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Bella Jozef

Uma estética 
da inteligência 
in Jornal de Brasil,
Idéias, 05.05.1999
 

Não se pode falar de literatura sem citar Jorge Luis Borges. Nem sempre foi assim. Em sua Autobiografia, Borges conta que, um dia de 1937, entrou na livraria Viau y Zona que no ano anterior editara seu livro de ensaios Historia de la eternidad e perguntou quantos exemplares haviam vendido. A resposta: 34. Sua reação foi de alívio: podia imaginar 34 leitores. 

A comemoração do centenário de nascimento de Jorge Luis Borges é ocasião propícia para refletir sobre sua obra em que a prosa rompe com a tradição retórica do século 19, liberta a narrativa dos emplastros que a ligavam ao regionalismo tradicional e sobre a enorme influência que seus poemas exerceram na caracterização inicial do movimento de vanguarda na Argentina. 

Na obra borgiana, o mundo ficcional, onde a medida de todas as coisas é um relativismo que outorga validez ao inverossímil e ao absurdo, não é uma evasão do real: é, antes, um retorno a ele, provando que existe e que também é um sonho. A realidade concreta dos contos borgianos é o que o mundo concreto significa para os místicos: um sistema de símbolos. 
Nos sistemas teológicos e proposições metafísicas, Borges vê um infatigável esforço do espírito humano em compreender e interpretar o universo. 

Negando a validez da metafísica, aplica-a na literatura, para confirmar o caráter alucinatório do mundo. Ao confundir o individual com o genérico, o relativo de uma realidade singular com o absoluto de uma abstração, Borges amplia o âmbito de seus relatos: ao dar-lhes simultaneidade e elasticidade, fala-nos dos mundos que a linguagem pode criar e torna-os fantásticos e irreais. 

Este o jogo predileto de Borges: a interpenetração ficção/realidade. Numa atitude lúdica, começa reconhecendo que a linguagem é linguagem, que um conto é uma ficção e que escrever é uma atitude imaginária. Quando escreve, assume a literatura como criação, a linguagem como invenção e a ficção como jogo, jogo de identificação e de oposição, entre o referente imaginário do texto e o eu do leitor. Além do mais, o lúdico permite à arte mascarar-se diante do referencial, como instrumento de afirmação criadora, aberta, diante de uma realidade que pretende anular a plenitude do ser no mundo. A palavra é o único meio de esconder e revelar o universo. 

A obra borgiana constitui-se em uma literatura que se constrói sobre a literatura e se explica a partir de si mesma. Como toda escritura, apresenta-se, com freqüência, como obra dentro da obra. Borges realiza a perspectiva infinita de textos que remetem a outros. No ensaio "Magias parciais do Quixote" indaga: "Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as mil e uma noites no livro das Mil e uma noites? E responde: "Creio haver dado com a causa: tais invenções sugerem que os caracteres de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores podemos ser fictícios". 

As dificuldades do processo de criação tematizam-se na produção do texto, onde realiza uma reflexão sobre a própria criação, que acentua o papel do leitor. Ao passar a falar de si, a literatura oferece uma nova visão do mundo, mais rica e mais complexa, para que o leitor, chamado a participar ativamente, manipule os elementos da obra, isto é, a leitura passa a ser uma escritura. Pela tomada de consciência das condições de criação, o leitor é chamado. Em sua teoria da leitura, Borges torna o receptor participante ativo do processo criador. Uma literatura, afirma, não difere pela forma em que é escrita, mas pela forma em que é lida. O momento da escrita é limitado e fixo no tempo. Em troca, o tempo da leitura é infinito e será enriquecido pela memória dos leitores. Somos contemporâneos - como leitores - de toda a literatura e tornamos contemporâneos todos os autores entre si. No leitor convivem Shakespeare e Kafka, Platão e Proust. Por isso, em um leitor, pode resumir-se toda a literatura e toda a cultura. No prólogo de História universal da infâmia (1935), escreve: "Ler [...] é uma atividade posterior à de escrever; mais resignada, mais civil, mais intelectual". 

Ao prazer de ler soma-se o desvelamento do processo da escritura: não é por casualidade que uma das obras de Borges se intitula O fazedor (El hacedor). A auto-reflexão reveste-se de várias modalidades na obra borgiana, que levam o leitor a criar um mundo ficcional através do imaginário. 
Na literatura borgiana o narrador confere uma significação ao mundo de seus personagens. Um tempo e um espaço se abrem, interminavelmente, desgarrando-se do real e do histórico, realizando-se no infinito e regidos por leis próprias. 

