Castro Alves

AS TREVAS

(Traduzido de Lord Byron) A meu amigo, o DR. Franco Meireles, inspirado tradutor das "Melodias Hebraicas".
Tive um sonho que em tudo não foi sonho!... O sol brilhante se apagava: e os astros, Do eterno espaço na penumbra escura, Sem raios, e sem trilhos, vagueavam. A terra fria balouçava cega E tétrica no espaço ermo de lua. A manhã ia, vinha... e regressava... Mas não trazia o dia! Os homens pasmos Esqueciam no horror dessas ruínas Suas paixões: E as almas conglobadas Gelavam-se num grito de egoísmo Que demandava "luz". Junto às fogueiras Abrigavam-se. . . e os tronos e os palácios, Os palácios dos reis, o albergue e a choça Ardiam por fanais. Tinham nas chamas As cidades morrido. Em torno às brasas Dos seus lares os homens se grupavam, P'ra à vez extrema se fitarem juntos. Feliz de quem vivia junto às lavas Dos vulcões sob a tocha alcantilada! Hórrida esp'rança acalentava o mundo! As florestas ardiam! ... de hora em hora Caindo se apagavam; crepitando, Lascado o tronco desabava em cinzas. E tudo... tudo as trevas envolviam. As frontes ao clarão da luz doente Tinham do inferno o aspecto... quando às vezes As faíscas das chamas borrifavam-nas. Uns, de bruços no chão, tapando os olhos Choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros — Firmando a barba, desvairados riam. Outros correndo à toa procuravam O ardente pasto p'ra funéreas piras. Inquietos, no esgar do desvario, Os olhos levantavam p'ra o céu torvo, Vasto sudário do universo — espectro —, E após em terra se atirando em raivas, Rangendo os dentes, blásfemos, uivavam! Lúgubre grito os pássaros selvagens Soltavam, revoando espavoridos Num vôo tonto co'as inúteis asas! As feras 'stavam mansas e medrosas! As víboras rojando s'enroscavam Pelos membros dos homens, sibilantes, Mas sem veneno... a fome lhes matavam! E a guerra, que um momento s'extinguira, De novo se fartava. Só com sangue Comprava-se o alimento, e após à parte Cada um se sentava taciturno, P'ra fartar-se nas trevas infinitas! Já não havia amor! ... O mundo inteiro Era um só pensamento, e o pensamento Era a morte sem glória e sem detença! O estertor da fome apascentava-se Nas entranhas ... Ossada ou carne pútrida Ressupino, insepulto era o cadáver. Mordiam-se entre si os moribundos Mesmo os cães se atiravam sobre os donos, Todos exceto um só... que defendia O cadáver do seu, contra os ataques Dos pássaros, das feras e dos homens, Até que a fome os extinguisse, ou fossem Os dentes frouxos saciar algures! Ele mesmo alimento não buscava ... Mas, gemendo num uivo longo e triste, Morreu lambendo a mão, que inanimada Já não podia lhe pagar o afeto. Faminta a multidão morrera aos poucos. Escaparam dous homens tão-somente De uma grande cidade. E se odiavam. ... Foi junto dos tições quase apagados De um altar, sobre o qual se amontoaram Sacros objetos p'ra um profano uso, Que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas Reunindo nas mãos frias de espectros, De seus sopros exaustos ao bafejo Uma chama irrisória produziram! ... Ao clarão que tremia sobre as cinzas Olharam-se e morreram dando um grito. Mesmo da própria hediondez morreram, Desconhecendo aquele em cuja fronte Traçara a fome o nome de Duende! O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida, Populosa tornou-se numa massa Sem estações, sem árvores, sem erva. Sem verdura, sem homens e sem vida, Caos de morte, inanimada argila! Calaram-se o Oceano, o rio, os lagos! Nada turbava a solidão profunda! Os navios no mar apodreciam Sem marujos! os mastros desabando Dormiam sobre o abismo, sem que ao menos Uma vaga na queda alevantassem, Tinham morrido as vagas! e jaziam As marés no seu túmulo... antes delas A lua que as guiava era já morta! No estagnado céu murchara o vento; Esvaíram-se as nuvens. E nas trevas Era só trevas o universo inteiro.

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