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Página do editor Soares Feitosa

Carlos Felipe Moisés

FORTUNA CRÍTICA

 

 

 

1. Literatura em 74: CARLOS FELIPE MOISÉS

    Álvaro Alves de Faria[1]

 

 

O maior destaque foi Carlos Felipe Moisés, com o livro Poemas reunidos (1974), uma das obras mais sérias publicadas nestes últimos anos na área de poesia. Reúne poemas de vários livros de um dos melhores poetas da Geração 60: A poliflauta, A tarde e o tempo, Carta de marear e Urna diurna, até então inédito.

Quanto amei, amou em mim,

quanto vi, perdi por ver.

Quanto sou? Quanto não sou? Sou

quanto fui para não ser.

 

Se hoje vejo o que esqueci,

e não me lembra sem doer,

foi por não ver que me perdi

no ontem-hoje de não ver.

 

Por mais que viva, não esqueço

a dor sentida ou o gesto vago

deslembrado na memória.

 

Sou em mim quanto pareço

repetir ou quanto indago.

Amor? Nenhum? A mesma história.

 

Este será, sem dúvida, o poeta que tomará um dos primeiros lugares desta geração de jovens poetas brasileiros. Nasceu em 1942. Formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo, por onde se pós-graduou e se doutorou. Exerce desde 1966 o magistério superior, ensinando literatura brasileira e teoria literária. Atualmente é professor-assistente de literatura portuguesa na Universidade de São Paulo.

Sua poesia é clara como a água e limpa como o céu. Nada de inventar incertezas em versos sem sentido. Caminha como só o poeta sabe e pode caminhar, com uma poesia grandiosa, feita para o homem, no íntimo de um ser que duvida que, afinal, o mundo só viva de violências.

 


 

2. A POESIA ARDENDO NAS MÃOS

    Geraldo Pinto Rodrigues[2]

 

 

“Estas palavras ardem em minhas mãos.” Este verso de Carlos Felipe Moisés serve, a meu ver, para dar a medida e o tonus da nova coletânea de poemas do conhecido autor paulista, livre-docente da Universidade de São Paulo, ora lecionando em Berkeley, Caluifórnia. Círculo imperfeito, distinguido com o Prêmio Gregório de Mattos e Guerra, em concurso promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, compreende três partes, intituladas “Natural”, “Sentimental” e “Pessoal”.

Na verdade, não se notam diferenças pronunciadas entre uma e outras; pelo contrário, essas partes como que se amalgamam, se integram e se interligam, sendo ao mesmo tempo naturais, sentimentais e pessoais as projeções do “eu” poético. Desse ponto de vista, trata-se de um discurso monocórdio, porém vivificado pelo intenso teor lírico da maior parte das composições, absolutamente intimistas. Mas, apesar disso, sobra ainda lugar, na seriação destes novos poemas do autor, para a aferição mais abrangente – e por vezes pungente – do que se poderia rotular de “sentimento do mundo”, como nestes versos:

 

Meu coração de pedra

ressoa num labirinto.

És uma praia deserta,

mundo mais fundo e mais frágil que eu. (p. 47)

 

Por que serviria para definir o poeta, ou melhor, seu novo livro, o verso que encima esta resenha crítica? Por duas razões: uma de natureza conteudística e outra de natureza formal. Sob o primeiro ângulo, Círculo imperfeito (o título já não denunciaria, por acaso, qualquer elisão?) é obra toda feita daquilo que Goethe chamaria, sem nenhum menosprezo para o gênero lírico, de “poesia de circunstância”. Ou seja, precisamente a poesia de foro íntimo, de que há tantos nomes insignes na poesia de todas as línguas, inclusive na alemã e na do próprio Goethe. E quando isto ocorre, é natural que as palavras ardam nas mãos do poeta, pois o sentido que nele queima é o da sua vida interior, flamante, ardente. E este sentimento passa então a ser, em última análise, o objeto mesmo da poesia, sem incongruências e com raros contrapontos. Assim é que na coletânea de Carlos Felipe Moisés, a despeito da sua divisão tripartite, perdura um só e único diapasão, um só tonus: o do canto sempre pessoal, mergulhado no dia que escorre pela vidraça, para usar uma imagem do poeta. É ele quem o diz:

 

Continuo a olhar a vidraça

e não sei o caminho

que levará ao novo dia. (p. 21)

 

É inegável, contudo, a esplêndida vocação de Carlos Felipe Moisés para o trabalho poético, ele que é, ao mesmo tempo, um lúcido e inteligente crítico de poesia e de poetas, como o provam alguns dos seus livros de ensaios, dentre os quais destaco Poesia e realidade. E exatamente porque é um artista consciente das vicissitudes, das dificuldades e também das proezas da elaboração poemática, sabe que as palavras ardem nas mãos do poeta, sem que este consiga por vezes domá-las conveniente e suficientemente. Domá-las no sentido de extrair do verbo poético todo o poder de transubstanciação que a poesia requer.

Daí a nossa segunda observação sobre o juízo ou o intento que estaria ínsito no verso citado à guisa de epígrafe deste artigo. Com efeito, a impressão que, em certos passos do seu livro, nos deixa Carlos Felipe Moisés é a de que, por lhe arderem talvez em demasia, as palavras nem sempre lhe saem das mãos com o mesmo ardor com que ferem a alma ou o sentimento. E então o verso ou o poema se apequena, como neste caso:

 

De dia ou de noite (como saber?)

surpreso me sinto outra vez criança

e vejo a luz do teu nome a escrever,

no ar, muito clara, a palavra esperança. (p. 71)

 

Ou como no caso de todo o longo poema “Minha terra” (p. 73), uma paródia da célebre “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, realização sem dúvida inferior de Carlos Felipe Moisés. Mas em livros de poemas, mesmo os geniais, são comuns as descaídas. Descaídas, veja-se bem, em relação ao que é superior, paradigmático, descaídas apenas e não peças desprezíveis.

Evidentemente, tratando-se de um poeta do porte de Carlos Felipe Moisés, que deu provas sobejas do seu estro nos Poemas reunidos (1974), a expectativa do crítico ou do leitor que acompanha a sua trajetória é encontrar, e desejar sempre e sempre, uma superação do já feito. Como testemunham, aliás, algumas produções suas posteriores a este Círculo imperfeito.

De qualquer forma, porém, este livro do autor de Urna diurna, como diz a sua apresentadora, Myriam Fraga, nos deixa a certeza de que, em Carlos Felipe Moisés, “as palavras não ardem impunemente”. Comburem nele e em nós, deitam raízes na sua e em nossas almas; fazem-nos, como a ele, despertar e partir em busca do vôo, pássaros que somos, entre sombras.

 


  

 

3. A IMPERFEIÇÃO DO CÍRCULO
    Álvaro Cardoso Gomes[3]

        Carlos Felipe Moisés vem publicando, desde 1960, com regularidade, seus livros de poesia. O que surpreende nessa pertinácia é o fato de ele viver num país onde o “consumo” da literatura é, via de regra, diminuto. De poesia, então, nem se fala – os poetas parece que se dirigem às paredes ou aos peixes (há mais ouvidos de mercador nesta santa terra do que se imagina). Triste, portanto, o ofício de quem se dispõe, com extrema consciência, a trabalhar as palavras. Geralmente conta com o silêncio e a indiferença como resposta. Mas o importante é que Carlos Felipe Moisés continua a dar seu recado, numa linha coerente, que vem do juvenil A poliflauta até o belo Círculo imperfeito, que mereceu o Prêmio Gregório de Mattos e Guerra, do governo da Bahia. Premiação à parte, porém, temos uma obra como poucas: inquieta e densa, atestando a luta do poeta com as palavras. A imperfeição do círculo é profissão de humildade – linha concêntrica que não se esgota, entendendo a poesia como labuta e o poeta como doador de sentido às coisas.

Para Octavio Paz, a poesia se caracteriza pela tensão: “o poema não só proclama a coexistência dinâmica e necessária de seus contrários como a sua final identidade”, tensão esta que procura aproximar os opostos, em busca de uma síntese, ou seja, o poeta é aquele que tenta reintegrar o homem (esse provocador de desequilíbrio entre as coisas) no Mundo. Círculo imperfeito não foge à regra: as antíteses são visíveis e sua divisão tripartite – Natural, Sentimental, Pessoal – é o caminho percorrido para se tentar resolver o impasse, ou, pelo menos, evitando-se a falácia do acabado e perfeito, para provocar inquietação no leitor, com a amostragem do dito impasse, revelado aos nossos olhos, para escapar da entrega ao ramerrão do dia-a-dia, à opacidade estagnada dos objetos.

A tensão em Círculo imperfeito vai-se organizar em três planos, que se dispõem, a nosso ver, do seguinte modo: a) Pessoal: eu/eu; b) Sentimental: eu/outro; c) Natural: eu/isto. A inversão dessa ordem, conforme proposto pelo poeta, induz à reflexão segundo a qual nos deparamos com uma aprendizagem. O poeta, em primeiro lugar, experimenta o mundo e testa suas próprias fronteiras; em segundo lugar, o “eu” aventura-se, via sentimento e/ou emoção, na direção do outro (a amada, mais ou menos visível, ou um substrato psíquico profundo, a meio caminho entre o ser e as coisas); em terceiro lugar, temos o confronto entre o “eu” e o mundo, metaforizado pelo “natural”, quando surge, como mediação, a presença silenciosa e sutil das palavras.

