ENTREVISTAS
1. REGINA IGEL ENTREVISTA CARLOS FELIPE
MOISÉS
Carlos Felipe
Moisés nasceu em 1942, em São Paulo, Brasil. Em 1960,
publicou seu primeiro livro, A
poliflauta, seguido um ano depois pelo poema-plaquete “O
signo e a aparição”. Fez parte, nessa altura, de um grupo
de jovens escritores, de São Paulo e Santa Catarina, que se
fizeram conhecer como “Os Novíssimos”. O grupo se
dispersou e Moisés prosseguiu, incorporando a crítica literária
à sua vertente poética. Alguns de seus trabalhos mais
representativos, entre os livros de poesia já publicados, são:
A tarde e o tempo,
1964 (Prêmio-estímulo Governador do Estado de São Paulo,
1963), Carta de marear,
1966 (Prêmio Governador do Estado de São Paulo, 1965) e Círculo
imperfeito, ainda inédito para o público (Prêmio Gregório
de Mattos e Guerra, da Fundação Cultural do Estado da Bahia,
1977). Entre suas obras críticas, assinalamos: A multiplicação do real, 1970; “João Cabral de Melo Neto” in Poetas
do modernismo, 1972; e Poesia
e realidade, 1977.
Doutorou-se
pela Universidade de São Paulo em 1972, com a tese A
problemática social da poesia de José Gomes Ferreira, e
obteve o grau de livre-docente
em 1977, pela mesma universidade, com a tese O
poema e as máscaras: microestrutura e macroestrutura na
poesia de Fernando Pessoa. Desde 1966, exerce o magistério
superior, tendo ensinado literaturas de língua portuguesa em
várias universidades brasileiras. Entre 1974 e 1975 esteve
nos Estados Unidos, como participante do International Writers
Workshop, em Iowa City, Iowa. Atualmente leciona literatura
brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
RI
- Como você situaria sua poesia em relação à moderna
poesia brasileira?
CFM
- A poesia brasileira vem oscilando, desde o movimento
revolucionário de 1922, entre dois pólos: irreverência x
moderação, rebeldia contra a tradição x aceitação das
fontes tradicionais. Este esquema não é crítico, mas
descritivo, isto é, nas duas tendências você pode encontrar
bons e maus poetas. Irreverentes e moderados, rebeldes e
tradicionalistas – todos podem ser igualmente modernos.
Agora posso responder à sua pergunta: acho que minha poesia
se situa a igual distância de uma e outra tendência. Não é
suficientemente conservadora para ser considerada
tradicionalista, nem suficientemente ousada para ser tida como
rebelde.
RI
- Até que ponto os poetas portugueses entraram na sua formação
estética? Até que ponto os brasileiros?
CFM
- Quem me abriu o caminho para a poesia moderna foi Mário de
Andrade, que li de um fôlego, aos 12, 13 anos, e continuo a
ler, vida afora. Logo depois, encontrei em Fernando Pessoa uma
dicção poética com a qual me identifiquei plenamente, a
ponto de julgar que nunca me libertaria de sua influência.
(Acho que vou conseguindo, aos poucos.) Ambos, Mário e
Pessoa, causaram forte impacto, que não se altera, ao longo
dos anos: continuo lendo esses dois poetas, com o mesmo
entusiasmo e comoção. Já Drummond e João Cabral, por
exemplo, poetas com os quais também tive contato no final da
adolescência, já os leio mais com respeito e admiração do
que propriamente com entusiasmo. Estes me desafiam, aqueles me
estimulam a escrever. O único poeta que representa, para mim,
ao mesmo tempo estímulo e desafio é Camões. Meus hábitos
de leitura se constituíram, para valer, entre os 15 e os 20
anos de idade, período em que, além de me aproximar dos
brasileiros e portugueses mencionados, aprendi também a
apreciar alguns poetas estrangeiros, como Villon, Rimbaud,
Rilke, Eliot e outros – que não deixaram de me marcar e
influenciar, mas minha dívida maior é para com os de língua
portuguesa.
RI
- Você reconhece fases na sua evolução como poeta? Como você
ajudaria um estudioso de sua poesia a reconhecê-las?
CFM - Reconheço, sim, alguma evolução,
e acho que posso avaliá-la, sem receio de pecar pelo excesso,
seja de rigor, seja de benevolência. Cada livro meu é uma
etapa de aperfeiçoamento, em duas direções: a da linguagem,
que me esforço por tornar cada vez mais concisa, elíptica
(tenho, com João Cabral, verdadeira aversão ao derramamento
sentimentalista), e a da ampliação de interesses e preocupações
– o “eu” que se manifesta em meus versos vai aos poucos
deixando de ser entidade biográfica, para se referir à condição
humana comum. Em Carta
de marear, creio, essa mudança começa a se fazer mais nítida.
