José Castello
Depois da inútil excitação
Não quero polemizar com Caetano Veloso. Não tenho cacife para isso
e, além do mais, correria o risco de ferir a mim mesmo. Desde muito
cedo, Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa ocupam postos de honra em
minha mitologia pessoal. Não é confortável polemizar com mitos. Gil
é zen, Gal é doce e silenciosa, sobra Caetano que, de vez em quando,
gosta de dar um bote.
Algo me diz que Caetano Veloso é o mais importante poeta brasileiro
desse fim de século. É que ainda não temos clareza para ver. Mas o
crítico literário Wilson Martins não merece as palavras desastradas
que Caetano, em entrevistas recentes, lhe destinou. Não sou amigo de
Wilson Martins, com quem estive uma única vez em um encontro
profissional. Ele me pareceu um homem tímido, que fala baixo e
raramente sorri, e que desarma na origem qualquer tentativa de
envolvimento. Sinto- me, portanto, livre para escrever.
Wilson Martins leu e não gostou de Estorvo, o romance de Chico
Buarque. Coerente, escreveu a respeito e exibiu sua coleção de
argumentos. Caetano leu a crítica de Wilson Martins e não gostou do
que leu. Até aqui, nada demais: ambos exerceram seus direitos de ler
e de não gostar. É assim que as idéias circulam e se alimentam.
Não li Estorvo. Não li também, a célebre História da Inteligência
Brasileira, de Wilson Martins. Tenho a esperança tola de que minhas
carências literárias se transformem, agora, em uma vantagem. Outro
dia, ouvi Mauro Rasi dizer que já passou da época em que se sentia
obrigado a "ler" tudo. Foi a partir daí que pôde escutar melhor a
própria voz - e escrever peças formidáveis como Pérola. Enquanto
puder ouvir minha voz com nitidez já estarei bem contente.
Sou, como quase todo mundo, um admirador de Chico Buarque. Leio, e
quase sempre gosto das colunas literárias que Wilson Martins assina
na imprensa. Continuo a admirar ambos, apesar de Wilson não ter
gostado do romance de Chico. Bem, eu sou um homem comum e isso me
resguarda, posso ter a chance de não me envolver no que não é meu.
Já gostei de polêmicas, que me pareciam exercícios esplêndidos para
dinamizar o mundo, mas de uns tempos para cá elas passaram a me
desinteressar. Agora, quando me defronto com uma controvérsia
pública, prefiro me apegar a uma sentença escrita, certa vez, por
Hélio Pellegrino. Enfiado à força em uma polêmica entre Eduardo
Mascarenhas e José Guilherme Merchior a respeito da validade
científica da psicanálise, e decidido a não se envolver, Hélio
escreveu no Jornal do Brasil um célebre artigo cuja força maior
estava no título: "Comigo não, violão". Não era preciso uma só linha
a mais.
Polêmicas são bichos vorazes, que sugam tudo à sua volta. São
máquinas de extorsão intelectual. Se lhes damos ouvidos, nem
percebemos e já fomos enfiados em uma posição. Pellegrino entendeu
que a grande saída, meio inerte, e que os crédulos podem atribuir ao
comodismo, está na independência. Está em desprezar as saídas e dar
preferências às portas de entrada.
Reconheço nos polemistas, apesar disso, uma grande fibra. Sempre me
espanto quando vejo um homem como Bruno Tolentino a bramir solitário
suas idéias contra a vileza reinante. Precisamos, eu acho, de homens
ferozes e indignados que agitem a mornidão dos hipócritas. Mas o
contrário da mornidão é o desprezo malévolo. Tolentino, quando
polemiza, e apesar de seu estilo impetuoso, ampara-se sempre em
sólidos argumentos. Podemos concordar, ou discordar, mas ficamos
obrigados a ouvi-lo.
Caetano, que é um poeta ágil e refinado, se deixa tomar às vezes por
uma desnecessária ânsia de exposição. Nessas horas, despreza os
argumentos e apenas rosna. É isso o mais decepcionante: que alguém
tão sábio, tão desperto, precise se amparar no vazio das sentenças
categóricas.
Eu me pergunto, no fim das contas, de que servem essas manifestações
de ira. Me parece que elas não servem para nada. Temos, por algum
tempo, o sentimento reconfortante de uma grande agitação, como se
enfim o mundo estivesse andando. Mas, e depois, o que sobra além da
inútil excitação?
É uma pena que o principal - um debate em torno da produção
literária contemporânea, tendo Estorvo como âncora - nos tenha
escapado. Diante das vozes peremptórias, o livro ficou esquecido.
Ainda vou ler Estorvo. Vou continuar também a ouvir as canções
irrepreensíveis de Caetano Veloso e a ler as críticas severas de
Wilson Martins. Polêmicas não me impressionam mais. A vida não é um
duelo de espadas.
Vale, aqui, lembrar de Leila Diniz. Diante da pergunta "do que você
se arrepende", ela não vacilou. "Não me arrependo de nada do que
fiz. Só me arrependo do que não fiz."
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