A primeira parte, que monta a tensão eu/eu, não é absolutamente autobiográfica, embora se trate, as mais das vezes, de poesia de circunstância. Para evitar a incômoda presença do biográfico, ou da confissão de sentimentos, que pouco interessam ao leitor, Carlos Felipe se utiliza da musicalidade quase pura, quando o poema se evapora, num instante, através do uso adequado de certos clichês literários. Assim, em “Entre-sonho”, o clima de devaneio, e do vago e inútil sentido das coisas, é retomado através do tradicional motivo da rosa:

 

Rosas murchas entre rosas murchas,

vozes entre tantas outras (mundo)

entretanto nada: entrefechado sonho.

 

Outro recurso é o da sonoridade pura, que se realiza na oposição entre vogais fechadas e abertas, criando o efeito do eco e da redudância, que retorna, com previsibilidade, a intervalos regulares:

 

Na noite mais clara que o claro dia,

um nome repito, que ao longe ecoa.

É Maria Clara, clara Maria,

o nome que vai por toda a Lisboa.

 

Por fim, também transfigurando a realidade, comparece o humor, que recria o mito romântico da celebrada “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias:

 

             (...) O que cismo?

Sei lá! (Sei cá?) Sei que é

contrário ao que cismaria

lá se cá não estivesse

cogitando no acolá.

 

Como vemos, é mais um processo de desvendamento de si e de manifestação dos sentimentos e sensações do “eu” diante das paisagens e dos eventos (trabalho necessário ou reconhecimento de terreno, para se chegar até a intimidade das coisas) do que propriamente o desenho de uma biografia.

O próximo núcleo de tensão está na relação eu/outro. O “sentimental”, aqui, não deve ser entendido ao pé da letra, como emoção barata, no instante em que o poeta faz do poema desaguadouro das dores-de-cotovelo ou dos amores impossíveis. Mesmo a temática amorosa, quando comparece, esfumaça a imagem da amada, que surge, tão-só, como um sorriso que flutua no ar – ausência-presença que, na obliquidade do texto, retorna não como objeto acabado, mas como símile da branca paisagem que se desenha, em seu sentido vago, diante de nós:

 

Teu sorriso se mantém no ar,

tua ausência acaricia minhas mãos. (...)

Aqui estás,

na branca paisagem que brota

               sempre e nunca

               dos meus olhos.

 

Além disso, o amor nunca surge como referência a experiências concretas; defrontamo-nos, isto sim, com a disquisição sobre o sentido amoroso. Como em Camões, o dado vivencial abstratiza-se; o poeta soma as experiências todas do amor e toma consciência de que o sofrimento emergente é provocado pela condição do ter-que-amar:

 

Sei que amei, sempre amei, e vejo

que de amar tenho hoje o coração endurecido.

 

“Sentimental” é, pois, uma espécie de purgação, como se, depois de conhecer suas fronteiras, o poeta tentasse desvendar o outro ou, ainda, tentasse precisar as relações que entreteve com este. Mas o importante é reafirmar que esse “outro” não é a amada de fisionomia reconhecida, nem simplesmente a mulher, reduzida à condição de “ser amado”. Num determinado instante, o outro configura-se como um substrato do ser, “eu-profundo” do poeta, que se esconde no mundo oculto das lembranças na memória. Todavia, para penetrar nesse mundo obscuro, condição prévia para que o poeta renasça junto às coisas, buscando descobrir o mundo, é preciso enfrentar as potências negativas que o inconsciente fabrica. Afinal, ninguém adentra impunemente no mundo infernal. Lá estão as entidades demoníacas, prontas a destruir o ser, desintegrando a psique. Eis que se faz necessário um exorcismo. É o que se verifica no significativo poema “Em minhas mãos”:

 

O vício lento,

implacável da memória,

óleo espesso a escorrer

das paredes,

do sono

que o fogo devora

em minhas mãos. (...)

Vitória e cansaço,

a lembrança impossível

e o medo extinto,

as paredes,

a casa,

estas palavras

– tudo a mesma combustão

em minhas mãos. (...)

Estas palavras ardem em minhas mãos.

 

O fio da memória é “óleo espesso a escorrer”, isto é, caracteriza-se como o rio do esquecimento e da lembrança, denso, porque as imagens nele se coagulam, concretamente vividas; espesso, porque remenda, em sua continuidade, o fluir da duração. A combustão dessa matéria toda (paredes, casa, palavras) realiza-se sintomaticamente através das mãos – símbolo inequívoco do ato de escrever. O material da memória não se oferece, pois, apenas como lembrança, que se perde, mas antes cristaliza-se no poema. Ao final, o poeta tem em mãos as palavras ardentes, uma sinestesia, em que o aspecto sonoro e visual das palavras se soma ao (também) visual e tátil das chamas.

Neste instante, cremos ter diante de nós o exorcismo realizado. Expliquemo-nos. Em Metamorfoses da alma e seus símbolos, Jung diz-nos que a entrada do ser no mundo do Inconsciente pode provocar como que uma desintegração da psique, através da cisão da personalidade. Para se enfrentar tal perigo, é necessária a “disciplina da libido”, o que pode ser conseguido através do domínio da linguagem e da produção do fogo, que “significaram um dia o triunfo sobre o inconsciente animal e foram, a partir daí, os mais possantes procedimentos mágicos para dominar as potências ‘demoníacas’, sempre ameaçadoras do inconsciente”. Carlos Felipe, assim, montando a sinestesia, torna inflamadas as palavras. Ainda sobre a mesma questão, Jung fala-nos da “audição colorida”, isto é, “da qualidade acústica das cores e da coloração dos sons”, afirmando tratar-se “de uma das descobertas mais importantes, que distingue o homem de outros seres viventes: a linguagem e a utilização do fogo”.

Esta longa digressão leva-nos a crer, por conseguinte, que a entrada no mundo do Inconsciente, por parte do poeta, se faz através de rigoroso controle. O processo de aprendizagem, nessa fase, para que o “eu” se descubra, mais adiante, adentrando assim no mundo natural, supõe a conquista desse ser profundo, mas de maneira controlada, sem o quê as imagens do inconsciente acabariam por devolvê-lo inocuamente a si mesmo. O ritual mágico da produção do fogo e da linguagem, criando a “audição colorida”, exorciza as potências infernais e permite a passagem do subjetivo ao objetivo.

Em “Natural”, temos por fim o encontro do “eu” com o Mundo. O poeta, liberto da memória individual, vai materializar os poemas, pois as palavras tornam-se coisas, no instante em que sua conquista coincide com a descoberta do Mundo. À Caeiro, o poeta se vê como Natureza, como aquele que, no dizer de Dufrenne, transforma a natureza “naturante” em natureza “naturada”:

 

Carrego as estações comigo

e tenho as mãos cansadas.

(No bolso esquerdo, um riacho murmura.)

Ali, onde pequenas pedras se acumulam,

uma canção exala seu vapor,

depois se perde.

 

E, à Drummond, o poeta penetra no “reino surdo das palavras”, onde está, “quedo e vário, / todo canto possível”. A “língua impossível”, logo adiante referida pelo poeta, no mesmo poema (“Árvore”), é feita de indisciplina, é o língua da poesia, que se constrói pela desordem, em relação à pretensa e inócua ordem do Universo, muro opaco, despido de significado. A poesia é transgressão e violentação da linguagem, remetendo-nos às coisas elas mesmas:

 

Rarefeita palavra

(rara e cotidiana),

árvore apenas árvore.

 

Entoando palavras, tão próximo das coisas, o poeta já pode fundir-se à Natureza, através da poesia. O sonho instaura, diante de nossos olhos, a verdadeira harmonia do Universo. O resultado é a imagem poética, que se cristaliza a partir dos dados vagos e indecisos que a sensação capta. Assim, em “Um peixe desliza”, o poeta quer sugerir ao leitor a sensação que um brilho lhe causou (“mistério de luzes / no acaso de um ponto / errante no espaço”), e recorre à imagem do peixe, símbolo da renovação perpétua. E o mundo surge recriado, na densa metáfora que transfigura o real, ou seja, temos o brilho e, ao mesmo tempo, a interpretação poética da sensação, com a conseqüente fixação de um estado vago e indefinido. Não fora a poesia, tal sensação se desvaneceria, porque só a poesia é capaz de fixar o translúcido, o indeciso:

 

A irreal transparência em torno,

existindo translúcida,

como num sonho.

 

Doando sentido às coisas e transmitindo ao leitor as imagens de um mundo virginal e incorruptível, o poeta acaba por encontrar correspondências entre o “eu” e o Cosmo. Tal se dá através do sentimento de dor, comum a ambos:

 

O rumor do mar inúmero

passeia no ar e retorna,

mar noturno.

Enseada, campo e montanha,

as árvores nuas,

tudo canta a sua melodia,

mar noturno. (...)

As águas invadem tudo

e toda a terra entoa

o mesmo canto,

estátua de sal e nuvem,

enquanto o coração repete,

tambor soturno,

o rumor do mar noturno.