Cada escritor, segundo Borges, nada mais faz do que repetir os seus antecessores, sem nenhuma originalidade, e já Cervantes defendia essa posição. Anulado o princípio de identidade, Borges nega a originalidade, nega que algo do muito que foi escrito possa considerar-se patrimônio individual de um autor. O livro não tem realidade e só se impõe por sua multiplicação possível. Assim como cada mito só tem sentido em confronto com os demais, cada livro só terá significação em relação com outro. 

Cada texto é um campo magnético em que se cruzam os textos que o autor cita ou a que alude, plagia ou repete e que vêm de uma produção coletiva como bem sabiam os clássicos e Mallarmé e Valéry redescobriram. 

Na utopia borgiana gera-se sua anti-utopia: o imaginário e o onírico evidenciam seu caráter ilusório. O caminho é refeito e a redução realizada transforma os elementos culturais estabelecendo nova escrita. A lei de existência da literatura desliza-se pelo canal temporal imposto pela linguagem. A realidade não coincide com o imediato como a pátria não consiste em presenças óbvias. Borges desrealiza a realidade para projetar outra mais essencial; desmonta o texto numa problematização de nossa relação com o mundo. Escreve uma obra que ele mesmo refuta e corrige. A dúvida inspirada pela realidade é instaurada. Esta visão é um modo de afastar o definitivo e representa também um triunfo sobre a linguagem no sentido de representar o irrepresentável e dizer o indizível. Reflete em sua obra o impasse da literatura moderna ante o "dizer" uma nova realidade. 

O texto de Borges mostra todas as contradições da literatura. Este procedimento, que chamamos de paródico, é irônica desmitificação do passado mas não sua destruição. O narrador deixa de ser o porta-voz de uma tradição: ele a desconstrói e sob suas ruínas estabelece com o leitor o sentido final do texto. 

Borges, fingindo-se comentador de livros inexistentes, reduz a tradição ocidental a fragmentos, comentários, verbetes de uma enciclopédia. Faz-se passar por glosador e comentarista de histórias alheias, que espera evitar com a camuflagem da recensão erudita, a invenção de notas bibliográficas ou a comunicação científica. Elaborou,assim, comentários de leitor atento, irônico e erudito. Seu modelo estilístico é o ascetismo anti- retórico dos ingleses. Alude a uma totalidade que nega e revela-nos o agnóstico mundo da dúvida. Por trás das citações e invocações, o diálogo apaixonado com os grandes escritores do passado. Sua concepção apóia-se sobre a identidade universal de todas as coisas, sobre a enumeração que acumula a multiplicidade para descobrir a presença do único e sempre igual. 

Tudo o que escreveu parte do fato estético e de seu modo de conceber a literatura, isto é, de que a arte é uma convenção governada pelas leis do gosto. Compreender o mundo como um fenômeno estético é, de certa forma, um modo de afirmá-lo como uma criação que, no caso de Borges e de outros escritores contemporâneos, implica não somente num criador como um número definido de criadores, que o inventam constantemente. Criou uma obra de homogeneidade interna, que impede a distinção entre ensaio e ficção, abandonada pelo próprio Borges com a "escritura de notas sobre livros imaginários". 

O labiríntico, plural e complexo universo borgiano é o de um escritor de fértil inteligência, mistérios e saberes, contraditório manipulador de palavras que faz coexistirem idéias, fontes heteróclitas submetidas a um tratamento estético, à ordem do imaginário, em prodigiosa capacidade combinatória. 

Sua crítica confunde, estimula e provoca, numa visão pessoal, produto de sua própria intuição, em textos classificados por Foucault de "inquietantes" e convencido da vaidade da crítica literária, como costuma ser praticada. Considera a crítica - como os esquemas ilusórios para interpretar o universo - tão fictícia como a poesia ou os contos. 

A obra borgiana reflete sua cosmovisão. Mas acima da deslumbrante riqueza da linguagem, além da enorme capacidade inventiva, o aspecto mais comovente é o tremor da confissão íntima e discreta, lúcida e mágica, com que Borges nos faz sentir que nos está abrindo as portas do universo,para revelar-nos os múltiplos aspectos do ser humano. 

Em meu livro Jorge Luis Borges afirmo que ler Borges é uma das aventuras mais fascinantes da liberdade criadora. Após uma entrevista (publicada no JB em 1974 e recolhida em livro), dei-me conta da poderosa lição de vida e de literatura que havia acabado de ouvir: que "os livros não são espelho do mundo mas uma coisa a mais acrescentada ao mundo". Assim pode-se compreender melhor o lugar de Borges em todos os pequenos imaginários individuais e na história da cultura ocidental. 


Bella Jozef é professora emérita da UFRJ, crítica e especialista na obra de Jorge Luis Borges. O texto é um resumo da conferência que pronunciou na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em abril deste ano, 1999. 




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