Castro Alves

É TARDE

Olha-me, ó virgem, a fronte! Olha-me os olhos sem luz! A palidez do infortúnio Por minhas faces transluz; Olha, ó virgem — não te iludas — Eu só tenho a lira e a cruz. Junqueira Freire É tarde! É muito tarde! Mont'Alverne
É tarde! É muito tarde! O templo é negro... O fogo-santo já no altar não arde. Vestal! não venhas tropeçar nas piras... É tarde! É muito tarde! Treda noite! E minh'alma era o sacrário! A lâmpada do amor velava entanto, Virgem flor enfeitava a borda virgem Do vaso sacrossanto. Quando Ela veio — a negra feiticeira — A libertina, lúgubre bacante, Lascivo olhar, a trança desgrenhada, A roupa gotejante. Foi minha crença — o vinho dessa orgia, Foi minha vida — a chama que apagou-se, Foi minha mocidade — o toro lúbrico, Minh'alma — o tredo alcouce. E tu, visão do céu! Vens tateando O abismo onde uma luz sequer não arde? Ai! não vás resvalar no chão lodoso... É tarde! É muito tarde! Ai! não queiras os restos do banquete! Não queiras esse leito conspurcado! Sabes? meu beijo te manchara os lábios Num beijo profanado. A flor do lírio de celeste alvura Quer da lucíola o pudico afago... O cisne branco no arrufar das plumas Quer o aljôfar do lago. É tarde! A rola meiga do deserto Faz o ninho na moita perfumada... Rola de amor! não vás ferir as asas Na ruína gretada. Como o templo, que o crime encheu de espanto, Êrmo e fechado ao fustigar do norte, Nas ruínas desta alma a raiva geme... E cresce o cardo — a morte —. Ciúme! dor! sarcasmo! — Aves da noite! Vós povoais-me a solidão sombria, Quando nas trevas a tormenta ulula Um uivo de agonia! ... ................................................................. É tarde! Estrela-d'alva! o lago é turvo. Dançam fogos no pântano sombrio. Pede a Deus que dos céus as cataratas Façam do brejo — um rio! Mas não!... Somente as vagas do sepulcro Hão de apagar o fogo que em mim arde... Perdoa-me, Senhora!... Eu sei que morro... É tarde! É muito tarde!...

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