 

O coração ao mesmo tempo marca e refaz o compasso desse canto imemorial, entoado por toda a Natureza, e a referência ao dilúvio sugere a imagem de um mundo aquático, movido pelas forças sempre criadoras das águas. O canto materializa-se em “estátua de sal e nuvem”, algo concreto e ao mesmo tempo imponderável: visível e diáfano. O sal é elemento que identifica o mar com o ser, pois é resíduo das águas e resíduo das lágrimas; o poema, em sua síntese, concretiza tal unidade, como se o canto do mar fosse o mesmo do coração, ou então como se a dor do mundo fosse a mesma dor do indivíduo. A transformação em estátua dissoluta é um esforço para fundir o “eu” e o “isto”, mas através de uma imagem que reproduzisse a sensação de fluidez das águas. Permanência e transformação vêm a ser, ao cabo, atributos da água, de que o poeta se utilizou para nos transmitir sua unidade com o mundo.

Assim encerramos a viagem – que na verdade nunca termina nem pode terminar; o círculo é aberto, imperfeito, a tal ponto que deveríamos dizer que a imagem geométrica suscitada é a do caracol, do labirinto, que metaforiza a eterna busca, sem chegar propriamente a um fim. Daí a imperfeição do círculo, paradoxalmente uma forma perfeita. O livro de Carlos Felipe Moisés cumpre seu itinerário, ao longo de versos harmoniosos, evitando o declamatório e os recursos de retórica fácil. Mas, sobretudo, o que se encontra neste Círculo imperfeito, se o compararmos a outras obras do autor, é a superação de uma poesia, em alguns momentos, demasiado cerebrina. Aqui se dá a feliz conjunção da emoção e da consciência. Assim, mesmo num poema claramente circunstancial, como “Não eras mais”, toda a mágoa do poeta transfigura-se em contido e sereno objeto – dádiva que reabilita, mais uma vez, o mundo aos nossos olhos.  


   

 

4. CÍRCULO IMPERFEITO

    Joaquim-Francisco Coelho[4]

  Nos 28 poemas deste Círculo imperfeito (a sexta coletânea de versos do autor, que em 1960 se estreou poeticamente com A poliflauta), a voz do Ego lírico, modulada quase sempre em tom “menor” e de um muito cuidadoso recato na sua contenção discreta, distribui-se em três entonações psicológicas, natural, sentimental e pessoal, cada um desses termos, eles próprios, servindo funcionalmente de rótulo aos três cadernos em que se divide o livro.

A peça-pórtico, “Carrego as estações”, podemos considerá-la a rigor como definidora das intenções profundas da obra, não só no tocante aos temas (a solidão essencial do ser, o sonho enquanto meio de vida autêntica, a carne e suas frustrações, o existir suspenso flutuando na angústia), mas inclusive e sobretudo na imagem da persona poética que se desmembra miticamente pelo corpo do mundo, após um processo de vegetalização do ser recamado de alusões mitológico-literárias por trás das quais, acentue-se, avulta com força a sombra da “waste land” de Eliot (o Eliot a quem o autor já recorrera, em 1966, à busca de uma epígrafe para um dos textos da sua Carta de marear):

 

Ali planto meus braços,

debaixo daquelas árvores

meus olhos ficam.

Os pés, roídos pela terra,

penduro em outra árvore.

O tronco multiplico em cem pedaços:

lá vai, junto com as pedras,

no bojo do riacho antigo.

 

Mas a expressão alusiva e a referência mitológica são, claro está, apenas os necessários ingredientes de uma escrita que se quer cada vez mais livre na sua peculiar maneira de captar o real, tanto na área do discurso figurado, principalmente o de intenção amorosa, quanto no campo da sintaxe libertária, às vezes caprichosa bastante para cabriolar ludicamente com as possibilidades permutatórias de uma mesma frase. É o caso, paradigmático, do verso de abertura de “Choupos & álamos”, que passa de “Choupos e álamos eu vi um dia” a “Choupos eu vi e álamos um dia”, depois de desdobramentos intermediários não menos relevantes. Esse dirigido desejo de re-estruturação da linguagem mediante a sua prévia des-estruturação levará o autor, muito naturalmente, a parodiar com êxito e graça vários estilos de dizer, sendo o exemplo típico, no caso, “Minha terra”, curioso refazimento, a nível joco-sério, da “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Os seguintes versos, extraídos à segunda das seis estrofes do poema, dirão amplamente dos recursos do parodista:

 

Em cismar sozinho à noite

mais prazer encontro eu cá

pois descobri que cismar

sozinho é inda melhor

que cismar acompanhado.

De dia cismo ou de noite,

prazer encontro em cismar

o Tejo e o mar. O que cismo?

Sei lá! (Sei cá?) Sei que é

contrário ao que cismaria

lá se cá não estivesse

cogitando no acolá.

 

A percepção irônica e não raro visionária da vida, predominante no livro, não nos deve fazer esquecer, entenda-se, o que de sofrida afetividade aí se oculta, quer nas peças movidas pelo impulso de Eros, cristalizado quase sempre nna imagem obsidente do pássaro, quer nas dedicadas ao sentimento da amizade absoluta, qual a elegia “Não eras mais”, onde, por singularidade, as mesmas aves da imaginação erótica mudam-se em signos da inocência e da ternura humanas. A emoção do poeta continua a fecundar-lhe os versos raciocinados.


 

 

 

5. RIOS, PÁSSAROS E NUVENS

    Anderson Braga Horta[5]

Agrupam-se estes poemas [Círculo imperfeito] em três conjuntos, nomeados “Natural”, “Sentimental” e “Pessoal”, o primeiro dos quais tem por curso declarado a relação Poeta-Natureza. A leitura dos outros dois mostrará que essa relação palpita em todo o volume, de modo tal que se poderia, apressadamente, concluir fosse a Natureza, aqui, mero pretexto para divagações líricas, ou lírico-filosóficas, ilação falsa. A relação a que nos referimos é de amor e de integração, não excluindo o pensar e o indagar, que a complementam.

Porque “transforma-se o amador na coisa amada” – para lembrar um dos criadores que merecem alusão nestes textos –, confunde-se o poeta com a Natura:

 

O céu, de tanto o contemplar,

já se desprende de seus laços

e vem, menino, se abrigar

no vão inútil de meus braços. (...)

 

Ah, um só instante bastara

de amor para que minha história

(velha paisagem) se mudara

em puro canto, só memória.

 

E minha voz, que não entendo,

a mim me fala e quase nada

do que me fala compreendo,

apenas rio ponte estrada.

 

Da boca um pássaro me voa,

no gesto uma nuvem passagem

pede. E o mundo se despovoa

de mim para outra paisagem.

 

Também às pessoas amadas ele as sente comungando com a Natureza. Assim no comovedor poema da pág. 59, “Não eras mais”:

 

Não eras mais que um sorriso

e o ar que serenava quando te movias.

Tomo tuas mãos em minhas mãos

e peço que me ensines esse ar, o sorriso,

a serenidade que desconhecias.

 

Mas tu não dizes mais que o teu sorriso,

e o claro olhar, irmão das águas.

Tomo teu corpo em minhas mãos,

raio de sol, e tenho em meus olhos

a mágoa de todas as mágoas.

 

Vagueio meu olhar além dos montes

(murmúrio de pássaros entretidos) e te diviso,

brilho liberto de todas as sombras,

a ensinar aos pássaros, como me ensinaste,

o teu sorriso.

 

Coerentemente, o poeta edifica sua imagística sobre palavras relativas aos reinos naturais, recriando um mundo de raízes, folhas, flores, campos, rios, pássaros e nuvens. Bem significativo desse procedimento é o metapoema intitulado “Árvore” (p. 37).

Círculo imperfeito avulta na trajetória de Carlos Felipe Moisés, não somente por lhe haver merecido novo prêmio literário, o Gregório de Mattos e Guerra, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, mas, antes, pelo equilíbrio da construção, por sua linguagem madura e sumarenta, pela serenidade da dicção, pela profundidade e limpidez da poesia.


 

6. CARLOS FELIPE MOISÉS

     Joanna Courteau[6]

  Carlos Felipe Moisés is a professor of Portuguese literature at the University of São Paulo, Brazil. In the United States he has participated in the Iowa City International Writers Workshop (1974-75) and has been on the faculty of the University of California at Berkeley (1978-82). He currently holds the post of a visiting Fulbright professor at the University of New Mexico, in Albuquerque.

While Moisés is best known in the scholarly world for the numerous books and critical essays that he was written on Portuguese and Brazilian literatures, his contribution to poetry is truly impressive. Several of his books of poetry have won firt place prizes in his native State of São Paulo. His last book, Círculo imperfeito (Unfinished circle), from which most of the translated poems are taken, won a first place poetry prize in the State of Bahia.

The poem ‘Boi raiado em penumbra’ (The ox striped in shadow) comes from the just finished, still unpublished collection entitled Subsolo, which literally means ‘Subsoil’, but might translate metaphorically as ‘Grass roots’.

Moisés’ poetry, in a very personal manner, has integrated the three dominant currents in Brazilian poetry of the last thirty years: traditional lyricism, experimentalism, and social commitment. The latter became especially prominent in Brazilian poetry in the wake of the 60s’ counciousness raising activism. While Moisés’ poetry integrates the three currents, it does not seem to be especially dominated by any of them.

