Luís Vaz de Camões
Os Lusíadas 
Canto Primeiro                                                           Parte  3 
 
 
71 
        Tamanho o ódio foi, e a má vontade, 
        Que aos estrangeiros súbito tomou, 
        Sabendo ser sequazes da verdade, 
        Que o Filho de David nos ensinou. 
        ó segredos daquela Eternidade, 
        A quem juízo algum nunca alcançou! 
        Que nunca falte um pérfido inimigo 
        Aqueles de quem foste tanto amigo! 
 

72 -   ( Retira-se o Regedor ) 

        Partiu-se Disto enfim coa companhia, 
        Das naus o falso Mouro despedido, 
        Com enganosa e grande cortesia, 
        Com gesto ledo a todos, e fingido. 
        Cortaram os batéis a curta via 
        Das águas de Neptuno, e recebido 
        Na terra do obsequente ajuntamento 
        Se foi o Mouro ao cógnito aposento. 
 

73 -    Ódio de Baco aos Portugueses 
        Do claro assento etóreo o grão Tebano, 
        Que da paternal coxa foi nascido, 
        Olhando o ajuntamento Lusitano 
        Ao Mouro ser molesto e avorrecido, 
        No pensamento cuida um falso engano, 
        Com que seja de todo destruído. 
        E enquanto isto só na alma imaginava, 
        Consigo estas palavras praticava: 
 

74 -   ( Solilóquio de Baco ) 

        "Está do fado já determinado, 
        Que tamanhas vitórias, tão famosas, 
        Hajam os Portugueses alcançado 
        Das Indianas gentes belicosas. 
        E eu só, filho do Padre sublimado, 
        Com tantas qualidades generosas,  
        Hei de sofrer que o fado favoreça 
        Outrem, por quem meu nome se escureça? 
 

75 
        "Já quiseram os Deuses que tivesse 
        O filho de Filipo nesta parte 
        Tanto poder, que tudo submetesse 
        Debaixo de seu jugo o fero Marte. 
        Mas há-se de sofrer que o fado desse 
        A tão poucos tamanho esforço e arte, 
        Que eu co'o grão Macedônio, e o Romano, 
        Demos lugar ao nome Lusitano? 
 

76 
        "Não será assim, porque antes que chegado 
        Seja este Capitão, astutamente 
        Lhe será tanto engano fabricados 
        Que nunca veja as partes do Oriente. 
        Eu descerei à Terra, e o indignado 
        Peito revolverei da Maura gente; 
        Porque sempre por via irá direita 
        Quem do oportuno tempo se aproveita." 
 

77 -   ( Disfarce de Baco para Perder os Portugueses ) 

        Isto dizendo, irado e quase insano, 
        Sobre a terra africana descendeu, 
        Onde vestindo a forma e gesto humano, 
        Para o Prasso sabido se moveu. 
        E por melhor tecer o astuto engano, 
        No gesto natural se converteu 
        Dum Mouro, em Moçambique conhecido 
        Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido. 
 

78 -  ( Intrigas de um Mouro Contra os Portugueses ) 

        E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas 
        A sua falsidade acomodadas, 
        Lhe diz como eram gentes roubadoras, 
        Estas que ora de novo são chegadas; 
        Que das nações na costa moradoras 
        Correndo a fama veio que roubadas 
        Foram por estes homens que passavam, 
        Que com pactos de paz sempre ancoravam. 
 

79 
        E sabe mais, lhe diz, como entendido 
        Tenho destes cristãos sanguinolentos, 
        Que quase todo o mar têm destruído 
        Com roubos, com incêndios violentos; 
        E trazem já de longe engano urdido 
        Contra nós; e que todos seus intentos 
        São para nos matarem e roubarem, 
        E mulheres e filhos cativarem. 
 

80 -   ( Aconselha ao Regedor uma Cilada ) 

        "E também sei que tem determinado 
        De vir por água a terra muito cedo 
        O Capitão dos seus acompanhado, 
        Que da tensão danada nasce o medo. 
        Tu deves de ir também co'os teus armado 
        Esperá-lo em cilada, oculto e quedo; 
        Porque, saindo a gente descuidada, 
        Cairão facilmente na cilada. 
 

81 -    ( Outro Estratagema Contra os Portugueses ) 

        "E se inda não ficarem deste jeito 
        Destruídos, ou mortos totalmente 
        Eu tenho imaginado no conceito 
        Outra manha e ardil, que te contente: 
        Manda-lhe dar piloto, que de jeito 
        Seja astuto no engano, e tão prudente, 
        Que os leve aonde sejam destruídos, 
        Desbaratados, mortos, ou perdidos." 
 

82 
        Tanto que estas palavras acabou, 
        O Mouro, nos tais casos sábio e velho, 
        Os braços pelo colo lhe lançou, 
        Agradecendo muito o tal conselho; 
        E logo nesse instante concertou 
        Para a guerra o belígero aparelho, 
        Para que ao Português se lhe tornasse 
        Em roxo sangue a água, que buscasse. 
 

