o bonde de Santa Tereza, os fios de ovos, os
suores da meia idade, a conversa com as plantas, a tendência para um
antropomorfismo, o consumir-se tudo, leva a uma proximidade das duas
escritoras, como se conspirassem em conflito para nos fazerem suar
com ambas, engordurarmos com sua leitura, no saculejar do bonde da
vida. Thereza Leite escreve gordurosamente, sumarenta, uma narrativa
quente e úmida, tépida. Pinta com palavras, suores, lágrimas e seiva
que escorrem entre as frases.
“Quando nós éramos pássaros” é o belo
título de um dos contos que poderia muito bem ser o título do livro.
É nele onde mais pungente se torna o discurso do corpo flagelado
pelo tempo corrosivo. A corrosão está pois em tudo, até na
identificação das personagens, que geralmente são ele e ela, numa
universalização denunciadora da corrosão generalizada. É por isso
que a vida escorre liqüefeita pelos alicerces da memória quando as
pessoas recolhem-se à prisão de si próprias, afogam-se sufocadas de
si. A rotina da dona de casa é um dos profundos poços de afogamento
da mulher de meia idade. E a estranha lucidez dessa mulher escorre
do texto de Thereza a ponto de também sufocar o leitor que quer
encontrar o fundo do poço e não encontra terra nos pés. O
importante, portanto, em Thereza, não é apenas construir o texto,
mas é se por nele e chocar na sua tepidez as histórias que também
são dos seus leitores, são de todos nós.
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