Through most of his poetry Moisés’ maintains a tone of rational, a contemplation which is a surprisingh result of his peculiar confessional style. Without altering this tone of rational contemplation, his book Urna diurna (Diurnal urn, 1974) signals a definite shift in his manner of writing. He abandons the rhetorical eloquence that marked his earlier books in favor of a more efficient, concise and eliptical language. In this change, he seems to have been influenced by the controversial trail blazing poet João Cabral de Melo Neto.


 

 

7. POESIA DO SUBSOLO, ENTRE PASSADO E PRESENTE

    José Paulo Paes[7]

 

 

Não é por acaso que no mais recente livro de Carlos Felipe Moisés, Subsolo, o poema de abertura é dedicado ao flautista Jean-Pierre Rampal e se ocupa em desdobrar as virtualidades simbólicas do mesmo instrumento de música que dera ao poeta o título do seu livro de estréia, A poliflauta. Tal simetria, reforçada pela circunstância de ambos os livros terem sido publicados pelo mesmo editor, Massao Ohno, mostra a fidelidade de Carlos Felipe Moisés aos sonhos e ilusões de sua juventude. Mas fidelidade de modo algum significa imutabilidade ou incapacidade de evoluir. Muitas coisas mudaram entre os versos do estreante promissor, mas ainda em busca da voz própria, dos anos 60, e os do poeta maduro de fins dos anos 80, senhor do seu canto, desencanto ou contracanto, que afinal “tudo é canto”, como ensina a reveladora paranomásia do penúltimo poema de Subsolo. Não obstante as mudanças, o poeta permaneceu substancialmente o mesmo, à semelhança do Proteu mítico, cuja identidade reside na sua própria capacidade de mudar: aquém e além de todos os eus possíveis, está sempre um proto-eu, Proteu.

Ao grudar o prefixo “poli” à redundante flauta de Bartolo, que não cansa de remoer interminavelmente o mesmo refrão popularesco, o estreante dos anos 60 simbolizava num oxímoro ou paradoxo a multiplicidade de caminhos que a juventude lhe desdobrava à frente, convite à aventura. Para o poeta maduro de fins dos anos 80, todos os caminhos se estreitaram em reconhecimento inescapável de suas limitações. Agora, em vez da poliflauta, a flauta solo. Solo: solidão. Fechado dentro do próprio corpo, a que chama significativamente de sua pátria, o poeta confessa:

 

O que não fiz, guardei no subsolo.

A flauta a arder no escuro é meu consolo.

 

Ao longo de 16 outros dísticos igualmente fechados sobre si pelo ferrolho da rima, tal qual o poeta dentro do seu corpo, oxímoros irão articular, na rica tessitura do poema inicial de Subsolo, aquele que me parece ser o motivo obsessivo do livro todo: a noção de perda como ganho. Pois o que armazena o poeta no subsolo de sua memória mais profunda, de onde retiram nutrimento as raízes da sua poesia, senão as frustrações de vida que desenham em negativo o perfil do que gostaria de ter feito, sido ou tido, e que, embora doa, é o que afinal lhe importa, mais do que aquilo que de fato fez, é ou tem? Daí a dialética de solo e subsolo a pervagar a simbólica do livro inteiro. Solo como monólogo e solidão; como delgado chão da vida mal lograda, debaixo do qual, avesso simétrico, negatividade positiva, se aprofunda bandeirianamente o subsolo de tudo o que poderia ter sido e não foi. Mas se não foi em realidade, é-o em poesia: a perda do homem é o ganho do poeta. Um ganho impossível de estimar, pois seu maior valor está na dúvida de existir, dúvida diafanamente sugerida pelos arabescos da flauta de Rampal:

 

O que não foi deixou de acontecer

ou queima nesta flauta até o amanhecer?

 

Assim, desde o seu pórtico, Subsolo timbra em pôr de manifesto as vigas-mestras de sua arquitetura, feita de paradoxos e alusões. Ainda há pouco, através de um advérbio, mencionei Manuel Bandeira, a quem remete alusivamente o título de uma peça como “Boi morto”. A presença de outros poetas pode ser facilmente rastreada nos versos do autor, quando não está explicitada, conforme ocorre no belo e palinódico “A paixão segundo Camões”, assim como em “Garcilaso”, no gonzaguino “Inconfidência” e no caudaloso “Mário de Andrade em San Francisco”.

Essa alusividade mais ou menos sistemática faz-se presente nas quatro partes em que está dividido Subsolo, identificadas tão-só por numerais romanos. A primeira é de índole mais confessional e rememorativa; a segunda reúne descrições poéticas de animais como o boi, o cavalo, a tarântula, a lagartixa etc., formando um pequeno bestiário; a terceira revê a significatividade de figuras míticas como Tirésias ou históricas como Joana d’Arc, quando não se ocupa em glosar com extrema liberdade versos-chave de poetas como d. Dinis ou Garcilaso; variações e desenvolvimentos ainda mais livres podem ser vistos nos dois primeiros poemas da quarta parte, sobre alusões à poesia de Mário de Andrade e Tomás Antônio Gonzaga, ao passo que o terceiro dessa parte, e último do livro, em que o poeta celebra, em clave melancólica e autocrítica, seus 30 anos de atividade poética, retoma a linha confessional do início da coletânea, fechando-a assim em círculo.

Mesmo quando se volta para temas exteriores, o autor de Subsolo continua a nos falar de si, não fosse a sua uma expressão entranhadamente lírica. Quando, por exemplo, ele se põe a descrever um polvo com seus oito braços a esculpir “maravilhas na água”, a objetividade da descrição não demora a assumir um viés subjetivo a partir do instante em que, cansado do seu balê aquático, o polvo

 

expele o negro óleo do tédio

(cortina? biombo?)

e ao limbo devolve

as imagens sonhadas.

 

Como não ver aqui um “alter-ego”, propositalmente grotesco, do poeta entediado de dar uma fugaz vida fictícia, no imaginário da arte, a sonhos até então confinados ao subsolo ou ao limbo do invivido? Por outro lado, quando entretece, numa operação de intertextualidade, versos ou sugestões de outros autores à sua própria dicção, Carlos Felipe Moisés fica sempre nas antípodas do epigonismo. O desenvolvimento que dá a esse material de enxerto é tão pessoal que mais parece ele estar levando à plena floração virtualidades que seus autores não souberam ou não quiseram desenvolver. Um caso particularmente ilustrativo é o de “A paixão segundo Camões”. Na forma hoje fossilizada do soneto que, ao tempo de Camões, estava ainda em pleno florescimento, Carlos Felipe leva ironicamente às últimas conseqüências, com apenas mudar-lhe o final, as implicações de um verso famoso: “Transforma-se o amador em coisa alguma”.

Pela voz de Emily Brontë, “Eu sou Heathcliff”, o Romantismo lograra converter em grito da carne a fusão amorosa das almas, que nos neoplatônicos da Renascença não passara de um elegante topos intelectual. Já na nossa pós-modernidade niilista, um topos que tal, “Transforma-se o amador na coisa amada”, só pode ter trânsito sob a forma de irrisão: “coisa alguma”. Mas bem feitas as contas, a palinódia ou retratação de Carlos Felipe – contracanto, desencanto do canto alheio – acaba por dizer aquilo que, como possibilidade última, estava implícito na matriz camoniana. Se o amador pudesse mesmo transformar-se na coisa amada, a mesmice tomaria o lugar da alteridade, a chama da infelicidade amorosa deixaria de queimar e, com ela, a da própria lírica camoniana, que nunca teria sido escrita.

É de se esperar que essa ilustração mais ou menos didática sirva para dar uma idéia do papel do intertextual ou alusivo na poesia do autor. Quando ali aparece, ele é tão-só o ponto de partida ou deflagramento de um processo de criação lírica cujo produto final o reduz à sua verdadeira dimensão de primeiro impulso de uma dinâmica daí por diante autógena, como toda poesia digna de nome, desde que o mundo é mundo.

Restaria assinalar que a reiterada presença do paradoxo ou oxímoro como princípio de composição, ao longo dos 33 poemas de Subsolo, aponta basicamente para um condimento de ironia que dá um sabor todo seu ao desencanto do mundo nele tematizado. Quem diz ironia diz duplicidade de visão, que, por sua vez, é típica do paradoxo, onde o olho da negação está a piscar maliciosamente o tempo todo para o olho da afirmação e vice-versa. Em Subsolo, o olho aberto da juventude, não cegado pela poeira dos dias idos e vividos, fica de guarda para impedir que alguma lágrima piegas ou melodramática possa assomar intempestivamente ao olho desencantado da madureza, “essa terrível prenda”. Com isso, rege-se a poética de Carlos Felipe Moisés por um saudável equilíbrio no qual, sem prejuízo da sua vincada originalidade, há algo de drummondiano – e Drummond é uma presença alusiva freqüente ao longo do livro. Tal equilíbrio, feito de ironia e pudor, vai esplender-lhe no poema de encerramento, “Mais um dia”, que não será demais considerar, pela riqueza de sua metafórica, pela vivacidade de sua rítmica, pela pluralidade de sua semântica, uma espécie de recolha em gran finale de motivos-chave disseminados pelos restantes poemas da coletânea. A pretexto dos seus 30 anos de atividade poética, o poeta faz um balanço de vida cuja severidade autocrítica, melancólica embora, não abdica do senso de humor, palavra que ressalta nessa estrofe reveladora:

 

A pele mais grossa,

os cabelos ralos,

o humor, o mesmo,

o coração que estala,

explode

e espalha no teto

a sua matilha de lobos

e cansaço.

