O cordel é uma
literatura popular. Difícil portanto será encontrar
o que há de erudito nesse tipo de literatura. Daí
ser importante inicialmente definir sua nomenclatura
para se ter um ponto de partida para o entendimento.
A definição de cordel
que consideramos mais abrangente é a de Veríssimo de
Melo (1982:13) quando afirma ser uma ´poesia
narrativa, popular, impressa´. O fato de ser
narrativa já estabelece uma ligação com o épico, com
o clássico, com a função referencial da linguagem
onde o que prevalece é a terceira pessoa gramatical.
Outros pontos em comum
com o clássico são o ritmo, a rima, a metrificação e
a composição da estrofe, geralmente em sextilha.
Aparecem em menor escala, estrofes de sete versos e
também oitavas e décimas. Com essas formas aparecem
os mourões, os galopes à beira mar, as gemedeiras,
os desafios.
São três os modelos de
cordel, dependendo da origem: o da área rural, o da
área urbana e o da metrópole (Rio e São Paulo). Os
clássicos cordéis, os mais antigos são de origem
rural. Sendo o poeta desse modelo o mais conservador
dos cordelistas. Está sempre em defesa do poder
dominante: do governo, do juiz, do padre, do
delegado. Qualquer mudança social é motivo para seu
ataque. Entre esses clássicos podemos citar Leandro
Gomes de Barros e João Martins de Athayde, cujos
folhetos foram comprados e divulgados por José
Bernardo da Silva, da Tipografia São Francisco, de
Juazeiro do Norte. Antes, Athayde havia comprado o
espólio cordelista do pioneiro Leandro Gomes de
Barros para repassá-lo comercialmente a José
Bernardo da Silva.
Esse conservadorismo
do Cordel remete-nos a um passado histórico em que o
herói de origem medieval possui características
épicas e o originário da Renascença vem revestido de
caracteres picarescos. Os épicos são bem nascidos,
os pícaros, marcados pela esperteza, são
anti-heróis. Essa ligação à tradição histórica da
Ibéria caracteriza o cordelista como um monarquista,
armorial, sebastianista, muitas vezes visionário em
busca da construção de um quinto império. Daí que
vão se abeberar no cordel, escritores como Ariano
Suassuna, Gerardo Melo Mourão, João Cabral de Melo
Neto, Dias Gomes e Guimarães Rosa, que no seu
personagem Diadorim, retoma o famoso cordel da
infanta princesa que vai à guerra pois o pai tinha
sete filhas e uma tinha que ir à guerra, já que não
possuía filho homem.
Outra questão que
atinge o cordel, principalmente o pesquisador,
responde pela autenticidade autoral. Era comum os
herdeiros de um cordelista venderem os direitos de
um poeta a outro, que ao comprar o espólio passava a
assiná-lo como autor. Exemplo bem patente da
confusão que esse fenômeno provoca, está no acervo
referente a três cordelistas de três momentos
diferentes: Leandro Gomes de Barros, João Martins de
Athayde e José Bernardo da Silva. Os familiares do
primeiro venderam suas produções ao segundo que por
sua vez teve toda sua herança em versos vendida ao
José Bernardo. Comprar os direitos de um cordel era
o passaporte para poder colocar seu próprio nome no
frontispício da obra.
Além desse fenômeno,
há o fato de que correm de boca em boca, quadras,
versos, décimas, oitavas com autoria atribuída a
vários autores, sem que se defina realmente a sua
autoria original. Por exemplo, de quem é essa
décima?
´Não me leves para a guerra
não me faça esta surpresa
pois não tenho natureza
de ver meu sangue na terra
me leve praquela serra
me bote lá nos buracos
pra eu conviver com os macacos
com sede e passando fome
depois escrevam meu nome
no livro dos homens fracos´
Outro caso
interessante responde pelo nome de Zé Limeira.