RI
- Como você consegue isolar seu trabalho poético de seu
trabalho crítico? Você sente, por acaso, a existência de
dois Carlos, mentalmente diferentes: um, crítico literário,
outro o poeta? E ainda um terceiro, o professor universitário?
CFM
- Não vejo incompatibilidade entre essas três atividades, a
poesia, a crítica e o ensino, mas não sei quantas batalhas
interiores precisei vencer, para chegar a isso. Suponho ter
encontrado nessas três esferas um modo de ser comum, que as
harmoniza e faz que cada uma se beneficie das outras. Por
exemplo, teses, ensaios, cursos, palestras – tudo o que faço
na área acadêmica, em suma – gira em torno de poesia, a
poesia alheia, bem entendido, e nisso a experiência como
poeta tem sido de grande valia. A familiaridade com os
bastidores do poema me permite realizar um trabalho flexível,
sem buscar a “exatidão” pretensiosa de certa crítica
mais recente. Já o crítico-professor, embora este risco
exista, não tem conseguido esterilizar nem formalizar o
poeta, que continua produzindo tão espontaneamente quanto
possível, mas cada vez mais consciente e exigente em relação
ao que faz. Não acredito na poesia como pura inspiração ou
como dom inato, como não acredito também em modelos e fórmulas
pre-estabelecidos. Acredito na conciliação entre impulso e
disciplina. Em mim, o crítico tem tirado proveito dos
impulsos do poeta, e este vem-se beneficiando da disciplina
daquele. A grande diferença está em que nada me obriga a
escrever versos, mas já não posso dizer o mesmo dos artigos,
ensaios etc., às vezes ditados apelas pelo compromisso
profissional. A poesia tem-me ensinado o uso da liberdade; a
crítica e o ensino, a melhor maneira de conservá-la.
RI
- O que o deixa satisfeito na sua poesia? E o que o incomoda?
CFM
- A resposta imediata é um paradoxo: o que me satisfaz em
minha poesia é também o que me incomoda. Satisfaz-me a
concisão, a economia verbal, o caráter alusivo de certos
jogos com as palavras e os ritmos – que consigo nos melhores
momentos, bem menos freqüentes do que eu gostaria;
incomoda-me o fato de que isso mesmo, quase sempre, redunda em
hermetismo, em complexidades. O leitor de meus versos deverá
ser benevolente e paciente, sempre imbuído da intenção de
decifrar sugestão por sugestão. Isso me incomoda porque
minha ambição, a ambição de todo poeta, creio, era ser
imediatamente comunicativo, compreendido sem esforço, por
toda gente. Quando releio meus poemas, vejo claro tudo o que aí
está, tanto quanto pode haver clareza nessas coisas, mas
reconheço que isso assim é para mim, mas não
necessariamente para quem lê. Por assim ser, vejo ali, também,
algo (clareza ou falta de clareza) que é meu,
intransferivelmente meu. E isso, de algum modo, me satisfaz.
RI
- Na sua poesia é acentuada a presença do espaço (mar, céu,
abismo, o próprio corpo), do tempo (principalmente a tarde),
do som (vento, ondas, fogo), mas ela é quase completamente
isenta de cor. As poucas cores que aparecem são o verde, o
preto, o vermelho... Sendo o apelo sensorial uma constante em
sua poesia, como você, crítico, explicaria essa notável ausência?
CFM
- Confesso que nunca havia observado isso e agradeço a você
por me mostrar a mim mesmo. Acho que uma coisa é o nome da
cor, palavras como branco, vermelho etc., e acho que você tem
razão, não são palavras que eu use com freqüência. Outra
coisa é o cromatismo alusivo, nas referências a coisas e
objetos, e aí, penso, há um bocado de cor. Mas você
continua tendo razão: é cor subentendida. Isso talvez aconteça
porque eu tendo a valorizar o movimento, o dinamismo; daí
minha preferência pelo auditivo, pelo tátil e pela sensação
de volume. Fixar a cor seria deter a atenção naquilo que é
ou se torna estático. Por outro lado, a cor me parece um índice
de sensorialidade ou estesia pura, e os constantes apelos
sensoriais em minha poesia vêm quase sempre mesclados de aderências
ideativas, reflexivas. Talvez por isso a ausência de cor. Mas
prometo pensar nessa questão com mais carinho.
RI
- Se você pudesse pedir um destino à sua poesia, você lhe
pediria que nos ajudasse a compreender a realidade ou a
escapar dela pela palavra poética?
