Marcolino Candeias


Breve Discurso aos Meus Amigos

Meus amigos meus amigos de escola meus amigos de liceu e de universidade que juntos fizemos a maqueta de um novo mundo meus amigos de pândega meus amigos das touradas da minha adolescência que uns aos outros nos embriagámos de tanta esperança. Oh meus amigos de café de cerveja gelada e coração fervente que resolvíamos a paz e a guerra e inventávamos a justiça social todos os meus amigos das artes que sonhávamos até ao clímax da fúria a utopia suprema e expurgámos do mal todo o universo para o fazer só de beleza. Meus amigos da ciência que em serões enchíamos de generosidade as retortas do progresso em que inventámos novas energias e as novas maravilhas do paraíso terrestre e por que não dos meus amigos os melhor penteadinhos das ideias então apenas futuros hoje consagrados já vedetas mesmo fragatas e cruzadores da política -- se é que na política meu Deus aqui pra nós o Senhor acha que? Ah todos os meus amigos sem falhar nenhum intelectuais semi para-intelectuais e sindicalistas quantos quintais de verbo imolámos ao porvir. Meus amigos todos do mundo inteiro que nunca conheci que nem hei de conhecer meus inimigos e mesmo os menos amigos toda a charanga da imprensa escrita e da falada e mais a do cochicho e a do dizquedizque também. Todos. Ah meus amigos meus inimigos nós que inventámos a computação de bolso e o laser nós que viajamos no imo do invisível nós que fazemos a carambola com neutrões nós que manipulamos a ADN como um castelo de Lego nós mesmos que bordejamos as costas do cosmos nós os que glorificamos nós os que descreditamos nós os que desacreditámos da democracia e quisemos o mundo livre e melhor nós que gravamos no perfeito absoluto da matéria a perpetuidade do Hino à Alegria nós que operámos tanta maravilha. Nós que fazemos Jugoslávias e permitimos Somálias e Timore e que incubámos novas suásticas sob a asa da nossa inconsciência. Nós que por lucro e desleixo fazemos marés negras e por conveniência e hipocrisia ousámos admitir que dos falos fumegantes da indústria era Juno mesma que se ejaculava em jactos de progresso sobre as nações da Terra. Nós que criamos as chuvas ácidas cuspindo para o ar nossa arrogância nós que satisfeitos e inconsequentes multiquotidianamente abrimos a porta do frigorífico e que de higiénicos tanto apertámos o desodorizante que mesmo daqui debaixo rasgámos as cuecas de S. Pedro. Nós que nem mesmo já precisamos de alma para sermos humanos e imortais. Nós que já nem de nós mesmos conseguimos dizer as maravilhas. Nós operámos o inoperável e arrotando à glória de Deus realizámos o impossível. Marcolino Candeias


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