´Poeta do absurdo´, como bem o qualifica Orlando
Tejo (1974), que com seus versos de cunho
surrealista, apresenta estrofes inteiras de pura
poesia fescenina, imprópria para a declamação em
salões respeitáveis. O que se comenta é que quando
qualquer poeta popular produzia um desses textos e
não tinha coragem de autorá-lo, dava-o de mão
beijada a Zé Limeira que o assinava, assumindo sua
autoria. Afirma-se também que um dos poetas que mais
doou versos a Limeira fora Otacílio Batista
Patriota, exímio cordelista, como seus irmãos Dimas
e Lourival. O fato é que não se tem total certeza de
que a poética atribuída a Zé Limeira seja
originariamente sua. Afirma-se também que o próprio
Orlando Tejo, principal divulgador de Zé Limeira,
foi também responsável por muitos dos versos
atribuídos ao chamado poeta do absurdo.
Assim como Zé Limeira
outros poetas se utilizaram das fórmulas do cordel
para apresentarem seus poemas, como é o caso do
poeta e diplomata brasileiro Francisco Otaviano que
num sistema de martelo elaborou seu famoso poema
´Ilusões da vida´ (1982:22).
´Quem passou pela vida em branca nuvem,
em plácido repouso, adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.´
A sextilha com rimas
xaxaxa é bem característica do cordel. Nessa mesma
situação limítrofe entre o clássico e o popular há
casos como Catulo da Paixão Cearense, Rogaciano
Leite e Patativa do Assaré. É comum se encontrar em
Patativa sonetos clássicos ao lado de poemas
populares nos moldes do cordel. E o que dizer de
Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto?
Esse meio termo entre
o popular e o erudito sempre foi alvo dos críticos.
Uns reclamando padronizações clássicas, outros,
paradoxalmente, exigindo mais identidade com o
popular. Essas críticas levam a uma reação dos
poetas, como é o caso de Patativa em Cante lá que eu
canto cá, e principalmente de Catulo da Paixão
Cearense quando afirma:
´Zoilos! Parvos! Aretinos
Criticóides pequeninos!
Passadistas refratários!
Futuristas - legionários!
dos maiores desatinos!
Poetastros retardatários!
Reis e Príncipes cretinos!...
Por fim, o que se
verifica, é que mesmo fazendo o verso popular, o
poeta estabelece vínculo com o clássico de que tem
conhecimento. Exemplo patente disso são essas duas
décimas de Benone Conrado: (1995:360)
´Sequei todas as águas do Aqueronte,
Discuti muitas teses com Platão,
Dei escola a Ovídio de Nasão,
Fiz Narciso deixar a sua fonte;
Dei um óbulo na barca de Caronte,
Destronei alguns reis orientais;
Formulei direções horizontais,
Viajei de Changai a Bombaim;
Derrubei as muralhas de Pequim,
O que é que falta fazer mais?
- X -
Fui na lira melhor do que Orfeu
Combinei com Heródoto na História,
Superei toda Roma em oratória;
Disputei com Hortêncio, ele perdeu!
Dominei a espada de Teseu,
Promovi os poetas provençais,
Assisti de Guatama os funerais,
Confortei Arimar com Zoroastro,
Ensinei ditadura a Fidel Castro
O que é que me falta fazer mais?
Bibliografia
CEARENSE, Catulo da Paixão. Luar do Sertão e outros
poemas escolhidos. Org. Guimarães Martins. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1965.
CONRADO, Benone. ´O que é que ainda falta fazer
mais´. In: PEREIRA, Vanderley. De repente cantoria.
Fortaleza: LCR, 1995.
LOPES, José Ribamar. Org. Literatura de Cordel;
Antologia. Fortaleza: BN, 1982.
OTAVIANO, Francisco. ´Ilusões da vida´. In:
LINHARES, Francisco et BATISTA, Otacílio. Antologia
ilustrada dos contadores. Fortaleza: Edições UFC,
1982.
TEJO, Orlando. Zé Limeira, o poeta do absurdo. 3ª
ed. João Pessoa: Iterplan, 1974.