CFM - Sem dúvida nenhuma, a primeira
alternativa: sou contra qualquer espécie de escapismo. O
destino de toda obra poética, penso, é revelar-nos a nós
mesmos, é pôr-nos em contato com nossa verdade íntima e com
nossa realidade. Cada um de nós está à procura dos vínculos
mais densos que possa estabelecer entre essa verdade íntima e
o mundo em volta. “Eu sou eu, mais minha circunstância”
– não é o que diz o nosso Ortega y Gasset? Acontece que,
na miudeza da vida diária, tendemos a perder de vista essa circunstância, múltipla e imponderável, de tal modo que nem
sempre aqueles vínculos são claros para nós. A palavra poética,
melhor do que tudo o mais, creio, nos ajuda a vê-los com
clareza. Esse o destino que eu almejaria para os meus versos,
mas não acredito que muita gente se revele a si mesma, ao se
deparar com eles. Por que? Porque sou um poeta menor (maiores
são aqueles mencionados nas respostas anteriores), minha
circunstância é limitada – e isto não é modéstia, nem
verdadeira nem falsa: é um juízo crítico, sereno e
objetivo, rigoroso. Mas espero que, pelo menos, meus poemas não
estimulem ninguém a escapar da realidade.
2.
Entrevista conDUZIDA POR Floriano Martins
FM
- Inicio este nosso diálogo lembrando uma lúcida afirmação
do poeta surrealista peruano César Moro: “O essencial é a
beleza da linguagem sobre a profundidade da experiência”.
Somente a poesia logra a fusão das contradições que regem a
condição humana. Verdadeiro lugar de uma revolução
permanente, a revolução do ser sobre os escombros do tempo,
como chega até você a poesia, como ela o toca?
CFM - A poesia tem sido para mim, desde sempre, um alimento
indispensável, tanto quanto as proteínas e os carboidratos
das refeições diárias. Recorro a ela normalmente,
sobretudo quando percebo estar sendo minado pelo desgaste
do cotidiano, pela rotina que leva a achar tudo igual. A
poesia, a minha própria ou a alheia, me ajuda a sacudir os
nervos e a reavivar a paixão da descoberta; me ensina e
reensina aquele modo de olhar para as coisas que transforma a
falsa e perigosa familiaridade em estranheza geradora de
energia.
FM
- “Todo poema é um exercício de exercícios”, assim você
defende a criação poética, defesa esta concentrada em três
palavras essenciais: “deliberação, impulso, desafio”.
Quanto à emoção, que lugar cabe a ela? Você compartilha a
opinião daqueles poetas que acham que escrever emocionado dá
péssimos resultados?
CFM - Acho que as emoções e os
sentimentos fortes são inimigos da poesia, embora os
moderados não tenham nada a ver com ela. A intensidade das
emoções é o estopim que deflagra o poema, mas tentar passá-la
diretamente para o papel é candidatar-se ao malogro. A
poesia nasce das emoções, sem dúvida, mas pede a intermediação
da memória, para que estas se façam mais densas, menos precárias.
Por isso a ênfase que ponho no exercício – não por amor
ao trabalho artesanal em si, nem para privilegiar o
cerebralismo, mas para que o poema se realize objetivamente
ali, no papel, e não seja apenas uma lembrança infiel da
emoção malbaratada, diluída nas malhas do cotidiano. Meus
poemas mais sinceramente comovidos, aqueles com endereço, estão
entre os piores que já escrevi; os menos maus são os
engendrados pela memória, quando a emoção já não chegava
mais à extremidade do gesto.
FM
- Estamos de acordo em que o poeta é fruto de suas leituras.
Também poderíamos acrescentar, por extensão, que é ele
quem manipula seu próprio caldeirão de influências. É
possível detectar o veio de onde brotou a sua poesia?
CFM - Mal entrado na adolescência,
recebi de Mário de Andrade e de Vinícius de Moraes, quase
ao mesmo tempo, o meu primeiro grande impulso. Por isso nutro
até hoje, pelos dois, um carinho todo especial. Digo que são
os meus poetas prediletos, do lado afetivo, embora saiba
que, do ponto de vista estritamente estético, vários
outros poetas da língua estão acima deles. Na mesma época,
ou pouco depois, li muito Bandeira, Camões lírico, Pessoa (Caeiro
e Álvaro de Campos), e o Drummond de Fazendeiro do ar & poesia até agora. Em certo momento, Rilke
foi uma incursão obrigatória para os da minha geração, no
início dos anos 60, embora me entusiasmasse menos. Só mais
tarde, ultrapassada a adolescência, vim a ler poetas de língua
inglesa e francesa: Blake, Whitman, T.S. Eliot, Baudelaire,
Rimbaud, St.-John Perse. Depois os surrealistas, sobretudo
os mitigados ou dissidentes, como René Char ou Henri Michaux.
