Casimiro de Brito


Com Pessoa no Martinho da Arcada

Também eu me sentei, anos a fio, à mesa de Pessoa no Martinho da Arcada e olhei para dentro do novelo emaranhado da sua vida. Não há nada para desenrolar, concluímos. Corriam os anos setenta oitenta e os meus dias eram uma concha recheada de metáforas cotações enigmas letras de câmbio câmbio de afectos graffitti estatísticas enquanto nas ruas de Lisboa a revolução rolava ao sabor das marés e das brisas agitadas pelo patrão Vasques e por outras abelhas mestras: "Governa quem é alegre(...) para ser triste é preciso sentir". Também eu tomei café de costas viradas para o Tejo e encontrei o meu sossego no desassossego de Soares como se fôssemos o mesmo guarda-livros cansado que descia a Rua Augusta e depois se dividia em dois, ele a caminho da Rua da Madalena, eu da Rua do Ouro, onde escrevíamos apressadas sílabas no verso dos papéis comerciais que nos pagavam o pão. Do meu gabinete eu via o "lago azul" do Tejo, ele não. O que mais me fascina nesta fotografia é a página que o poeta lê como se fosse a mãe louca que embala um filho morto. Uma tábua "todos os papéis estão brancos" "todas as mensagens se adivinham" onde eu posso entrar e entrava nesses dias quando me cansava de caminhar nas ruas baixas que vão dar ao Cais das Colunas e então sentava-me na sua cadeira e misturava como se fossem obscuras folhas de café as palavras dele e as minhas: Sofro de não sofrer e sobre a morte escrevo em seu trabalho de não saber sofrer lavrando-a enquanto a vida visito. Vivo ou finjo que vivo? O discurso do corpo canta, uma vaga aragem que sai fresca do calor do dia e me faz esquecer tudo e com as aves resvalo e com os rios... Incontáveis as vezes em que o meu cansaço da bolsa e da vida, dos ruídos da baixa e dos barcos que partiam no azul nevoeiro se aconchegava na página desconhecida como se fosse um velho buraco de família uma espécie de sono metafórico uma imersão em águas antigas que exerciam em mim um vago domínio. E então eu lia o que ele talvez ali estivesse lendo: "Nem uma saudade já me resta dos búzios à beira dos mares" e também eu me sentia nesses momentos o sócio minoritário de um pequeno comércio de poetas sentados na bruma: havia um que buscava o mar nos búzios, outro que partia para as praias onde havia búzios e ouvia o mar "só e calmo", como quem habita um aroma paciente. Também eu escrevi versos como se fossem lançamentos de escrita, "como cuidado e indiferença": havia que fundir-me, entrar para dentro da areia indizível; havia que pesar o ouro das palavras sabendo que pesava cinza. "O universo não é meu", lia Pessoa na página em que não sei o que lia, o universo "sou eu" — fonte sonolenta que se bebe a si própria e mais nada. Também a mim me doeu "a cabeça e o universo" nesses dias em que fui abandonado à tona de água como se a água tivesse um dentro e um fora e os cabelos que me foram caindo não dissessem que tudo são cabelos correndo como rios um pouco loucos de um lado para o outro — "uma vaga doença", "um prenúncio de morte" que não tem outro mistério além do mistério de partirem barcos. Também eu me sentei à mesa de Pessoa no Martinho da Arcada enquanto lá fora chovia "como se houvesse chovido(... ) desde a primeira página do mundo" e o que faço agora é vê-lo estar lendo um nada que é tudo basta olhar para o olhar do amigo que sobre o poeta se debruça, mudo. O enigma que vê outro enigma no palco ainda verde e já em ruína.

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