José Castello
Livro resgata pioneirismo da obra
de Jorge Amado
Eduardo Assis Duarte analisa preconceito da elite brasileira contra
o escritor
O Brasil, país dos paradoxos, faz questão de desprezar a obra de seu
escritor mais famoso. Aos 84 anos, o baiano Jorge Amado continua a
realizar uma obra literária vasta e coerente, movida sempre pelas
mesmas utopias, mas a universidade o despreza como um best seller
descartável e a crítica literária o encobre com o manto do silêncio.
Essa é a idéia central que move Jorge Amado: Romance em Tempo de
Utopia, um vigoroso ensaio do professor mineiro (radicado em Natal)
Eduardo Assis Duarte, de 45 anos, que chega às livrarias no fim do
mês com o selo da Record. O livro é, originalmente, sua tese de
doutorado, defendida na USP em 1991 sob a orientação de João Luiz
Lafetá. Apesar da origem acadêmica, o ensaio é escrito com elegância
e com a dose devida de ferocidade.
O autor, um especialista no estudo das relações entre a arte e a
política, mostra que Jorge Amado é, apesar do sucesso internacional
sem precedentes em nossa história literária moderna, um escritor
duplamente discriminado: por ser comunista e por ser um best seller.
Esse ódio irracional seria apenas um efeito triste do elitismo que,
ainda hoje, rege o meio acadêmico brasileiro. "A universidade
brasileira, via de regra, só lê os autores que só ela lê", diz
Eduardo Duarte. Disposto a quebrar essa cadeia de desprezo, o livro
vem devolver à obra de Jorge Amado alguns de seus melhores
atributos. Para Duarte, o ator de O País do Carnaval, romance de
estréia que publicou aos 18 anos, foi um visionário que previu,
muitas décadas antes, o processo de carnavalização que dá a marca da
estética brasileira.
Ao escrever Dona Flor, Jorge Amado poderia ter se tornado uma Emily
Bronte cabocla, povoando seu livro com fantasmas bonzinhos, mas
preferiu criar o debochado Vadinho, um fantasma malandro, cínico e
tipicamente brasileiro. Com A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água,
em 1961, ele antecipou os fundamentos que, uma década depois,
comporiam a estética do realismo fantástico.
O Jorge Amado apresentado por Eduardo Duarte é um escritor
visionário, que jamais traiu sua utopia socialista, que, por isso,
sempre se guiou pelo desejo - realizado - de escrever para as
grandes massas. Não pode, nesse sentido, a não ser por crueldade,
ser confundido com os best sellers do gênero americano, que se
apegam à exaustão a suas receitas comerciais bisonhas. O livro de
Duarte estimula a crítica literária - mesmo a mais elitista - a
repensar a relação do Brasil com seu escritor mais famoso. Ou, no
mínimo, a refletir sobre as origens secretas de sua rejeição.
Estado - Por que Jorge Amado?
Eduardo Assis Duarte - Jorge Amado é, entre os escritores
brasileiros do século 20, o exemplo mais emblemático das relações
sinuosas existentes entre a literatura e a política e também da
relação que nossos intelectuais têm com a utopia socialista. De
todos os escritores surgidos com a geração de 30, Jorge foi quem
acompanhou mais de perto a trajetória do Partido Comunista
Brasileiro. Desde O País do Carnaval, seu primeiro romance, que ele
publicou quando tinha apenas 18 anos, até os Subterrâneos da
Liberdade, seu livro mais panflétário, a obra de Jorge Amado
escolta, passo a passo, todas as transformações da esquerda
brasileira e de seu principal partido, o PCB. Em sua obra, aparece
tanto a ilusão com o partido, quanto a decepção com o partido. Mas
talvez em nenhuma outra, nesse século, a relação da arte com a
política esteja tão presente.
Estado - Apesar da fama de comunista que o
acompanha até hoje, Jorge Amado foi, provavelmente, o primeiro
grande intelectual brasileiro a abandonar o partidão. Que
significado isso teve em sua obra literária?