 

Logo adiante, outra estrofe não menos reveladora se apóia numa palavra-chave, “recomeçar”:

 

Sei que tudo já foi dito,

e melhor, tantas vezes.

Mas é minha vez

de dizer mal-

dito e recomeçar.

 

Posto assim entre a poliflauta da juventude e a monoflauta da madureza, entre a negação e a afirmação de si, entre a perda de viver e o ganho de sonhar, entre o desencanto de tantos dias e o encanto de mais um dia, Subsolo assume o oxímoro ou paradoxo da vida sob o signo do sempre recomeço, que é, de resto, o próprio signo da poesia.


 

8. SUBSOLO

    Moacir Amâncio[8]

 

 

A leitura do último livro de Carlos Felipe Moisés deve começar pelo nome do autor impresso no alto da capa. E prosseguir pela palavra em grandes letras que vem depois: Subsolo. Não se trata de meras indicações e sim do início efetivo da série de poemas enfeixada no volume. Assinada por Delima Medeiros, essa capa funciona como um poema visual em que o nome do autor e o título da obra, letras brancas sobre fundo preto, com barra multicolorida irregular (uma cortina que se levanta), anunciam a postura poética evidenciada nas páginas seguintes.

Subsolo. Sub-solo. O que está por baixo do chão – as inúmeras vozes que, através do trabalho individual, se expressam plurais no singular. Em outras palavras, a soma de influências conscientes e inconscientes trabalhadas pelo escritor que já não pode, honestamente, acreditar que atua solo. A sua performance a capella terá sempre algum ou alguns parceiros. As grandes lições contemporâneas mais evidentes se chamam Eliot e Jorge de Lima.

Com a consciência dessa esquizofrenia, Carlos Felipe Moisés se exercita numa poesia que em “Boi morto” e “Boi para Guilhermino” remete a uma nova leitura do boi drummondiano e que na terceira parte se estilhaça num universo formado por Eliot, Sófocles, d. Dinis, Camões e também um pintor, Le Douanier. Ao contrário do que pode parecer, a poesia de Moisés, embora construída com a sensibilidade do artesão, se realiza efetivamente nos domínios da emoção.

O melhor exemplo está no longo poema que conclui o volume: “Mário de Andrade em San Francisco”. Dedicado a caráter a Roberto Piva e Cláudio Willer, poetas que incorporam a explosão beat aos seus livros, o texto sugere também uma tese sobre a libertação do sentir e do viver nestas Américas desvairadas, em que o modernista brasileiro seria grande precursor.

San Francisco, como se sabe, foi capital mundial de movimentos libertários. Moisés, aí, procura São Paulo com nova versão da “Canção do exílio”. E a redescobre em imagens que se sucedem como num videoclipe. Não é só Mário que acompanha Moisés – aí estão as vozes de Whitman e de Ginsberg, além, claro, de Gonçalves Dias. Essa tendência contemporânea de incorporar vozes alheias lembra por oposição a fingida divisão de Fernando Pessoa nos heterônimos, que adquire um tom irônico. É a individualidade contemporânea, que se vê e se forma nos outros ou que se reparte para se conhecer.


 

 

9. CRIAÇÃO SIMÉTRICA

    Cláudio Willer[9]

Subsolo (ganhador do prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte como melhor livro de poesia de 1989) encerra-se com a bibliografia do autor. Isso não mereceria registro se a produção anterior de Carlos Felipe Moisés não ajudasse a conferir sentido a seus poemas mais recentes. Sua obra se divide, simétrica e equitativamente, em poesia e ensaio. Além de poeta, é teórico do assunto, professor de literatura. Em Subsolo, prevalece essa simetria. Há equilíbrio entre sensibilidade e reflexão, entre a dimensão poética e a crítica. Por isso, permite considerações sobre essas duas dimensões, afins (mas não idênticas) ao tradicional par emoção-razão.

Há muito se tornou impossível uma poesia inculta, que dispense uma bagagem literária. Hoje é problemática uma poesia ingênua, alheia ao saber especializado sobre literatura. Mas há escritores nos quais a dimensão teórica oprime a instância do poético. Sua criação aparece como prova da teoria, assim como, na perspectiva positiva, o experimento, prova dos fatos, atesta o valor do sistema. Além da produção caudatária do hiperteoricismo (a exemplo de alguns momentos da poesia concreta), há outras formas de intelectualidade de gabinete, áridas construções a frio do texto.

No último poema de Subsolo, intitulado “Mais um dia”, seu autor manifesta a consciência do já escrito, que o precede: “Sei que tudo já foi dito, / e melhor, tantas vezes. / Mas é minha vez / de dizer mal- / dito e recomeçar”. O mesmo poema registra a consciência do já vivido:

 

Um novo dia igual

aos dez mil novecentos e cinqüenta

já transcorridos (...)

consumidos à distância,

no silêncio do quarto

onde rodopia

há trinta anos

a mesma inútil melodia. (...)

Um dia a mais,

um dia a menos:

quase nada.

 

Fosse Carlos Felipe Moisés mais delirante ou místico, celebraria o Eterno Retorno, como Nietzsche: “Então é isto a vida? Pois bem: repita-se!”. Fosse mais cerebral, a amplidão do já escrito o levaria a exercícios de intertextualidade e metalinguagem. No entanto, seu caminho é outro, pessoal e original.

A primeira parte do livro (que parece ter sido editado numa ordem cronológica inversa, textos mais recentes no começo) retoma a temática do final: “Em quatro passadas / percorro meu quarto / e retorno / e torno / a percorrer”. A ruptura da circularidade é feita pela via do imaginário: “Meu quarto / se dissolve no ar da noite. / (...) Convertido em sombra / meu quarto / se esvai”, transformado agora em “paredes de sonho / (barro / de um novo dia?)”, ao som de uma “improvável melodia”. O imaginário é o Subsolo do título, espaço negativo: “O que não fiz guardei no subsolo. / A flauta a arder no escuro é meu consolo”. Flauta impossível, que simboliza a poesia: “O que não foi deixou de acontecer / ou queima nesta flauta até o amanhecer?”.

Mas Carlos Felipe Moisés é culto e sensível o bastante para não se satisfazer com a enunciação de uma equação simplista na qual o real é o prosaico e o irreal é o imaginário poético. Afinal já disseram antes que a poesia é inefável. Ele vai além, questiona o princípio da identidade e as categorias real-irreal:

 

Neste sopro arde o país de onde venho.

Como perder aquilo que não tenho?

 

É este o meu país e não sou eu,

é o corpo onde meu corpo se estendeu. (...)

 

Inútil esperar o que não vem.

Se tenho, não é meu. Nem de ninguém.

 

O poeta funde as entidades bipolares como sonho e realidade: “Às vezes me pergunto / se de fato aconteceu. / (...) Melhor / não ter acontecido: / não me arderia o peito / quando tento lembrar / e não consigo”. Tanto faz se aconteceu ou não, desde que transfigurado pela poesia, aqui simbolizada pela música: “O realejo / lembra alguma coisa, / uns braços nus, / o rosto alheio, / jamais tocado. / (...) O realejo / não lembra nada. / (...) O realejo lembra, / sim, alguma coisa / que não vale / ser lembrada”.

A poesia trata do que está entre o acontecido e o imaginário, espaço onde real e irreal se confundem: “O rosto enfiado na terra / escrevo solo e digo nuvem. / Solo & subsolo, conluio / amoroso de asas e raízes”. O texto não é manifestação de uma pura subjetividade, muito menos descrição objetiva, porém busca de síntese da contradição entre solo e nuvem, sujeito e objeto.

A segunda parte do livro traz uma série de poemas sobre animais, míticos ou reais. Um bestiário, zoologia particular. O cavalo que foi alado e “se alimenta da noite”; um lobo que “abraça a neblina”; a ratazana que sente “o puro gozo de roer / a própria alma”; um polvo que “esculpe maravilhas na água”; o unicórnio que “desperta com o dia / e soletra, um a um, / os nomes bem amados”. Para finalizar, o minotauro: “Reino em ruínas, seu manto é o céu / onde pasta serena majestade”. Os três poemas sobre o boi são particularmente antológicos. Esses animais, todos eles, têm características que não são suas. São outras coisas, alteridades. Metáforas do poético, do que, sendo aquilo, é outro.

A seguir, uma galeria de personagens, históricos ou míticos, exemplos de derrotas e relações contraditórias com o mundo: “mundo aqui temos falso e sem sabor”. Camões “transforma-se, de amar como um perdido, / em sombra de si mesmo, ausência, nada”. Garcilaso “achou, no vau do rio, o rosto amado, / não, mas o coração abandonado / das águas que não cansam de lembrar”. Comparecem também Joana d’Arc, Édipo, Fausto, Tirésias – este imerso num mundo paradoxal de “flores tangíveis / como sombras”. Através desses personagens são retomados os paradoxos da primeira parte do livro: “Os dias se perdem no ar, / os dias se ganham no ar, / inteiros no ar, transparentes, / como sombras”. O poeta não atua mais sobre a realidade tangível, nem celebra o intangível. Resta-lhe a dimensão do poético, onde a sombra é concreta, assim como a concretude é sombra. O mundo do poeta moderno se reduz, perdida a dimensão épica: “O poeta ouvia o canto enorme do País. / Já eu me esforço por ouvir alguma coisa / mas não ouço nada”. Ao mesmo tempo, o mundo é amplo, infinito: “Afinal / desencanto ou contracanto, tudo é canto”.