Todos deixaram sua marca; cada um a seu modo, todos me
ajudaram a ir reavivando o entusiasmo
pela poesia; todos foram apontando caminhos que minha
imperícia se esforçava, se esforça, por perseguir. Mas
Drummond e Pessoa ocuparam sempre um posto privilegiado. Vi
neles o pólo de medida e contenção que me alertava para o
perigo da eloqüência, do derramamento. (Você vê, por aí,
os conflitos em que me meti, por força da iniciação via Mário
e Vinícius... Eu me pus a lutar contra o que mais me seduzia
e a
luta prossegue
até hoje.) Assim que esse perigo se fez plenamente
consciente, lá por meados dos anos 60, cresceu meu interesse
por João Cabral, a cujo geometrismo construtivista eu vinha
resistindo. Bem, acho que esse é o meu caldeirão, como você
diz. Não sei se sou capaz de manipulá-lo, sei que venho
tentando manter-me equidistante das várias tendências aí
representadas.
FM
- Em sua poesia podemos encontrar referências a músicos e
pintores. Música e pintura são fundamentais para você
no processo de criação poética?
CFM - O que me atrai na música,
sobretudo a instrumental, é a sugestão do continuum,
o tempo ilimitado, a promessa de libertação do jugo da
palavra. Já a pintura me atrai na direção oposta: a volúpia
da instantaneidade, o tempo retido na visualidade da
espacialização circunscrita. Ao juntar palavras sobre o
papel, ao longo das linhas seccionadas do poema, minha aspiração
é somar um pouco de cada: cosa
mentale, para os olhos e para os ouvidos.
FM
- Nesta sua recente participação em um encontro realizado no
masp (15 a 19 de
maio de 1990), você faz uma rápida referência a Umberto
Eco, ao afirmar que “o artista moderno não tem mais para
onde avançar, deve voltar atrás, revisitar a tradição,
mas com ironia”. Isso me conduz a uma antiga declaração de
Octavio Paz: “Forma é vida. A falta de forma do mundo
moderno é ausência de verdadeira vida”. Diante disso, qual
você acredita ser, em nossos dias, a missão do poeta?
CFM - Tenho certa dificuldade com a
palavra “missão”, que para mim se associa a uma idéia
ultra-romântica de poesia, com forte acento religioso.
Não vejo o poeta moderno como um condutor de multidões, um
missionário. Mas,
idiossincrasias à parte, sua pergunta pode ser entendida
assim: qual a função da poesia, hoje? Eu diria que
essencialmente a mesma de sempre: inquietar, subverter, manter
vivo o germe de insatisfação radical que o cotidiano tende a
sufocar em cada um de nós. Diria também que quanto mais
ostensivo for o desejo de subverter menos subversiva será
a poesia. A verdadeira subversão é sempre subliminar.
FM
- Você já se referiu por três vezes às misérias do
cotidiano, no entanto sua poesia tem fortes compromissos com
ele. Não é um paradoxo?
CFM - É, você tem razão. O cotidiano
é fatal para a vida e vital para a poesia. É exatamente aí,
na banalidade do cotidiano, que devemos reencontrar a
energia desperdiçada na rotina diária. Buscá-la mais além,
por via mística, metafísica ou outra, seria acomodar-se à
suposta existência de um universo paralelo, destinado a
compensar a mediocridade do cotidiano. Compensações de tipo
escapista são ainda piores que as limitações impostas
pela realidade. Por isso minha poesia enfrenta o cotidiano,
para buscar aí o tudo ou nada. Dia-a-dia rotinizado e
dia-a-dia subvertido não se contrapõem, para mim, em termos
de real repudiado x ideal
almejado. A subversão deve realizar-se aí mesmo, nas
ciladas do cotidiano, e não no reino do faz-de-conta. Para
reforçar o que disse antes, quanto mais ostensivamente o
poeta perseguir esse desiderato, mais reacionário será o
resultado. A verdadeira subversão é a que se infiltra,
subreptícia e insidiosa, nos desvãos da nossa
sensibilidade diária e não aquela que sai por aí gritando
lugares-comuns – indignação de palanque inteiramente
inútil, porque é de imediato assimilada e neutralizada
pelo establishment.
FM
- Em artigo recente, publicado no Jornal da Tarde,
de São Paulo, a propósito do seu livro Subsolo, o crítico Wilson Martins refere-se a um certo prejuízo que o
Concretismo teria trazido aos bons nomes da sua geração. Diz
ele: “São poetas que, surgindo no outono glorioso do Concretismo,
e dele independentes, viram-se rejeitados para as trevas
exteriores porque todos os holofotes da publicidade se
concentravam então nos ruidosos manifestos e manifestações
verbivocovisuais, tanto mais estridentes quanto mais
percebiam a própria desintegração”. Essa rejeição
você a sentiu alguma vez? Acaso o Concretismo teria
acrescentado algo à sua poesia?