83 
        E busca mais, para o cuidado engano, 
        Mouro, que por piloto à nau lhe mande, 
        Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano, 
        De quem fiar-se possa um feito grande. 
        Diz-lhe que acompanhando o Lusitano, 
        Por tais costas e mares com ele ande, 
        Que, se daqui escapar, que lá diante 
        Vá cair onde nunca se alevante. 
 

84 -   ( Vai o Gama a Terra Buscar Água ) 

        Já o raio Apolíneo visitava 
        Os montes Nabatêos acendido, 
        Quando o Gama, colos seus determinava 
        De vir por água a terra apercebido. 
        A gente nos batéis se concertava, 
        Como se fosse o engano já sabido: 
        Mas pode suspeitar-se facilmente, 
        Que o coração pressago nunca mente. 
 

85 
        E mais também mandado tinha a terra, 
        De antes, pelo piloto necessário, 
        E foi-lhe respondido em som de guerra, 
        Caso do que cuidava mui contrário; 
        Por isto, e porque sabe quanto erra 
        Quem se crê de seu pérfido adversário, 
        Apercebido vai como podia, 
        Em três batéis somente que trazia. 
 

86 -    Emboscada dos Mouros 
        Mas os Mouros que andavam pela praia, 
        Por lhe defender a água desejada, 
        Um de escudo embraçado e de azagaia, 
        Outro de arco encurvado e seta ervada, 
        Esperam que a guerreira gente saia, 
        Outros muitos já postos em cilada. 
        E, porque o caso leve se lhe faça, 
        Põem uns poucos diante por negaça, 
 

87 -   ( Escaramuça ) 

        Andam pela ribeira alva, arenosa, 
        Os belicosos Mouros acenando 
        Com a adarga e co’a hástia perigosa, 
        Os fortes Portugueses incitando. 
        Não sofre muito a gente generosa 
        Andar-lhe os cães os dentes amostrando. 
        Qualquer em terra salta tão ligeiro, 
        Que nenhum dizer pode que é primeiro. 
 

88 
        Qual no corro sanguino o ledo amante, 
        Vendo a formosa dama desejada, 
        O touro busca, e pondo-se diante, 
        Salta, corre, sibila, acena, e brada, 
        Mas o animal atroce, nesse instante, 
        Com a fronte cornígera inclinada, 
        Bramando duro corre, e os olhos cerra, 
        Derriba, fere e mata, e põe por terra: 
 

89 -   ( Atiram os Portugueses Contra os Mouros ) 

        Eis nos batéis o fogo se levanta 
        Na furiosa e dura artilharia, 
        A plúmbea péla mata, o brado espanta, 
        Ferido o ar retumba e assovia: 
        O coração dos Mouros se quebranta, 
        O temor grande o sangue lhe resfria. 
        Já foge o escondido de medroso, 
        E morre o descoberto aventuroso. 
 

90 -   ( Duro Castigo Infligido aos Mouros )  

        Não se contenta a gente Portuguesa, 
        Mas seguindo a vitória estrui e mata; 
        A povoação, sem muro e sem defesa, 
        Esbombardeia, acende e desbarata. 
        Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa, 
        Que bem cuidou comprá-la mais barata; 
        Já blasfema da guerra, e maldizia, 
        O velho inerte, e a mãe que o filho cria. 
 

91 -  ( Fogem os Mouros ) 

        Fugindo, a seta o Mouro vai tirando 
        Sem força, de covarde e de apressado, 
        A pedra, o pau, e o canto arremessando; 
        Dá-lhe armas o furor desatinado. 
        Já a ilha e todo o mais desemparando, 
        A terra firme foge amedrontado; 
        Passa e corta do mar o estreito braço, 
        Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço 
 

92 
        Uns vão nas almadias carregadas, 
        Um corta o mar a nado diligente, 
        Quem se afoga nas ondas encurvadas, 
        Quem bebe o mar, e o deita juntamente. 
        Arrombam as miúdas bombardadas 
        Os pangaios subtis da bruta gente: 
        Desta arte o Português enfim castiga 
        A vil malícia, pérfida, inimiga. 
 

93 
        Tornam vitoriosos para a armada, 
        Co'o despojo da guerra e rica presa, 
        E vão a seu prazer fazer aguada, 
        Sem achar resistência, nem defesa. 
        Ficava a Maura gente magoada, 
        No ódio antigo mais que nunca acesa; 
        E vendo sem vingança tanto dano, 
        Somente estriba no segundo engano. 
 

94 -  ( Paz Simulada e Falso Piloto

        Pazes cometer manda arrependido 
        O Regedor daquela iníqua terra, 
        Sem ser dos Lusitanos entendido, 
        Que em figura de paz lhe manda guerra; 
        Porque o piloto falso prometido, 
        Que toda a má tenção no peito encerra, 
        Para os guiar à morte lhe mandava, 
        Como em sinal das pazes que tratava. 
 