A originalidade de Carlos Felipe Moisés só pode ser caracterizada negativamente, enumerando-se os autores aos quais não pode ser assimilado. É irredutível a tendências. Estudioso de Pessoa e Cabral, não escreve à maneira deles. Plural, vai, em Subsolo, das formas clássicas à dicção coloquial e informal, como no extenso “Mário de Andrade em San Francisco”, em que dialoga com Mário, enquanto percorre cenários de poemas de Ginsberg. Uma curiosidade: o texto é dedicado a dois poetas brasileiros contemporâneos, e um deles, Roberto Piva, já havia efetuado esse deslocamento, porém ao contrário, apropriando-se do poema de Ginsberg sobre o supermercado na Califórnia, transpondo-o para o Parque Ibirapuera e pondo Mário de Andrade como interlocutor, no lugar de Walt Whitman. Anos depois, Carlos Felipe Moisés inverte o procedimento e leva Mário e seu estilo a San Francisco.

Tais procedimentos reflexivos, gerando poemas sobre outros poetas e suas obras, porém de modo oblíquo, mereceriam ultrapassar o mero registro como curiosidade. Isso desde que poetas como os epigrafados fossem mais lidos e discutidos. Também obliquamente, Carlos Felipe Moisés homenageia uma geração poética, a dos anos 60, da qual faz parte. Centrada em São Paulo, inclui dezenas de nomes em atividade, vários dentre eles já reconhecidos. Ao contrário das gerações precedentes (especialmente a de 45) e seguintes, a de 60 é extremamente plural e diversificada. Não há como enquadrá-la em tendências literárias e ideários poéticos: seus integrantes parecem ter em comum a apenas crença na poesia e o fato de terem assumido sua condição de escritores. Isso dificulta sua catalogação, sistematização e periodização, o que se reflete, no plano particular, na dificuldade em enquadrar um autor como Carlos Felipe Moisés e, no plano mais geral, em lacunas na crônica de um período recente, porém importante, da história da nossa literatura.


   

10. ITINERÁRIO POÉTICO

Wilson Martins[10]

 Em 1974, ao publicar os Poemas reunidos, Carlos Felipe Moisés documentava, em pequena nota editorial, o processo de seu amadurecimento poético: “Esta edição reúne A poliflauta, de que foram eliminados 6 poemas, sofrendo os restantes alguns reparos de ordem formal; O signo e a aparição, de que se conservaram apenas dois fragmentos; A tarde e o tempo, transcrito na íntegra; Carta de marear, transcrito na íntegra, com alterações na disposição tipográfica de alguns versos e com o acréscimo de subtítulos para as partes; e Urna diurna, inédito”. Penso, quanto a mim, que este último será, por sua vez, omitido em alguma futura coletânea de poemas reunidos, na qual, ao contrário, serão mantidos (com alguns retoques), além dos que compõem Círculo imperfeito (1978), obra claramente menor e, por assim dizer, circunstancial no seu universo poético, a quase totalidade dos que agora aparecem em Subsolo (1989). Em outras palavras, Carlos Felipe Moisés alcança, com esse livro, a plena maturidade poética, que consiste não apenas em escrever novos poemas – e grandes poemas, como “Mais um dia”, “Inconfidência” ou “Mário de Andrade em San Francisco” – mas também em rejeitar os que pertencem ao que poderíamos chamar, nessa ordem de idéias, a sua adolescência literária.

De fato, a arte e, em particular, a arte da poesia é feita mais de eliminações que de acréscimos ou acumulações mecânicas; é igualmente verdadeira no plano individual a observação de Gaetan Picon segundo a qual o que denominamos arte não é a totalidade do que se escreveu, mas o conjunto do que permanece. O mimetismo, que marca necessariamente toda adolescência, artística ou outra, era, no caso de Carlos Felipe Moisés, tanto mais imperioso quanto se trata de escritor impregnado das suas leituras. Assim, por exemplo, Fernando Pessoa exercia sobre ele, em A poliflauta, uma influência quase paralisante, a começar pela epígrafe. Em poemas como “O tédio vem dos longes com cheiro de abismo”, “O gato enorme e preto” ou “Viagem”, pode-se ler o poeta português em filigrana, o que também acontece com “Signo”, de O signo e a aparição e, mais uma vez, na epígrafe de A tarde e o tempo. Nascido em 1942, Carlos Felipe Moisés vivia na década de 60 os seus anos de formação civil e poética.

Não devemos, entretanto, confundir essas influências reflexas com o caráter “literário” (no bom e no mau sentido) que lhe distingue a poesia: trata-se, afinal de contas, de um crítico e professor de literatura, em cuja galeria de ícones sagrados estão expostos em permanência os retratos de Mário de Andrade e Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Camões, Gonzaga e Carlos Drummond de Andrade, valores, aliás, ligitimantes de qualquer poeta brasileiro moderno digno desse nome. Em outros casos, como no de T.S. Eliot, eu diria que as atrações são puramente livrescas e eruditas, mais que espontâneas e temperamentais, na linha das febricitantes leituras juvenis que, no testemunho de um amigo, incluíam Rilke, Perse e Pound, todos poetas cerebrais, com os quais terá poucas afinidades profundas, além dos já mencionados “grandes poetas da língua”, entre eles, Jorge de Lima, cuja condição de “grande poeta da língua” requer, creio eu, alguma reconsideração.

O risco evidente de tantas leituras está em reduzir a mera atividade paraliterária a espontaneidade criadora, está em conduzir à conhecida síndrome da “ansiedade da influência”. Assim, por exemplo, eu me pergunto se a enigmática conceituação eliotiana de abril como “cruellest month” não levou Carlos Felipe Moisés a qualquer coisa como um anacronismo climático e astronômico, assim como, por imitação francesa, os parnasianos situavam a nossa primavera no mês de maio. Claro, é possível que o seu abril – lançando “despojos que o tempo em seu passar já não apaga” – seja de natureza puramente sentimental e afetiva, sem qualquer relação com o calendário ou as estações do ano, porque o “nosso” abril (digamos, o da andradina “Elegia de abril”) será antes temperado e melancólico, mais que agressivo e intratável.

O que nos reconduz à substância autobiográfica dessa obra, que, conforme assinalei em 1967, é a “tradução de uma realidade psicológica”, caráter, aliás, comum a toda grande poesia (a pequena poesia ou a não-poesia são apenas a “transcrição”, não a tradução das realidades psicológicas). Ele dedicava os Poemas reunidos aos “poetas da [sua] geração”, alguns deles famosos durante os “quinze minutos” proverbiais do célebre epigrama, outros ainda à espera do pleno reconhecimento, como Neide Archanjo, por exemplo. São poetas que, surgindo no outono glorioso do Concretismo, e dele independentes, viram-se rejeitados para as trevas exteriores, porque todos os holofotes da publicidade se concentravam então nos ruidosos manifestos e manifestações verbivocovisuais, tanto mais estridentes quanto mais percebiam a própria desintegração. Escrevendo sobre Carta de marear, pareceu-me que a poesia de Carlos Felipe Moisés afirmava-se tacitamente contra a “alienação da forma pela forma, que logo conduz ao mecanismo estéril da fórmula pela fórmula”. Foi o que aconteceu com o Concretismo, sabemo-lo agora, porque, como disse Jean Dutourd, “o destino cruel das vanguardas, na arte como na guerra, é fazer-se matar”.

Por paradoxo, passaram a sentir-se cada vez melhor todos os que os concretistas haviam morto e julgavam enterrados, mesmo porque incidiram, ao que parece, num engano de modernidade: Pound  recomendava, realmente, fazer algo novo, mas, em língua inglesa, caberia inverter o destinatário da famosa dedicatória e encarar Eliot como “il miglior fabbro”. Em português, foi o seu contemporâneo Fernando Pessoa, cujo defeito era escrever num idioma que o mesmo Pound, sem, de resto conhecê-lo, julgava irremediavelmente antimusical. E que não o leu, nem em português nem em inglês, território lingüístico e moral em que, àquela altura do século, Fernando Pessoa estava igualmente fazendo “algo nuevo”.

Fernando Pessoa e os outros já se tornaram simples marcos miliários no itinerário poético de Carlos Felipe Moisés. Um poeta capaz de escrever os poemas de Subsolo e, em particular, os que ficaram acima destacados, tem agora o direito de ocupar um lugar de primeira importância no quadro da literatura brasileira contemporânea.


 

 

 

 

11. SUBSOLO (OU SUB-SOLO)

      Antônio D’Elia[11]

 

Está em Rilke: os versos não são sentimento, mas experiência. Na parte posterior da capa de seu livro Subsolo, o poeta Carlos Felipe Moisés declara que suas tentativas talvez venham a dar um verso, um só, que vem buscando há 30 anos. Claro que há aí exagero. Como é exagero dizer-se que Rilke pudesse considerar que o seu achado fosse o terceiro verso do primeiro quarteto do seu famoso soneto “Archaischer Torso Apollos”, no qual descobre que “sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber” (seu torso ainda fulgente é um candelabro). Grande achado, vá lá, mas há milhares de agulhas no seu palheiro.