CFM - O tópico abordado por Wilson Martins alude não só
ao esforço concretista, mas a todo o fogo cruzado que, nos
anos 60 e 70, pôs em confronto Geração de 45, Concretismo,
Praxis, Tendência, Neoconcretismo, Processo, Tropicália
etc. O ardor polêmico do combate tomou conta de toda a cena e
pôs ênfase na luta pelo poder literário, relegando a
segundo plano a própria literatura – a boa literatura
eventualmente produzida por esses ou outros grupos, ou poetas
independentes, menos combativos e até mesmo alheios ao
combate. A falácia filogenética, que insiste em entender o
panorama literário como uma sucessão linear de ismos, se
incumbiu do resto. Para muitos, não há como encaixar aí
poetas independentes como Renata Pallottini ou Hilda Hilst,
que são um pouco anteriores à minha geração; ou Lindolf
Bell, Roberto Piva, Neide Archanjo, Rubens Rodrigues Torres
Filho, meus contemporâneos, surgidos no início dos anos 60;
ou vários outros bons poetas que estrearam em seguida. O
tempo histórico aí abrangido é um tempo de ânimos
acirrados, nada propício a uma visão equânime das coisas.
Creio que Wilson Martins se refere ao esquematismo de uma
história literária que rejeita por algum tempo certos poetas,
condenando-os a uma espécie de limbo provisório. No meu
caso, nunca cheguei a me sentir rejeitado, mas não sei se
isso é vantagem ou desvantagem, já que toda rejeição é
proporcional ao incômodo e à importância implícita
daquilo que se rejeita. Quanto à segunda parte da sua
pergunta, nunca me atraiu o sectarismo com que os concretos
defenderam, naquela altura, a engenhosidade novidadeira,
como valor em si. Sempre soube que é possível chegar a resultados
equivalentes, por outros caminhos. Pretender o monopólio,
entronizando seu caminho pessoal como caminho único, é render-se
à sedução da futilidade ou da paranóia.
FM
- Se nos detivermos em um estudo acerca da obra poética
produzida pela sua geração, essa geração “extremamente
plural e diversificada”, no dizer de uma de suas vozes, Cláudio
Willer, o que você apontaria como sua contribuição fundamental
ao desenvolvimento da poesia brasileira?
CFM - A idéia de uma geração “plural e
diversificada”, como diz Cláudio Willer, creio que se
filia ao espírito não-corporativista, anárquico (anarquista
mesmo, em alguns casos) que nos uniu e de algum modo se
prolonga até hoje. Jamais vingou entre nós a hipótese de
cerrar fileiras em torno de qualquer doutrina ou plataforma
a partir da qual forçássemos a inscrição do nosso nome
na história. O Surrealismo de Sérgio Lima, o Sermão no
Viaduto de Álvaro Alves de Faria, a Catequese Poética de
Lindolf Bell, a Poesia na Praça de Neide Archanjo e Eunice
Arruda, os Postais de Pedro Lyra foram ensaios breves, logo
abandonados enquanto ação coletiva, não obstante sua
validade de momento. Quase todos nós estreamos muito cedo, em
plena adolescência, graças à generosidade de Massao Ohno e
sua “Coleção dos Novíssimos”, no início dos 60. Em
conseqüência, certo inconformismo, tão ambicioso quanto ingênuo, selou
entre nós, desde o início, a certeza de que a poesia passa
ao largo do comércio mesquinho que poderia levar à
futilidade de “inscrever nosso nome na história”. Creio
que a contribuição fundamental desse grupo, que não é bem
um grupo, reside justamente na diversidade e pluralidade de
um contingente de poetas que, ao longo de mais de trinta anos,
vem persistindo na criação incessante e na fidelidade ao
espírito de origem, na medida do possível atualizado,
sintonizado com as mudanças.
FM
- Embora não sendo um poeta surrealista, você tem dedicado
boa parte de sua vida ao Surrealismo, notadamente o localizado
em Portugal. Em recente entrevista ao
Jornal de Letras
(Lisboa, fevereiro, 1990), Mário Cesariny cita o seu nome
como autor das primeiras páginas críticas importantes
sobre Antônio Maria Lisboa, esse notável surrealista português.
Tomaria para si a afirmação de Cesariny de que “o Surrealismo
continua a ser o último enunciado verdadeiro dos problemas
centrais do nosso tempo”?
