POESIA
A consciência social em Cândido B. C.
Neto
Para Cândido B. C. Neto, a poesia é, acima de tudo, um compromisso
com a condição humana. Por isso mesmo, o que - a partir ,
evidentemente, de uma leitura apressada - poderia inscrever-se como
regionalismo, deve , a rigor , ser apreendido tão-somente como pano
de fundo, vez que visa, substancialmente, ao universal,
principalmente concentrado na imensa legião dos que não foram
convidados ao banquete industrial. Servindo-se de um humor e de uma
ironia corrosivos, o que - à primeira leitura - assoma como
niilismo, converte-se, em verdade, numa esperança, ainda tênue, da
transformação do quadro social, pois, construtor do dia-a-dia,
recusa-se a qualquer filamento de falta participação, seja na
atmosfera da estética ou na da política:
Ah,
Estes revolucionários da primazia da palavra
Representantes pragmáticos
De inúmeras ações tímidas
Insensíveis aos que sempre
Marcham
Na busca de impedir
As lágrimas provocadas pelo ´Poder´
Há, em tudo isso, um compromisso do poeta com o semelhante, daí
uma clara militância político-social através da poesia. Desse
modo , o discurso literário é um instrumento por que a consciência
individual e o dever de participação nas mudanças precípuas a
uma plenitude da existência pesam-lhe sobre a visão do mundo,
fazendo com que seja exatamente aquilo que o distingue dos outros
animais, oriundo, evidentemente, de práticas econômicas
alimentadoras de exercícios de rapinagem:
Povo em marcha, trabalhador
Nos encontramos nesta romaria
Percorrendo campos, cidades,
Na busca de melhores dias, felicidade...
Por conta
dessas singularidades, inerentes aos objetivos fundamentais de sua
escritura, o poeta Cândido B. C. Neto, muitas vezes, simula um diálogo,
franco e aberto, com o leitor ou mesmo com uma personagem do poema.
Assim, as marcas de oralidade advêm de um consciente trabalho
lexical, incumbido de construir uma dicção ao mesmo tempo espontânea
e lancinante:
Calados, continuam
Com seus corpos encharcados
As mãos plantadas
Esperando as promessas
´que não atam, nem desatam´
o problema é agrário,
seu moço.
Resulta, de tais recursos estilísticos, um ritmo ágil, cuja matéria
implica o resgate da dinâmica oral. Às vezes, a pontuação rompe
a couraça da norma, impondo fragmentações sintáticas, estruturações
nominais ou quebra da lógica da escrita; em outras, depara-se o
emprego de solecismos, em especial os de colocação:
Me maltrata esta vida
Na qual um Deus
É causa
Finita causa
De tudo e nada
Atrela-se a tudo isso a dicção inflamada, em voz alta, como se
estivesse o poeta em uma praça urbana ou num acampamento rural; e,
por isso mesmo, as palavras procurassem suprir-lhe a ausência do
corpo, - representado, então, por interjeições, exclamações ou
interrogações demasiadamente sugestivas:
Quem não conhece o progresso?
Me digam...
Quem não conhece o progresso?
Somente uma minoria...
Olhem o azul!
A escritura de Cândido B. C. Neto orienta-se no sentido de extrair
das manifestações mais triviais do cotidiano o sumo de que irá
revestir-se. Visa, sobretudo, à captação de um mundo objetivo e
concreto, despido de quaisquer adjetivos que, de uma maneira ou de
outra, possam vir a aureolá-lo. Mas não se trata, entanto, de um
observador neutro; antes, impõe-se como um eu intruso,
participativo, indignado. Integram-se sujeito e objeto,
comportando-se como um todo, indivisível. Assim, a sua poesia
jamais palmilha as veredas do simbólico, no máximo gira em torno
de sua atmosfera; e, se o faz, não é senão um artifício por que,
de um modo mais incisivo, lhe seja possível esvaziar a crosta de
subjetividades sublimatórias:
Nas lágrimas
Mescladas de pó e povo
Pão e terra
As esperanças de um povo humilde
Resistirão
Crianças voarão com seus sonhos
Antes que o amanhecer acorde
Há, portanto, uma consciência do poder restaurador e também
ordenador da palavra: pão, pão; terra, terra. É na direção do
equilíbrio dessa descoberta que avança o poeta, inscrevendo a
letra de sua singularidade. A poesia, não mais inspiração ou
transe, é inscrição direcionada; nada é intuitivo; e sim,
medido, trabalhado. Alia força criadora e transmissão ideológica;
dissolvem-se as fronteiras entre o prosaico, reduzindo os substratos
melódicos:
As luzes se encontram
Os carros param
As bicicletas param
As pessoas correm
Por entre trilhos,
Uma retorna apavorada:
- O trem pegou um homem.
Cada um dos poemas desse livro estabelece entre si uma relação de
interdependência tamanha que, uma vez compostos, parecem integrar
um discurso único. Se a escritura, perscruta, de um lado, as indagações
metafísicas, e, de outro, as desigualdades resultantes de um
sistema social e economicamente cruel, converge, também, (o que não
deixa de ser surpreendente) para um campo de expressão maior e mais
intrigante: o do silêncio:
Tua estátua lendária
Simbólica essência
No ´Perfume dos ventos´
Que me embriagará
Quando com tua voz
Escreverei o verso
Que ainda não escrevemos.
Cândido B. C. Neto reúne, nesse trabalho, a síntese da natureza
de seu universo criador: tratamento direto do tema e busca da
expressão essencial. Se uma imagem é a apresentação de um
complexo intelectual e emocional num instante de tempo, se a linha
de um verso é sempre circular, sabe muito bem o artista que a
poesia é fluência daquilo que não jorra para todos, do que o
homem comum talvez até pressinta, mas que, quase sempre, nunca vê
ou disso não cuida. Talvez, por isso, esteja o poeta sempre atento
a emprestar aos outros a sua atitude de solidariedade, seus olhos e
mãos:
Eu
Neste sertão
Porque amo a tudo
E nos meus olhos
Permito mergulhar
O sonho de todos
Como se fosse um lago
E nos meus olhos
Feitos uma vasta vegetação
Permito, nesta infinita visão,
Que todos os perdidos
Encontrem seus caminhos.
A leitura da poética de Cândido B. C. Neto levará o público a um
exercício artístico advindo de uma lucidez: o ato de criação
submetido a um controle rigoroso de seus elementos. Elimina-se, com
isso, o juízo romântico do inspirado, daquele que se submete ao
capricho das musas. O que aqui se apura é o suor de um ofício. O
poeta opera a linguagem - e dela procura extrair o máximo de sua
expressividade imanente: encantamento e inquietude.
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