Subsolo mostra um poeta senhor do seu ofício. Mas também muito exigente. Sentimento é coisa que a gente percebe logo ser de alguma maneira elemento da sua – como dizem hoje – carpintaria. (Aqui eu preferiria falar em marcenaria.) Mas a experiência rilkiana não lhe falta nunca: ele não espera aquilo que um dia chamaram inspiração, que era um régio presente da que chamavam musa, ou seja, o que Jorge de Lima erigia na magic hand of chance de Keats, mandando: “olhai vossa mão – que vossa mão não vos pertence mais, / olhai como parece uma asa que viesse de longe” (A mão a escrever em alta noite).

Mas se o poeta não encontra o seu verso, a culpa é sua, não do leitor. Sinto-o forçando-se a negar uma entrega maior ao ímpeto, ao jorro; o seu espírito crítico o contém: é o menino holandês tapando o buraco no dique. Soltasse a mão, construiria o que espera há 30 anos. Isto: sua filhinha deu-lhe a magic hand of chance. Ele conta: ouviu o bater do coraçãozinho dela quando ainda no ventre da mãe; mal começou a falar, ela perguntou-lhe: “Você ouviu a sombra da minha voz?”. Que poema, não espero que verso, ele construiria, com a sua experiência e a sua sensibilidade, a partir da dádiva dessa metáfora!

Se é a experiência que faz a poesia, olhemos para “Mais um dia”, o último poema do livro. Aí, a experiência, o “experimentado”, o sofrido, o sucedido, o fait divers jornalístico, desencadeia estrofes (sentidas, é claro) fixadas implacavelmente na memória por um ritornello que põe o decorrer do tempo como o flagelo de cada dia, “um novo dia igual / aos dez mil novecentos e cinqüenta / já transcorridos”.

Diga-se também que Subsolo (ou Sub-solo, como contrapõe misteriosa e interrogativamente o poeta) tem a poesia leve, mas aliciante, dos à la manière de Camões, dos comme dirait Gonzaga.


   

 

 

12. A MODELAGEM DO VAZIO:

      O IMAGINÁRIO DO POETA CARLOS FELIPE MOISÉS

      Álvaro Cardoso Gomes[12]

 

O que canta a poesia? O que canta o poeta, principalmente este que mastiga “um naco de sombra”? O que o anima? O que faz dele um simulacro de minotauro, que vive num reino feito de exílio? São perguntas que o lúdico preenche com emoção e ironia, e o crítico procura devassar com sua inteligência (aliada à emoção), muito aquém (ou além) do espesso muro de melodia. Então, por que a devassa, se o canto é o que afinal de contas importa? Mas o canto é um novelo e, como todo novelo, enrola-se em si próprio e prepara uma armadilha de subentendidos que chama para si a iluminação do crítico. Em suma, uma velha questão: por que falar da poesia, se a poesia já é uma fala essencial? Por uma razão mais ou menos óbvia: a poesia é fala, mas fala de balbucio, espanto de criança, intervalo melodioso entre o homem e as coisas, enquanto a fala-da-poesia é a transliteração das sombras, é o discurso que se articula, pronto a atualizar a potência do sopro, dando um sentido (entre vários) ao “tropel de trapos / lençol amarfanhado / a convulsão de umas sílabas rebeldes / desarrumando a cama” (“Linguagem figurada”). Camareiro dos lúcidos desatinados, o crítico arruma a cama, após a orgíaca celebração de mais uma noite de desassossego, de mais uma convulsão prodigiosa, que provoca a revitalização do real-lagartixa, ao lhe confiscar as entranhas, para mostrar, entre suas frinchas, o inusitado, o que o olho desarmado jamais vê.

Feito este preâmbulo, perambulo pelo imaginário do poeta Carlos Felipe Moisés, através do qual ele procura cantar o “ar vazio”, matéria de nada, que se assume e só pode assumir-se como melodia. E como fazê-lo, se essa matéria é assombro? Talvez começando por identificar o núcleo da sua voz poética. Não seria demais dizer que Carlos Felipe equilibra-se numa balança cujos pesos são a emoção e a ironia. Melhor dizendo, essa balança oximoristicamente equilibra os contrários, para liberar o coração, evitando, porém, que os fluidos emotivos se derramem. Musset, enfant gaté, se não me engano, teria dito que os melhores poemas eram “puros soluços”, com isso querendo afirmar uma impossibilidade: a liberação dos sentimentos em estado bruto, sem passar pelo crivo da inteligência ou mesmo da figuração. É bem verdade que há aí uma boutade tipicamente romântica, que não pode ser levada muito a sério. Mas boutade ou não, obliquamente, ela nos auxilia a refletir sobre a poética de Carlos Felipe, ou mesmo sobre o conteúdo emotivo de sua poesia. Tal conteúdo existe, está presente, implícita ou explicitamente, na palavra “coração”, repetida algumas vezes, ou mesmo na metáfora do “lençol amarfanhado” ou da “cama desarrumada”. A emoção é, pois, o impulso deflagrador, a fonte subterrânea, inconsciente, que alimenta o poema; contudo, longe dos “puros soluços”, ela é, no dizer de Bousoño, “emoção contemplada”, transformada em objeto estético e mediada pela ironia.

Para situar melhor essa antítese básica emoção/ironia, talvez fosse conveniente que me detivesse um pouco numa metáfora bastante feliz, que dá título a um dos livros de Carlos Felipe Moisés: Subsolo. Apesar de transparente a um primeiro olhar, essa imagem impõe-me algumas reflexões. “Subsolo” é o espaço subterrâneo, das pulsões interiores, ctônicas, mundo das paixões, da “sombrespessa”, cofre das emoções. “Solo” remete a quatro sentidos, que se interrelacionam: solidão, voz musical em “solo”, sol e chão. A solidão é fecunda, propiciadora do gesto que escava o solo, para o encontro de pulsões poéticas, que se manifestarão através da voz lírica em “solo”. Sol e chão, por sua vez, dão a dimensão solar e terrestre, que equilibra as paixões e explica (em parte) a tenacidade de existir, a crença na força da palavra que, da matéria do nada, constrói seu edifício. Volto, portanto, ao início de minhas reflexões: o título Subsolo remete ao par emoção/ironia, aquela fundada nas trevas, na desordem, na paixão, na dor frente ao vazio, ao nada, nos apelos dionisíacos; esta fundada na luz, na ordem, na serenidade despida de autopiedade, com que contempla a própria dor, e enfim – para se manter a lógica dos pares – nos apelos apolíneos.

E como se manifesta a ironia? Diria que de dois modos básicos. Num primeiro caso, ela deve ser entendida da perspectiva mais simples, como um elemento que provoca uma deliberada forma de humor. Esse tipo de ironia comparece em alguns poemas como “Conjugação” e “Aula de Francês”. No primeiro, as ciências da morfologia e da geografia são convocadas e, na seqüência, subvertidas, para que o poeta comente ironicamente o desencontro humano:

 

eu me arquipélago

tu te maravilhas

ele se istma

nós nos montanhamos

vós vos espraiais

eles se eclipsam.

 

Desse modo, o título funciona como espécie de litotes, na medida em que o sentido do termo aponta para o oposto: conjugar é o mesmo que juntar, mas os seres se maravilham, se istmam, se eclipsam etc., isolando-se. No segundo poema, o poeta coloca-se ironicamente na pele de um aprendiz de língua francesa, que se defronta com lugares-comuns, imagens-clichê, como o clássico início de uma fábula de La Fontaine, “la cigale ayant chanté”, a que se agregam imagens surrealistas como “l’entrecote flambé” e os apelos sensuais de Clô e Gaia – e o aprendiz se permite pequenas transgressões irônicas, como, por exemplo, o duplo sentido dado a “cou”, pescoço travestido ou sonoramente transliterado no gracioso e parnasiano ânus de alabastro de uma certa Gaia. Mas esse humor, que existe nos interstícios da dúvida, completa-se no final do poema com a fuga do coração ante o exercício da mesma dúvida, herança de um modo analítico, cartesiano de pensar, que fragmenta a realidade e exige do sujeito as eternas opções: “bah! / mon coeur s’en va”.

Essa ironia, que se alia ao humor, é responsável por outros poemas próximos, como “Ortografia”, “Sintaxe”, “Pergunta”, “Marca registrada” ou o soneto “Ars poetica”, e torna-se mais contundente quando subverte a noção de ensino. Lição de casa é o título da coletânea de onde provêm esses poemas e o poeta é o não-aplicado aluno, que mancha de poético algumas noções gramaticais, e outras, muito caras à tradição. A “Morfologia”, ciência das formas da linguagem, revela, antifrasicamente, a impotência do poeta frente às palavras, que se tornam “nacos de sombra”, ao serem mastigadas. Por isso mesmo, como as sombras assombram na ausência de som, de melodia, a memória se transforma num deserto de cinzas, tábula rasa. A “Etimologia”, por sua vez, perde o ranço passadista e se torna prospectiva, traduzindo-se poeticamente em “cada anseio / que a língua / recolhe”, ou seja, é ciência viva, que recupera nas palavras sua pulsação orgânica, sob o solo: o cor/cordis presente no “saber de cor / o coração”. Enfim, em “Linguagem figurada”, a retórica, apriorística ciência, ganha com a anarquia dos tropos/trapos nova iluminação: linguagem figurada é a desordem, é a indisciplina, é a emoção (“o peito de quem ama”), a folha em branco desarrumada pelas “sílabas rebeldes”. A figuração, a intrusão de imagens no cotidiano, é o cerne da subversão poética, pois mexe subterraneamente com a linguagem.