Assis Duarte - Jorge abandona o partido em fins de 1954, mais de um
ano antes, portanto, do 20º Congresso, de 1956, em que Kruchev
denuncia pela primeira vez os crimes de Josef Stalin. Ele tem, desde
essa época, seu relógio íntimo finamente sintonizado com a história
do partido. Jorge intui os rumos da história do partidão e até se
antecipa a ela. Jamais admitirá a imensa desilusão que teve com o
PCB, porque não quer expor a ferida e não deseja se transformar em
um anticomunista, ou em um dissidente. Prefere, simplesmente, se
afastar e guardar consigo suas convicções de esquerda. No momento em
que o PCB execra Graciliano Ramos, porque ele é um escritor que
renega o realismo socialista, Jorge é o primeiro a solidarizar com o
amigo e a se exaltar em sua defesa, em prova inconfundível de sua
independência intelectual. Mesmo fora do partido, ele jamais perde a
coerência política.
Estado - A obra de Jorge Amado vem ilustrar o
mito do escritor como um visionário?
Assis Duarte - De certa forma, sim. E esse poder Jorge Amado guarda
até hoje. Em uma longa entrevista que me deu em 1988, que aparece no
fecho de meu livro, ele antevê o golpe contra Gorbachev - que só
ocorreria em 1991. Três anos antes, ele já podia prever os dilemas
que vão abalar o partido. É dono, portanto, de uma fina intuição
política.
Estado - Os intelectuais brasileiros têm, em
geral, um enorme preconceito contra Jorge Amado. Quais são as
origens desse ódio irracional?
Assis Duarte - Esse preconceito é, antes de tudo, um sinal do
elitismo da universidade brasileira que, via de regra, só lê os
autores que só ela lê. Nossa elite acadêmica torce o nariz,
literalmente, para qualquer escritor que venha a ter uma grande
aceitação de público. Jorge Amado, é bom lembrar, não é a única
vítima. Tome um escritor do porte de Érico Veríssimo, que tem uma
saga monumental sobre a história do sul do País. Ele também é
inteiramente desprezado pela universidade e pelos intelectuais
acadêmicos.
Estado - Há uma repulsa ao sucesso?
Assis Duarte - Provavelmente sim. E Jorge Amado sempre fez sucesso.
Em 1933, Cacau esgotou a primeira edição de 2 mil exemplares em
apenas 40 dias. Quantos ficcionistas brasileiros, hoje, conseguem
essa proeza? Hoje, 66 anos depois, vender 2 mil exemplares assim tão
rápido ainda é considerado um fenômeno de mercado. E é bom lembrar
que o próprio Jorge considera Cacau um livro fraco, que seria apenas
o caderno de notas de um aprendiz de romancista e não um romance
maduro.
Estado - Qual é o projeto literário de Jorge
Amado?
Assis Duarte - Seu projeto está calcado, antes de tudo, na busca da
aceitação popular. Como comunista, seu objetivo é, desde cedo,
escrever para um grande número de leitores e libertar a literatura,
assim, do domínio das elites. Para isso, ele se impõe um programa
estético preciso, ancorado primeiro na tradição popular nordestina -
a literatura de cordel, os cantadores - e, depois, na estética do
realismo crítico e da denúncia. Ele vai temperar esse realismo
social com todo o arsenal heróico desenvolvido pela tradição
romanesca do século 19, isto é, o folhetim e também com a estética
teatral do melodrama, que representava no palco o mesmo papel que o
folhetim desempenhava nos jornais. Estratégia que, na televisão,
desaguou nas telenovelas.
Estado - Em que momento esse projeto estético
se firma?
Assis Duarte - Ele já está presente em Jubiabá, romance publicado em
1935. Com esse livro, Jorge Amado consolida seu modelo romanesco,
que vai temperar o realismo social com as denúncias contra a
sociedade capitalista que começa a se instalar no Brasil e contra
também a sobrevivência entre nós dos velhos esquemas semifeudais. A
partir de Jubiabá, Jorge transpõe para seus romances a tese
comunista do "etapismo", que prega uma aliança política da esquerda
com a burguesia na suposição de que, primeiro, deve ser feita uma
revolução burguesa para, só depois, se encontrem as condições para
uma revolução socialista.