CFM - Meu primeiro contato com o
Surrealismo, no final da adolescência, foi medíocre:
resisti, recuei e atirei tudo, equivocadamente, para a vala
comum do charlatanismo e da gratuidade. Mas algo de muito insólito
e radical, ali entrevisto, me captou como um desafio, que eu
acabei por enfrentar. A reconciliação se deu aos poucos,
através da pintura de De Chirico e de Delvaux, não a de Dali
ou Magritte, e do ensaísmo filosófico de Ferdinand Alquié.
(A filosofância dos manifestos de Breton sempre me soou como
demagogia de um cartesiano incorrigível, embora
arrependido.) No fim dos anos 60 mergulhei de cabeça na
aventura surrealista, a pretexto de uma dissertação de
mestrado sobre os surrealistas portugueses, que eu
literalmente acabara de descobrir: pouca gente, em Portugal, e
ninguém, aqui ou na Europa, tinha ouvido falar de Mário
Cesariny ou Antônio Maria Lisboa. Isso finalmente me alertou
para o que julgo ser a idéia-motriz, a intenção fundamental
do Surrealismo: a busca da “verdadeira vida”, sonhada por
Rimbaud. Intenção fundamental do Surrealismo? Bem, de
todos nós, de toda a grande poesia de todos os tempos... Mas
isso me ajudou também a compreender o que me desagradara no
primeiro contato: muito cedo, o movimento surrealista derivou
para uma espécie de maneirismo piegas e previsível, em que
só a letra estereotipada fala daquela verdadeira vida; o espírito,
a substância, não. Por isso concordo, sim, com Cesariny: o
Surrealismo é a mais generosa e radical utopia literária e
artística deste século, um projeto em nome do qual vale a
pena empenhar uma existência inteira.
FM
- De uma maneira geral (as exceções são reduzidas) o objeto
da crítica literária que se pratica hoje, entre nós,
quase nunca é a obra em si e sim o autor, ou um feixe de
determinadas circunstâncias que o envolvem, o que traz como
resultante um progressivo desfoque na formação do possível
leitor. Críticos, editores e autores costumam todos desempenhar
o lamentável papel de cúmplices em um quadro patético de
glorificação de futilidades. O que você acredita seja determinante
de todo esse quadro e quais as saídas para um escritor
coerente com as delimitações de sua obra, atualmente,
neste país?
CFM - A crítica literária, em qualquer
tempo, é sempre tendenciosa, unilateral, não tem como
evitar os equívocos. Sabemos bem dos equívocos que foram
cometidos no passado, mas temos enorme dificuldade em
reconhecer os que provavelmente estamos cometendo hoje. E
acho que não pode ser de outro modo, pois a nenhum de nós é
facultada aquela consciência crítica ideal, fundada em isenção
e neutralidade; equanimidade, sabedoria plena e tolerância.
Nosso olhar crítico é fruto do nosso Zeitgeist, com suas idiossincrasias e limitações. Por isso não
somos capazes de atinar senão com o que é bom ou mau para nós, aqui e agora. (O Shakespeare que apreciamos seria provavelmente repudiado pelos românticos,
digamos.) Só estaríamos a salvo dos equívocos se abdicássemos
da nossa condição de homens do nosso tempo, para assumir o
ponto de vista de algum crítico de outro planeta, por acaso
interessado na literatura que se produz neste canto escuro
da galáxia. Não sonho com isso, nem você, estou certo. Mas
além dos equívocos involuntários, inevitáveis, existem também
os premeditados, os mal-intencionados, resultantes do tráfico
de influências, do corporativismo, de uma espécie
aviltada de crítica praticada como forma de agradar ou
agredir, de obter ou conceder favores. Mas o tempo também se
encarrega, e mais depressa ainda, de ir corrigindo tais
distorções. Penso que o escritor, por sua vez, não deve incorrer
na falácia de ignorar esse quadro, não deve menosprezar a
importância da crítica, nem supervalorizá-la. Deve,
sim, esforçar-se por distinguir a verdadeira da aviltada.
Em caso de dúvida, deve estar pronto a guiar-se pela própria
consciência.
FM
- Pelas respostas anteriores, e pelos caminhos percorridos em
sua obra poética e ensaística, parece que o seu interesse
extra-fronteiras se restringe às culturas de língua inglesa
e francesa. E a língua espanhola? E a literatura latino-americana?
Como você se situa nesse contexto?
CFM - Minha geração, formada um pouco
antes e um pouco depois de 1964, é ou foi decididamente francófila.
