José Castello
Histórias de poesia e pobreza
Amais inquietante história relatada por Paul Auster em A Arte da
Fome, coletânea de prefácios, entrevistas e ensaios que acaba de ser
traduzida pela José Olympio, não fala de fantasmas, ou de meninos
que voam, como os que aparecem em sua Trilogia de Nova York, mas
ainda assim é de dar arrepios. Auster, que foi um poeta mediano
antes de se transformar em grande ficcionista, a conta em uma
entrevista, concedida 11 anos depois da experiência que rememora e
agora reproduzida no livro.
Dominado pelo sonho de escrever narrativas de ficção, mas obrigado
pelos fatos da vida a se satisfazer com o espaço mais restrito (e,
para ele, menos perigoso) da poesia, Auster já tinha se decidido, no
fim dos anos 70, a abandonar de vez as fantasias literárias para se
dedicar, apenas, a ganhar dinheiro. "Houve momentos em que eu pensei
que tivesse chegado ao fim, que eu jamais escreveria outra palavra",
rememora. Em dezembro de 1978, porém, um amigo coreógrafo o leva,
sem nenhuma intenção particular, ao ensaio aberto de um balé. Auster,
deprimido, se deixa arrastar. Sem qualquer expectativa especial em
relação ao espetáculo, o escritor é, aos poucos, inundado pelo que
vê. Dá-se uma revelação, um desses eventos inexplicáveis em que o
acaso se mescla à sensibilidade e, no rasto desse vazamento, o
invisível se torna visível.
Ao voltar para casa, ele se tranca no escritório e começa a escrever
Espaços Brancos, obra sem gênero preciso onde, por fim, a vocação
para a prosa se impõe. Escreve, compulsivamente, até as três da
madrugada quando cai, exaurido, em sono profundo. Às oito da manhã,
o telefone toca: alguém lhe comunica a morte repentina de seu pai,
vítima de um ataque cardíaco. Semanas depois, Auster recebe uma
herança que lhe dá, pela primeira vez na vida, a liberdade de
escrever o que bem entende, sem se preocupar com as urgências do
tempo e as contas do fim do mês.
"Não consigo me sentar e escrever sem pensar nisso", diz. "Afinal,
que terrível equação! Pensar que a morte de meu pai salvou minha
vida." Não é preciso aqui rastejar até a lama dos clichês edipianos,
ou buscar a muleta das interpretações esotéricas. O horror está nos
fatos. Auster teria permanecido um poeta medíocre se o acaso, esse
deus sinuoso e complicado, não tivesse agido simultaneamente contra
ele e a favor dele.
Essa história não me abandona no momento em que vejo Orides Fontela,
a autora de Teia, a professora aposentada que vive na miséria, a
poeta que a mídia transformou em "caso clínico", inteiramente
asfixiada pela manipulação pública de sua pobreza. Não que Orides
tenha que, ela também, ser bafejada por um golpe ambíguo da sorte
para abandonar a poesia e se dedicar a outro gênero. Os versos são,
mesmo, seu destino. Mas, diante da pobreza, todo discurso elevado -
e o mais elevado de todos é o cínico - se torna uma malversação. E
nem a piedade, nem o cinismo, produzem poesia.
Penso em Orides porque é impossível não dar valor à sua raiva, à sua
decepção à sua sede aturdida de respeito que a mídia, cruel,
transforma em curiosidade, como se ela fosse uma poeta de cera em um
museu de horrores. Nela, também - como em Auster - a necessidade
tinha tudo para matar o desejo insensato e se impor como um destino.
Paul Auster teve a visita da sorte num momento de azar; Orides
Fontela tem o azar de ser sozinha, ser aposentada e ser poeta,
atributos que não parecem combinar com os modelos de sucesso em
vigor, mas tem a sorte infinita de ser teimosa. E isso a salva. Em
Teia, ela sintetiza: "A vida é que nos tem: nada mais temos".
Auster relata em seu livro uma segunda história que, pensando bem,
dá uma resposta ríspida à primeira. Já no fim dos anos 80, passando
uma temporada em uma velha mansão de Vermont, o escritor consegue,
certa tarde, colocar o ponto final no romance A Música do Acaso.
Orgulhoso, pleno, ele sai para fumar um charuto no jardim e desfilar
seu sentimento de vencedor. Depara, dois passos adiante, com sua
filha de dois anos, Sophie, totalmente nua, agachada sobre algumas
pedras, concentrada em fazer cocô. A menina o vê e, sem interromper
o ritual, grita: "Olha, papai! Olha o que estou fazendo!". Auster é
obrigado, ali, a abandonar suas divagações de sucesso e glória para
cuidar do asseio da filha. "Não sei se Sophie estava me oferecendo
uma forma nada agradável de crítica literária ou se estava
simplesmente fazendo uma observação filosófica sobre a igualdade de
todos os atos criativos", diz.
Todo o esforço de Auster para ser livre se iguala, em um breve
instante, à liberdade gratuita da pequena Sophie. Sou obrigado a
pensar, novamente, em Orides Fontela, que não precisa de nossa
piedade, nem de nossa repugnância, nem de nossa aprovação, nem de
nossos louvores para ser uma poeta feroz. Nós a manipulamos para lá
e para cá, enquanto ela, indiferente, continua a escrever.
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