Estado - A estratégia política, portanto,
norteia o projeto literário.
Assis Duarte - Exatamente. Essa é outra grande intuição do Jorge
Amado: já em 30, ele começa a fazer uma literatura para as grandes
massas que começam a se alfabetizar. Ele está olhando para o futuro.
Seu público preferencial, ele mesmo dizia, era o estudante e o
operário. Mas, paradoxalmente, ele vai atingir esse público mais no
Exterior do que no Brasil. Basta pensar que até 1988 ele já tinha
vendido mais de 10 milhões de livros só na União Soviética.
Estado - O que isso significa?
Assis Duarte - Significa que, mesmo sem saber, Jorge Amado estava
sintonizado com as previsões dos principais teóricos da esquerda
internacional. Nos mesmos anos 30, em seus ensaios, um crítico do
porte de Walter Benjamin já mostrava que, se o grande público
preferia um filme de Charles Chaplin a uma tela de Pablo Picasso,
era porque Chaplin jogava com toda a tradição do circo, do
melodrama, do folhetim e, com isso, sabia fazer arte para as massas.
Jorge Amado, do outro lado do Atlântico e sem conhecer Benjamin,
teve a mesma intuição e aplicou essa política em seus romances.
Estado - Muitos críticos respeitáveis julgam que Jorge Amado - e, de
resto, toda a geração de 30 - fez uma obra que dá um passo atrás em
relação aos modernistas de 22.
Estado - O que você pensa a respeito dessa
tese?
Assis Duarte - Essa é uma atitude absolutamente equivocada. A
história das artes não se dá em termos de progresso e de atraso. As
estéticas circulam, vão e retornam, agora mesmo está aí o barroco de
volta para provar. Dizer que a obra de Jorge Amado é um retrocesso
nada mais é que adotar um discurso modernoso de vanguarda. A questão
do "passo atrás" é uma questão que só interessa às vanguardas. Uma
questão inútil.
Estado - Apesar disso, Jorge Amado continua a
ser, até hoje, solenemente desprezado pela crítica mais respeitada.
O que se passa?
Assis Duarte - A crítica oriunda de 22 espicaça Jorge Amado e é
bastante responsável por uma certa discriminação de que ele passa a
ser vítima. São pouquíssimas, ainda hoje, as teses de mestrado e
doutorado sobre a obra de Jorge. Os argumentos que justificam esse
desprezo são ridículos. Diz-se que a obra de Jorge Amado é menor por
ser política e panfletária. Isso é falso, pois só a partir de 44,
quando ele se torna deputado, a obra passa a incorporar
características do panfleto. Diz-se também que, depois que ele
abandonou o PCB, sua obra se tornou apenas uma crônica de costumes
requentada pela mitologia baiana e pela estética do best seller. O
fato de Jorge Amado ser um escritor comprometido politicamente não
deveria ser uma barreira para o crítico. Há, no fundo, uma barreira
ideológica que impede a crítica de ler Jorge Amado. No Brasil, é a
universidade que canoniza, que diz o que "é" e o que "não é"
literatura, mas esses processos de canonização são, na verdade,
muito discutíveis. E ele é o exemplo mais eloqüente disso.
Estado - A crítica mais freqüente, hoje, é a
de que Jorge Amado passou a usar a estética de massas para ganhar
dinheiro e colocou a estratégia política a serviço de um projeto
pessoal.