E americanófoba. Na universidade, nos tempos da heróica
Maria Antônia, da Filosofia da USP, pude adquirir uma visão
mais ou menos sistemática da cultura e da literatura
francesas. Mais tarde, tendo-me acontecido viver alguns anos
nos Estados Unidos, pus de lado o preconceito e procurei
realizar o mesmo, por conta própria, em relação à rica
literatura de língua inglesa. Quanto ao espanhol, apesar da
facilidade representada pelo idioma, mais próximo do nosso
(e pelas afinidades sociais e históricas, no caso da América
Latina), nunca tive a oportunidade de me dedicar com igual
empenho às literaturas desse idioma. Isto é apenas uma das
muitas deficiências da minha formação. Ter um bom amigo
no México, outro na Argentina; um no Peru, outro no Chile; ou
na Colômbia, no Panamá, na Espanha (todos escritores, com
quem me correspondo e/ou me avisto de vez em quando) não tem
sido suficiente para suprir a falha. Meu conhecimento nessa área,
apesar de eu ser, há anos, leitor assíduo de Octavio Paz,
Borges, Cortázar, Salinas, Vallejo, Carpentier e alguns
outros, é lamentavelmente granular, assistemático. Mas não
é preciso mais do que isso para saber que um dos nossos
caminhos aponta na direção de um intercâmbio mais intenso
com a literatura latino-americana. Esse esforço conjunto
talvez nos leve a superar o antigo e comum complexo de inferioridade,
que historicamente nos tem induzido a buscar uma improvável
parceria com o primeiro mundo, para esquecer a indesejável
mas verdadeira e natural parceria com os vizinhos.
FM
- A consciência do já escrito é algo manifesto em todo
poeta. Romper a circularidade, uma utopia cara à poesia de
todos os tempos. Busca de uma síntese das contradições que
regem nossas vidas, a poesia transfigura tudo em que toca. O
poema, sempre incompleto, é pura transmutação. Insisto:
tudo já foi escrito?
CFM - No que me diz respeito, enquanto voraz consumidor de
poesia (isso me traz de volta à sua primeira pergunta: como a
poesia me toca?), poderia responder afirmativamente. Se nada
mais for escrito, passarei o resto da vida, dure quanto
durar, alimentando-me da grande poesia do nosso tempo. Mas
desconfio que não poderá ser assim para sempre. Ainda que
alguma transitoriedade permaneça, nada é permanente em
absoluto, tudo é provisório, mesmo que esse provisório às
vezes se arraste por séculos. Por isso, respondo também
pela negativa: não, nem tudo foi escrito. É preciso insistir
em continuar escrevendo, para que nossa sensibilidade esteja
atenta às mudanças e para que daí brote, quem sabe, senão
o novo alimento, pelo menos a fome até então ignorada.
3.
MORTE E VIDA DA POESIA
Carlos Felipe Moisés concede entrevista a Álvaro Alves de
Faria
À clássica
pergunta “a poesia morreu?”, Carlos Felipe Moisés costuma
dizer que a poesia morreu muitas vezes e sempre renasceu. Não
é à toa que já imaginou escrever um livro com o título Poesia:
crônica de uma morte anunciada. Desistiu. Como diz, seria
insistir no óbvio:
– A morte da
poesia vem sendo periodicamente propalada, e desmentida (diz
Carlos Felipe), pelo menos desde a segunda metade do século
XIX. É que, desde então, a poesia tem estado permanentemente
em crise de transformação e evolução, determinada pela falência
dos padrões clássicos, ou de qualquer padrão fixo e
definitivo. A poesia passou a ser, a partir de Baudelaire,
digamos, o reduto privilegiado da mudança. Daí a
“crise”, interpretada por muitos como indício de
esgotamento ou morte. Nada disso. Com a poesia acontece um
pouco do que Marshall Berman (Tudo
o que é sólido desmancha no ar) detectou na sociedade
burguesa: “Afirmar que está caindo aos pedaços é dizer
que está viva e em boa forma”.
Mas, afinal,
para que serve a poesia num mundo mutilado, sem valores
definidos, e mergulhado numa violência incompatível com a
vida? Carlos Felipe Moisés assegura que a poesia serve para
que nos tornemos melhores do que somos, enquanto indivíduos,
não enquanto poetas. Serve para nos ajudar a extrair, desta
breve passagem pela superfície do planeta, o melhor proveito
espiritual possível.
– É uma visão
romântica? – pergunta o poeta Carlos Felipe Moisés. E ele
mesmo responde: – Sem dúvida. Mas é preciso entender que o
romantismo não é apenas uma “escola” literária
ultrapassada, circunscrita a determinado momento histórico,
mas um estado de espírito que continua em curso, incorporando
em sucessivas metamorfoses o que veio depois, atualizando-se.
Cabe dizer, também, que servir, propriamente, a poesia não
serve para nada: é a mais perfeita das inutilidades em que o homo
ludens que somos pode empenhar-se. Mas por isso mesmo a
poesia tem sido, vem sendo uma forma de resistência ao
utilitarismo mesquinho.