Mas essa ironia que se alia ao humor, mais direto ou indireto, pode ganhar em outros momentos – e eu diria até que na maioria dos poemas de Carlos Felipe – uma dimensão mais ampla, quando comparece sob a forma do distanciamento. Distanciamento em relação a quê? Em relação à emoção, que, desse modo, em vez de transformar o poema em “puros soluços”, dá-lhe a dimensão de objeto estético que comove, no sentido etimológico de “levar junto”, de provocar aquele tipo de empatia superior, sinônimo de universalização. Tal se dá, por exemplo, através da mitologia, como em “Minotauro”. O ser meio homem, meio animal, é símbolo daquele que se sente “abrasado em sonho” e que, por viver intensamente o sonho, “o sonho azul de toda criatura”, termina por fechar-se em seu labirinto, reino de nada, “em ruínas”. A loucura lúcida do minotauro parece emblematizar a consciência do eu-poético que, pessoanamente, tem tudo e nada quer, e cujos objetos de posse se traduzem como o inefável: “os pássaros que [lhe] fogem dos olhos”, “a noite abrigada em [seu] peito”, “a música de [seus] passos”, em síntese, “o canto [que] flutua no ar vazio”. Essa disposição em abraçar o “vazio”, só realizável através do canto, é forma de superar o impasse da existência, que menos dá do que mais oferece. A dor, portanto, ao passar pelo crivo da ironia/distanciamento, atenua-se e não se transforma em constrangedora autopiedade.

É o que também acontece no plano do amor, em “A paixão segundo Camões”. Aqui, o poeta usa do distanciamento, ao revisitar a tradição lírica e, de certa forma, o plano do mito. Camões, como o homem-touro de Minos, também buscou um sonho alado, em nome de sua fome de Absoluto: o amor, nele, era a escada da perfeição, a totalidade conquistada pela integração amante/amada. Carlos Felipe, ainda que adote o tom clássico do soneto camoniano, parodia o poeta português, instigado por sua consciência crítica e por sua consciência aprioristicamente dolorosa da perda. Nele, o “amador” é tão desarmado quanto o minotauro, pois ambos deparam o muro do sem-sentido das coisas: aquele vê o vento negar-lhe o segredo, que se converte apenas em “treva e labirinto”; este tenta em vão decifrar “o rosto da paixão”. O nada em que se transforma o amor do amante é equivalente ao “trono” feito do “nada” em que o minotauro “abrigou sua loucura”.

Essa consciência serena, estóica, simulacro do sol/solo, e que se equilibra sobre as pulsações do subsolo, ao certificar-se de que há um abismo entre o sonho e a realidade, erige sua poética como uma estética da demolição (entende-se então o porquê da ironia/humor) ou como a estética do vazio. O coração, que se esvai entre uma coisa e outra, é também o responsável por preencher de poesia as lacunas do real, os interstícios da memória. Assim, se a verdade se perde, como “sonho breve”, como “branco escondido no branco”, é porque, filosoficamente, o absoluto se nega porque absoluto, ou seja, a revelação, como toda revelação, ofusca e cega. Ou, como dá a entender o poeta, poeticamente: onde melhor esconder o branco senão dentro do próprio branco? Mas o desalento, o mundo das emoções, com a perda da verdade, da revelação, enquanto filosofema da consciência em pane, ganha outra dimensão, quando, meditando sobre o vazio (o branco?), o poema acaba por nascer do espaço desse mesmo vazio, o branco do papel. Instala-se novamente o reino da ironia: o minotauro, soberano de nada, é soberano de tudo, porque, como em Pessoa/Campos, tudo é igual a nada...

Em suma, alguns dos grandes projetos da suposta consciência vivente ou do eu-emotivo desmancham-se ou são mediatizados pela consciência poética do eu-irônico, que, ao intervir, faz que a linguagem recupere sua missão essencial: a da revelação, não de uma verdade, mas daquilo que constitui mesmo o imponderável ou as “margens do real”. Nesse sentido, a poesia de Carlos Felipe Moisés nega-se a um vulgar essencialismo ou a uma discursividade filosófica, negadores da poesia. A poesia, para ele, configura-se como o autêntico real, exatamente porque ele procura, de um modo que eu diria minimalista, apreender o espaço oco entre as coisas, aquilo que o olhar distraído deixa de lado, talvez pelo fato de que resida no subsolo. Desse modo, em “Modelagem”, podemos ver uma paródia da construção parnasiana. Metáfora tradicional da arte poética, a escultura (e seu parente pobre, a ourivesaria) foi contemplada, por exemplo, com uma “Profissão de fé”, de Olavo Bilac, que procurava preencher o vazio com o esplendor da forma rutilante. Devoto da deusa Forma, o poeta parnasiano projeta na realidade um objeto com peso, cor e densidade, que é o próprio poema, simulacro de uma Vênus de Milo, de um vaso grego, de um anel. Já Carlos Felipe segue caminho contrário, pois, ao invés de modelar a matéria, propõe “cavar em torno / o oco sobrante / ao quase nada / de dentro”, poetizando o paradoxo: “o já-não-mais / do ainda-não”. Resultado, a poesia modela “o grito / a água que escorre / o brilho da estátua”, e não a sua forma, a sua matéria.

O que emerge, enfim, dessa semeadura de subsolo? A subversão das formas, a consciência da impossibilidade de se atingir a plenitude, a consciência do vazio, do nada, mas não numa discursividade estéril. Tais conteúdos atingem abrangência maior no corpo do poema ou são a instigação metaforizada do próprio poema. Como em “Lagartixa” (onde reaparece a oposição dentro/fora da “Modelagem”), a lagartixa cuja “pele / de tão fina / já não é: / limita / semovente / o nada de fora / e o quase nada / de dentro”. O poema nasce dessa articulação entre um “fora”, a fina pele, e um “dentro”, o ventre, que é “pura transparência”. A lagartixa, animal rastejante, é anatomicamente retalhada pelo poeta. Seu bisturi caótico revela-nos, aparentemente sem método, as partes constitutivas do todo: peito, olhos, língua, patas, ventre, entranhas, pele, coração e rabo, cada uma delas remetendo a uma imagem: vidro, porcelana, néctar, estanho, transparência, andaime, pétalas, nuvem, alga. Em suma, o poeta, a partir da lagartixa, instaura inusitados nexos entre os reinos mineral, animal e vegetal, fundindo isto e aquilo e eliminando a alteridade, a separação entre as coisas. Na verdade, realiza uma anti-anatomia: o retalhamento do animal é ilusório, porquanto, ao invés de reduzi-lo a partes sem um todo, aponta o caminho para um absoluto de relatividades ou para o “céu aberto”, virtualidade da imaginação, com isso superando nossa condição nadificante e condenada à dor, ao desalento.

Assim se realiza um itinerário poético, e a poesia voltada para si mesma cumpre sua função máxima, que é a de expandir o imaginário. A lagartixa-poema deixa de ser o anódino e mesmo repelente animal rastejante e, através da “imaginação sem fios”, torna-se alada. A forma de superar o vazio, o nada, a inessencialidade da existência não está, portanto, no discurso estéril, transparente, que, incapaz de realizar a integração dos múltiplos e díspares elementos da realidade, condena a linguagem à servidão. Essa tarefa, como bem se vê em Carlos Felipe Moisés, só a poesia a realiza, expandindo o sentido das palavras e mostrando suas ramificações subterrâneas. Com isso, o poema ganha autonomia em relação ao real, ou melhor, transforma-se, no dizer de Novalis, no “autêntico real absoluto”.  

 



[1] Anuário das Artes, São Paulo, Associação Paulista dos Críticos de Arte / Fundação Bienal do Estado de São Paulo, 1975, p. 63.

[2] Suplemento Cultural, O Estado de São Paulo, 29 de abril de 1979.

[3] Caderno de Sábado, Correio do Povo, Porto Alegre, RS, 11 de agosto de 1979.

[4] Revista Colóquio|Letras, Lisboa, no 52, novembro de 1979, pp. 103-104.

[5] Revista de Poesia e Crítica, Brasília, no 6, dezembro de 1979, pp. 66-67.

[6] Poet & Critic, Ames, Iowa State University, Winter 1987, Vol. 18:2, p. 27.

[7] Folha de São Paulo, 16 de dezembro de 1989, Letras, G-7.

[8] Caderno de Sábado, Jornal da Tarde, SP, 30 de dezembro de 1989.

[9] Idéias, Jornal do Brasil, RJ, 3 de março de 1990.

[10] Caderno de Sábado, Jornal da Tarde, SP, 24 de março de 1990.

[11] Revista de Poesia e Crítica, Brasília, ano XVI, no 16, maio de 1992, p. 65.

[12] Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Lima-Hanover, año XXVI, no 52, 2do. semestre del 2000, pp. 303-308.

 

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26.3.2017