95 -   ( Partida de Moçambique para Quíloa ) 

        O Capitão, que já lhe então convinha 
        Tornar a seu caminho acostumado, 
        Que tempo concertado e ventos tinha 
        Para ir buscar o Indo desejado, 
        Recebendo o piloto, que lhe vinha, 
        Foi dele alegremente agasalhado; 
        E respondendo ao mensageiro a tento, 
        As velas manda dar ao largo vento. 
 

96 -  ( O Gama e o Falso Piloto ) 

        Desta arte despedida a forte armada,  
        As ondas de Anfitrite dividia, 
        Das filhas de Nereu acompanhada, 
        Fiel, alegre e doce companhia. 
        O Capitão, que não caía em nada 
        Do enganoso ardil, que o Mouro urdia, 
        Dele mui largamente se informava 
        Da Índia toda, e costas que passava. 
 

97 -   ( Falsos Informes do Piloto ) 

        Mas o Mouro, instruído nos enganos 
        Que o malévolo Baco lhe ensinara, 
        De morte ou cativeiro novos danos, 
        Antes que à Índia chegue, lhe prepara: 
        Dando razões dos portos Indianos, 
        Também tudo o que pede lhe declara, 
        Que, havendo por verdade o que dizia, 
        De nada a forte gente se temia. 
 

98 
        E diz-lhe mais, com o falso pensamento  
        Com que Sinon os Frígios enganou:  
        Que perto está uma ilha, cujo assento  
        Povo antigo cristão sempre habitou.  
        O Capitão, que a tudo estava a tento,  
        Tanto com estas novas se alegrou,  
        Que com dádivas grandes lhe rogava,  
        Que o leve à terra onde esta gente estava. 
 

99 -  ( Traição do Piloto ) 

        O mesmo o falso Mouro determina, 
        Que o seguro Cristão lhe manda e pede; 
        Que a ilha é possuída da malina 
        Gente que segue o torpe Mahamede. 
        Aqui o engano e morte lhe imagina, 
        Porque em poder e forças muito excede 
        A Moçambique esta ilha, que se chama 
        Quíloa, mui conhecida pela fama. 
 

100 -  ( Vênus desvia a Frota do Falso Rumo  
                em que a Pusera o Piloto ) 

        Para lá se inclinava a leda frota; 
        Mas a Deusa em Citere celebrada, 
        Vendo como deixava a certa rota 
        Por ir buscar a morte não cuidada, 
        Não consente que em terra tão remota 
        Se perca a gente dela tanto amada. 
        E com ventos contrários a desvia 
        Donde o piloto falso a leva e guia. 
 

101 - ( Nova Insídia do Piloto )  

        Mas o malvado Mouro, não podendo 
        Tal determinação levar avante, 
        Outra maldade iníqua cometendo, 
        Ainda em seu propósito constante, 
        Lhe diz que, pois as águas discorrendo 
        Os levaram por força por diante, 
        Que outra ilha tem perto, cuja gente 
        Eram Cristãos com Mouros juntamente. 
 

102 -  ( Chegada à Mombaça ) 

        Também nestas palavras lhe mentia, 
        Como por regimento enfim levava, 
        Que aqui gente de Cristo não havia, 
        Mas a que a Mahamede celebrava. 
        O Capitão, que em tudo o Mouro cria, 
        Virando as velas, a ilha demandava; 
        Mas, não querendo a Deusa guardadora, 
        Não entra pela barra, e surge fora. 
 

103 
        Estava a ilha à terra tão chegada, 
        Que um estreito pequeno a dividia; 
        Uma cidade nela situada, 
        Que na fronte do mar aparecia, 
        De nobres edifícios fabricada, 
        Como por fora ao longe descobria, 
        Regida por um Rei de antiga idade: 
        Mombaça é o nome da ilha e da cidade. 
 

104  ( convite Pérfido do Rei de Mombaça ao Gama,  
        para que Enfrente a Barra e Desembarque ) 

        E sendo a ela o Capitão chegado, 
        Estranhamente ledo, porque espera 
        De poder ver o povo batizado, 
        Como o falso piloto lhe dissera, 
        Eis vêm batéis da terra com recado 
        Do Rei, que já sabia a gente que era: 
        Que Baco muito de antes o avisara, 
        Na forma doutro Mouro, que tomara. 
 

105 -  ( Incerteza da Vida Humana ) 

        O recado que trazem é de amigos, 
        Mas debaixo o veneno vem coberto; 
        Que os pensamentos eram de inimigos, 
        Segundo foi o engano descoberto. 
        Ó grandes e gravíssimos perigos! 
        Ó caminho de vida nunca certo:  
        Que aonde a gente põe sua esperança, 
        Tenha a vida tão pouca segurança! 
 

106 
        No mar tanta tormenta, e tanto dano, 
        Tantas vezes a morte apercebida! 
        Na terra tanta guerra, tanto engano, 
        Tanta necessidade avorrecida! 
        Onde pode acolher-se um fraco humano, 
        Onde terá segura a curta vida, 
        Que não se arme, e se indigne o Céu sereno 
        Contra um bicho da terra tão pequeno? 
 

Fim
 

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