Assis Duarte - Pois essa é uma acusação absurda e inconcebível, que
deve ser recusada com veemência. É uma acusação cruel. Jorge Amado é
hoje duplamente estigmatizado: por ser comunista e por ser um
escritor best seller. A crítica não suporta essa dupla condição e se
torna absolutamente míope. Esquece-se, por completo, das grandes
rupturas que a obra de Jorge promoveu. Em 1935, por exemplo, Jubiabá
se torna o primeiro romance brasileiro a ter um negro como herói. Na
cena de abertura do livro, um negro derrota um alemão em uma luta de
boxe que se disputa em praça pública. É bom ressaltar, também, que
nesse romance ele está batendo de frente com a propaganda nazista e
com a ideologia racista da eugenia. Um negro brasileiro, malandro de
morro, cachaceiro, sem preparação física alguma, derrota um campeão
alemão. Jorge Amado estava, mais uma vez, tendo uma premonição. Na
Olimpíada de Munique, no ano seguinte, um negro americano - Jesse
Owens - derrota todos os alemães e fica com a medalha de ouro do
atletismo.
Estado - Você não pode negar que há uma
evidente queda de qualidade em sua obra recente.
Assis Duarte - Já na segunda fase da obra, há uma partidarização
crescente e, a partir daí, eu me torno muito duro e critico o
panfletarismo de Amado com veemência. Com Subterrâneos da Liberdade,
ele deixa de ver a história como processo e a transforma em mito.
Mas esse é apenas um aspecto da questão. Essa segunda fase é, na
verdade, muito complexa. Ela começa com Gabriela e, na vedade, ainda
não terminou já que Jorge Amado, mesmo às vésperas dos 84 anos,
continua a produzir. Agora mesmo se dedica a escrever Boris, o
Vermelho.
Estado - Você quer dizer que a crítica se
fixa, maliciosamente, só nos aspectos negativos?
Assis Duarte - É o preconceito que age outra vez. Basta pensar em um
livro como A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água que, em 1961,
antecipa o realismo mágico que se espalharia pelo continente a
partir dos anos 70. Dona Flor é, também, um romance muitíssimo bem
construído, não apenas do ponto de vista do fantástico, mas também
do cômico. Vadinho, em particular, é um personagem formidável. Se
Jorge quisesse apenas afagar as massas e jogar com sua credulidade,
teria cescrito um O Morro dos Ventos Uivantes brasileiro, repleto de
espíritos bonzinhos e tolos. Um romance assim seria, por certo, um
sucesso tremendo de público, porque o brasileiro é antes de tudo um
povo muito crédulo. Não só o brasileiro, basta pensar no sucesso
recente de um filme como Ghost, que não passa de uma fantasia sobre
essa bobagem do fanasma bonzinho. Já em Dona Flor, o Vadinho é um
fantasma absolutamente malandro, grotesco, ambíguo, composto dentro
de uma tradição picaresca. Basta dizer que ele morre fantasiado de
baiana! Em DonFlor, Jorge Amado mais uma vez se antecipa aos
intelectuais e carnavaliza as crenças do povo brasileiro. A verdade
é que já em 1930, aos 18 anos de idade, ele intuiu tudo isso ao
escrever O País do Carnaval.
Estado - Você quer dizer que, ao contrário do
que se repete cansativamente, Jorge Amado não faz nenhuma concessão
ao gosto dominante?
Assis Duarte - Não há concessão alguma e, em conseqüência, não tem
sentido falar em uma estética do best seller. A crítica literária
brasileira peca, em relação a Jorge Amado, por uma falta absoluta de
discernimento. Ela é impiedosa e rigorosa ao extremo, mas o que a
move, na verdade, é a ideologia. A obra de Jorge Amado ainda não
teve a avaliação crítica que merece. E não vamos esperar que ele
morra para, então, realizá-la! Porque no Brasil isso é muito comum,
adoramos a canonização post mortem. Jorge Amado, na verdade, sempre
foi um incompreendido. Já na instauração do Estado Novo, centenas de
exemplares de seus livros foram incinerados em uma fogueira, ao
estilo nazista, acesa no centro de Salvador. Desde aquele tempo, ele
já era um escritor que incomodava. E continua a incomodar. O Brasil
continua a desprezar seu escritor mais importante - e seria bom
pensar o que isso significa.
Leia Jorge Amado
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