Campomizi Filho

Matéria sobre Álvaro Pacheco
 
 
            Há todo um continente estendido entre as secas e as enchentes.  Por seus trilhos e atalhos passam multidões, juventude alegre de presente risonho, infância álacre de futuro decisivo, adultos contornando dificuldades e velhos cansados de tantas jornadas.  Há  sempre um Itinerário a ser percorrido, agências abrindo-se em anúncios e partidas alimentando o sonho.  Porque é urgente deixar estas fronteiras.  Olhar do  outro lado do mundo o  que existe de passadas civilizações, para uma avaliação do quanto estamos construindo ao longo de meio milênio.  Álvaro Pacheco nos convoca para  essa andança. Conduz-nos pelas veredas que palmilha.  Vai longe no seu esforço concentrado em alegrias e em testemunhas, jamais fraquejado na sua fé ou  indiferente nos seus mistérios.  Porque ama e acredita, vigoroso no seu verso que nos transmite, em  inconfessada alegria, de que não tem sido em vão a peregrinação realizada.  … verdade que "por baixo da  vestimenta não se escondem as carnes, antes, as cicatrizes".  Porque são estas conseqüências lógicas de quem, sem desânimo, enfrenta o frio e passa pela estiagem, agüenta a chuva e se incendeia a cada novo sol.

            Temos às mãos mais um volume de poemas de Álvaro Pacheco, esse simpático e suculento "Itinerários".  O seu é um risco na carta  geográfica.  Oferece, ao sabor  da rosa dos ventos, o ponto de partida e o local da arribada.  Para ele, "cada um desses momentos é a parábola" a ser descrita, no ano-novo ou na perdição do pecado original.  Segue  em frente.  "Mesmo assim, cercado por gente mágica e com muita coisa fora de cabeça, tudo é como se fosse um fim de sábado ou como uma rosa oferecida a uma dama", o som da orquestra como fundo e o jantar a dois como presença.  Porque, afinal de contas, "asas de anjos inexistentes motivam a ternura", as mãos dadas e os dedos entrelaçados compensando a ladainha que termina sempre na imprecação de um pedido de "tende piedade de nós".

            Tomamos o poema de Álvaro Pacheco e fazemos dele um instante de travessia.  Para as madrugadas.  Para um renascimento e para uma prece, porque não se pode ser herdeiro da própria herança", pois que o "risco de morrer/ de amor se afasta velozmente/ em linhas paralelas".  Encontrá-las no infinito é esperar demais e a ladainha se repete, que "pobre é estar na festa e ficar olhando/ o povo agasalhar-se no fogo/ sem sentir qualquer calor".  A viagem é de reconhecimento.  O caderno à frente,  no quarto do hotel ou na mesa do bar, no vagão ferroviário ou no banco do jardim, na sala do museu ou no silêncio da igreja, é sempre um convite  para registrar a impressão do minuto.  E fica em tudo o gosto da estrofe trabalhada, a sensação de lançar no  espaço um novo pássaro e de ver surgir da gleba fecunda, rebentando em verde, o primeiro musgo.  Quando "um estrangeiro se lamenta de estar só na cidade regida pelo tempo", acorda ele o companheiro e lembra que "fomos  capazes de imensas orgias".  Mas pára um instante, pois "esse estrangeiro obscuro não consegue se definir e nem conhece Deus".

            Há uma força nova na poesia brasileira.  Estamos ganhando uma corrida, em  termos próprios e em colorido definitivo.  Apresentamos títulos de maior valia.  E nomes que se universalizam na força de seu talento.  Vale a pena conhecer  alguns desses volumes que os prelos nos entregam e que indicam um "Itinerário", aquele que Álvaro Pacheco percorre em  ventos próprios e em velas abertas.  Chega a porto seguro.  Abre novos mundos que se encantam ao seu toque de magia em "lentes e  graus para longe e perto".

 
                                                                                in “O ESTADO DE MINAS", 1978
                                  

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  13  de  Julho  de  1998