Canudos & Antônio Conselheiro 
Casa Grande & Senzala e Os Sertões
 
Os Sertões e Casa-Grande & Senzala são diferentes em essência por pertencerem a gêneros literários diferentes. Casa Grande é uma narrativa que se assemelha à novela ou ao romance, legítimos herdeiros da epopéia clássica. Ao contrário de Casa Grande & Senzala, Os Sertões pertencem ao gênero dramático. Ao invés da epopéia o que temos aqui é uma tragédia. Com efeito, Os Sertões apresenta muitas das características da tragédia clássica, inclusive a capacidade de sofrer do jagunço, o intenso amor à vida mas a decisão de sacrificá-la pelo que consideravam dever ou honra e não por mero fanatismo como afirmaram os protagonistas vitoriosos. Mostra-nos, ainda, como característica do comportamento trágico, o início feliz dos habitantes de Canudos contrastando com a desgraça final do Conselheiro e seu povo, esmagados, até o pó, por uma espécie de fatalidade, algo acima do humano imposto pelo destino. Uma tragédia grega.

Mas do ponto de vista literário, a diferença entre Euclides e Gilberto Freyre está no tipo de imaginação predominante entre os dois escritores. Um é portador de uma imaginação difluente, auditiva. Apela constantemente para a sonoridade não apenas das palavras; está atento em reproduzir a explosão ritmada das granadas dos Krupps sobre Canudos, a resposta em saraivadas secas dos fuzis, das espingardas, das escopetas, o ranger das carroças de bois arrastando a "Matadeira" e o timbre das foices e dos machados, das picaretas e dos martelos dos jagunços, rebentando o aparato logístico e tecnológico de que se valera Moreira César e outros chefes para a destruição da aldeia do Conselheiro. Destruição que se consuma ao impacto do violento bombardeio dos canhões do general Arthur Oscar, os quais baixaram até o solo todas as casas e até os templos de Canudos.

A imaginação auditiva, ao contrário da imaginação visual, tende sempre para o domínio das sensações. Assim, uma sensualidade verbal muito ativa pode ser o produto desse tipo de imaginação. Em Euclides da Cunha, a imaginação auditiva transforma em um rumor estranho,um ruído espantoso, as orações que se elevam do vale e subiam pelas encostas dos morros até aos céus, nos momentos em que as mulheres de Canudos rezavam pelos maridos, filhos e irmãos, terrivelmente ocupados nos trabalhos da guerra.

Gilberto Freyre diz que Euclides viu os sertões com um "olhar mais profundo que o de qualquer geógrafo puro. Que o de qualquer geólogo ou botânico. Que o de qualquer antropólogo". Mas não diz, propriamente, que Euclides viu, diz antes que o "poeta viu". Isso não significa uma contradição entre o meu modo de interpretar o tipo de imaginação de Euclides da Cunha e o modo como a concebe Gilberto Freyre. O próprio Gilberto Freyre diz que Euclides "interpretou os sertões com palavras cheias de força para ferir os ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com o som de uma voz moça e dura". Essa referência de Gilberto Freyre a "som", "ouvido", "voz" confirma a tese que venho sustentando da imaginação auditiva como característica de Euclides. Está associada à imaginaçãoauditiva essa técnica de narrar com palavras cheias de uma grande "visibilidade". Mas essa visibilidade é conferida pelo sentido da audição tal como o rumor das águas, o som das cachoeiras, o ruído dos oceanos observado em Milton e outros poetas de imaginação acentuadamente auditiva. São olhos "pervertidos em ouvidos", observou o próprio Gilberto Freyre.

Não seria justamente por essa razão que aparece em Euclides a tendência para o escultural, tendência que Gilberto Freyre também pressentiu, possivelmente mais por intuição do que por ciência? Pois, efetivamente, a imaginação auditiva revela reduzida sensibilidade para a captura das coisas, seres ou objetos em movimento. O inanimado - característica própria da escultura - é a força em que se apoia Euclides para as belas descrições das paisagens sertanejas, das grandes pedras superpostas umas sobre as outras, formando enormes esculturas que se assemelham a gigantes, animais pré-históricos, pirâmides, esfinges, amantes horizontalmente deitados em transa eterna:Pedra da Gávea, no Rio, Pedra do Navio, em Pernambuco. Nos sertões são vistos aos milhares homens, mulheres e cavalos de pedras.

É por isso que o cavalo do alferes Wanderley tem todas as aparências do Rocinante. Isso porque o cavalo está morto. A imaginação auditiva de Euclides deforma artisticamente a realidade porque, tendendo a esculpir com palavras tudo o que vê, acaba se projetando no âmbito da arte simbólica - da definição hegeliana da arte - que é a arte dos orientais, a arte dos hindus, dos egípcios e dos chineses. Uma arte de objetos demasiadamente grandes para serem observados com fidelidade pela visão artística: Por que isso não ocorre na arte de Gilberto Freyre? Justamente por ser o autor de Casa-Grande & Senzala um escritor de imaginação visual, um criador constante de imagens intensificadoras, situadas no meio termo entre o clássico e o barroco; claro que Euclides da Cunha é também um escritor barroco. Mas o termo barroco não deve ser interpretado de acordo com o historicismo de certas estéticasque confundem teoria da sensibilidade com teoria da beleza. Situando-se no meio termo da expressão clássica e barroca, Gilberto Freyre, sendo portador de uma imaginação visual, não contribui mas antes impede a deformação da realidade, dando aos objetos e aos seres dimensões próprias da arte clássica, onde o homem constitui a medida de todas as coisas. Assim, ambos se equivalem. Um representa a arte simbólica, o outro a arte clássica. Pelo estilo, paradoxalmente ambos são barrocos. Falta no Brasil o terceiro Homem: o escritor que represente a literatura romântica nos termos definidos pela teoria hegeliana da arte. Ao que tudo indica, esse escritor não surgirá mais neste século.
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