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Jornal do Conto

Batista de Lima

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

14.12.2003


 


A literatura de cordel, do popular ao erudito



 

 

O cordel é uma literatura popular. Difícil portanto será encontrar o que há de erudito nesse tipo de literatura. Daí ser importante inicialmente definir sua nomenclatura para se ter um ponto de partida para o entendimento.

A definição de cordel que consideramos mais abrangente é a de Veríssimo de Melo (1982:13) quando afirma ser uma ´poesia narrativa, popular, impressa´. O fato de ser narrativa já estabelece uma ligação com o épico, com o clássico, com a função referencial da linguagem onde o que prevalece é a terceira pessoa gramatical.

Outros pontos em comum com o clássico são o ritmo, a rima, a metrificação e a composição da estrofe, geralmente em sextilha. Aparecem em menor escala, estrofes de sete versos e também oitavas e décimas. Com essas formas aparecem os mourões, os galopes à beira mar, as gemedeiras, os desafios.

São três os modelos de cordel, dependendo da origem: o da área rural, o da área urbana e o da metrópole (Rio e São Paulo). Os clássicos cordéis, os mais antigos são de origem rural. Sendo o poeta desse modelo o mais conservador dos cordelistas. Está sempre em defesa do poder dominante: do governo, do juiz, do padre, do delegado. Qualquer mudança social é motivo para seu ataque. Entre esses clássicos podemos citar Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, cujos folhetos foram comprados e divulgados por José Bernardo da Silva, da Tipografia São Francisco, de Juazeiro do Norte. Antes, Athayde havia comprado o espólio cordelista do pioneiro Leandro Gomes de Barros para repassá-lo comercialmente a José Bernardo da Silva.

Esse conservadorismo do Cordel remete-nos a um passado histórico em que o herói de origem medieval possui características épicas e o originário da Renascença vem revestido de caracteres picarescos. Os épicos são bem nascidos, os pícaros, marcados pela esperteza, são anti-heróis. Essa ligação à tradição histórica da Ibéria caracteriza o cordelista como um monarquista, armorial, sebastianista, muitas vezes visionário em busca da construção de um quinto império. Daí que vão se abeberar no cordel, escritores como Ariano Suassuna, Gerardo Melo Mourão, João Cabral de Melo Neto, Dias Gomes e Guimarães Rosa, que no seu personagem Diadorim, retoma o famoso cordel da infanta princesa que vai à guerra pois o pai tinha sete filhas e uma tinha que ir à guerra, já que não possuía filho homem.

Outra questão que atinge o cordel, principalmente o pesquisador, responde pela autenticidade autoral. Era comum os herdeiros de um cordelista venderem os direitos de um poeta a outro, que ao comprar o espólio passava a assiná-lo como autor. Exemplo bem patente da confusão que esse fenômeno provoca, está no acervo referente a três cordelistas de três momentos diferentes: Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e José Bernardo da Silva. Os familiares do primeiro venderam suas produções ao segundo que por sua vez teve toda sua herança em versos vendida ao José Bernardo. Comprar os direitos de um cordel era o passaporte para poder colocar seu próprio nome no frontispício da obra.

Além desse fenômeno, há o fato de que correm de boca em boca, quadras, versos, décimas, oitavas com autoria atribuída a vários autores, sem que se defina realmente a sua autoria original. Por exemplo, de quem é essa décima?

´Não me leves para a guerra
não me faça esta surpresa
pois não tenho natureza
de ver meu sangue na terra
me leve praquela serra
me bote lá nos buracos
pra eu conviver com os macacos
com sede e passando fome
depois escrevam meu nome
no livro dos homens fracos´

 

Outro caso interessante responde pelo nome de Zé Limeira. ´Poeta do absurdo´, como bem o qualifica Orlando Tejo (1974), que com seus versos de cunho surrealista, apresenta estrofes inteiras de pura poesia fescenina, imprópria para a declamação em salões respeitáveis. O que se comenta é que quando qualquer poeta popular produzia um desses textos e não tinha coragem de autorá-lo, dava-o de mão beijada a Zé Limeira que o assinava, assumindo sua autoria. Afirma-se também que um dos poetas que mais doou versos a Limeira fora Otacílio Batista Patriota, exímio cordelista, como seus irmãos Dimas e Lourival. O fato é que não se tem total certeza de que a poética atribuída a Zé Limeira seja originariamente sua. Afirma-se também que o próprio Orlando Tejo, principal divulgador de Zé Limeira, foi também responsável por muitos dos versos atribuídos ao chamado poeta do absurdo.
 

Assim como Zé Limeira outros poetas se utilizaram das fórmulas do cordel para apresentarem seus poemas, como é o caso do poeta e diplomata brasileiro Francisco Otaviano que num sistema de martelo elaborou seu famoso poema ´Ilusões da vida´ (1982:22).

´Quem passou pela vida em branca nuvem,
em plácido repouso, adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.´

 

A sextilha com rimas xaxaxa é bem característica do cordel. Nessa mesma situação limítrofe entre o clássico e o popular há casos como Catulo da Paixão Cearense, Rogaciano Leite e Patativa do Assaré. É comum se encontrar em Patativa sonetos clássicos ao lado de poemas populares nos moldes do cordel. E o que dizer de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto?
 

Esse meio termo entre o popular e o erudito sempre foi alvo dos críticos. Uns reclamando padronizações clássicas, outros, paradoxalmente, exigindo mais identidade com o popular. Essas críticas levam a uma reação dos poetas, como é o caso de Patativa em Cante lá que eu canto cá, e principalmente de Catulo da Paixão Cearense quando afirma:

´Zoilos! Parvos! Aretinos
Criticóides pequeninos!
Passadistas refratários!
Futuristas - legionários!
dos maiores desatinos!
Poetastros retardatários!
Reis e Príncipes cretinos!...

 

Por fim, o que se verifica, é que mesmo fazendo o verso popular, o poeta estabelece vínculo com o clássico de que tem conhecimento. Exemplo patente disso são essas duas décimas de Benone Conrado: (1995:360)

´Sequei todas as águas do Aqueronte,
Discuti muitas teses com Platão,
Dei escola a Ovídio de Nasão,
Fiz Narciso deixar a sua fonte;
Dei um óbulo na barca de Caronte,
Destronei alguns reis orientais;
Formulei direções horizontais,
Viajei de Changai a Bombaim;
Derrubei as muralhas de Pequim,
O que é que falta fazer mais?

- X -

Fui na lira melhor do que Orfeu
Combinei com Heródoto na História,
Superei toda Roma em oratória;
Disputei com Hortêncio, ele perdeu!
Dominei a espada de Teseu,
Promovi os poetas provençais,
Assisti de Guatama os funerais,
Confortei Arimar com Zoroastro,
Ensinei ditadura a Fidel Castro
O que é que me falta fazer mais?


 

Bibliografia

CEARENSE, Catulo da Paixão. Luar do Sertão e outros poemas escolhidos. Org. Guimarães Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 1965.

CONRADO, Benone. ´O que é que ainda falta fazer mais´. In: PEREIRA, Vanderley. De repente cantoria. Fortaleza: LCR, 1995.

LOPES, José Ribamar. Org. Literatura de Cordel; Antologia. Fortaleza: BN, 1982.

OTAVIANO, Francisco. ´Ilusões da vida´. In: LINHARES, Francisco et BATISTA, Otacílio. Antologia ilustrada dos contadores. Fortaleza: Edições UFC, 1982.

TEJO, Orlando. Zé Limeira, o poeta do absurdo. 3ª ed. João Pessoa: Iterplan, 1974.


 

 

 


 

14/08/2005