Carlos Felipe
não acredita que a poesia deva ser levada a sério. Acha que
a poesia deve ser encarada como divertissement,
jogo lúdico, despremeditado, com as palavras e com a essência
da vida. O poeta se aborrece com a possibilidade de a poesia
ser levada a sério, como algo que exigisse uma atitude mais
formal, diferente daquela assumida no trivial da existência:
– Acho que a
poesia deve fazer parte do nosso dia-a-dia – afirma Carlos
Felipe. – A sério ou não, isso vai depender do
temperamento de cada um. Para o meu, não. Para mim, poesia é
sinônimo de divertimento. A sério. Mas sei que quando alguém
indaga se a poesia deve ser levada a sério, a pergunta tem
outro endereço: aquela mentalidade rigidamente utilitarista,
para a qual poesia é bobagem, ocupação de desocupados e
inadaptados. Ainda assim, minha resposta continua sendo a
mesma: a poesia não deve ser levada a sério.
Em que o poeta
difere de outros poetas?
– Sem pensar
muito, eu diria que não difere. Pensando um pouco,
acrescentaria o óbvio: ninguém confunde um livro de poemas
com um romance. E isso tem a ver com a preocupação
classificatória de críticos e professores. É a questão dos
gêneros, que sem dúvida diferem entre si, mas, neste século,
muitas vezes manifestam-se sob formas híbridas,
indiferenciadas. Há muitos textos modernos, dentre os mais
marcantes e significativos, diante dos quais hesitamos.
Poesia? Prosa? Prosa poética? E por aí vai. Então, insisto
na resposta irrefletida: o poeta não se distingue de outros
escritores.
Carlos Felipe
Moisés observa que a poesia brasileira, hoje, felizmente, está
em crise: “a poesia está morta mas juro que não fui eu”,
como declarou José Paulo Paes. O poeta esclarece que essa
crise significa pujança, dinamismo e, sobretudo, diversidade:
– Nossos
grandes poetas se foram: Bandeira, Cecília, Drummond, Vinícius,
Murilo... João Cabral silenciou, há tempos. Mas suas vozes
continuam vivas e atuantes, muito mais do que a de muitos
jovens recém-guindados ao panteão lírico da Pátria. A
poesia brasileira hoje (um “hoje” que se arrasta há três
ou quatro décadas) se caracteriza pela variedade dos
ingredientes e caminhos em que aposta – da prolixidade à
concisão, da ousadia experimentalista ao tradicionalismo
conservador. E todos esses caminhos são válidos e legítimos,
para desespero desta ou daquela minoria que insiste em nos
impingir seu sectarismo.
E a crítica
literária?
– Os arautos
da morte da poesia diriam que nossa crítica, há décadas,
vai bem melhor. Nos últimos 30 anos, a imprensa perdeu o
charme dos grandes suplementos literários (noto, nos anos
recentes, um tímido esboço no sentido de ressuscitá-los), o
charme dos rodapés semanais. Perdeu-se com isso o critério
subentendido da “autoridade” tacitamente atribuída a uns
e outros. No mesmo período, cresceu o prestígio da chamada
crítica universitária, modalidade que levou a
“autoridade” a migrar das mãos do amador para as do
especialista e a se divorciar do grande público. A crítica
literária carece hoje de autoridade referendada. Eu diria
que, entre o referendum
da mídia e o prestígio da academia, nossa crítica procura
cumprir com sua finalidade primordial, qual seja assinalar a
maturidade da literatura em que se insere. Uma literatura
amadurecida não se limita a existir, nem se restringe a
alguns autores “de nível internacional”, como se costuma
dizer, mas deve mostrar-se também capaz de discorrer sobre a
consciência de sua própria existência. Acredito que aí
resida a função maior da crítica literária. E acredito que
a nossa caminha nessa direção.
Carlos Felipe
Moisés pertence à Geração 60 de poetas de São Paulo. Mas
ele não acredita na existência da geração. Ele observa
que, se afirmar que acredita, dirão que é suspeito, pois se
trata da sua geração; se negá-la, dirão que é mais
suspeito ainda:
– Em nome da
geração à qual pertenço (pertencemos, não é mesmo, Álvaro?),
peço permissão para afirmar que a Geração 60 não existe,
nem deixa de existir. Em primeiro lugar, quem somos, meu caro
e fraterno Álvaro Alves de Faria? Resposta: Roberto Piva, Cláudio
Willer, Lindolf Bell, Eduardo Alves da Costa, Celso Luís
Paulini, Eunice Arruda, Rubens Rodrigues Torres Filho, Sérgio
Lima, Neide Archanjo, Carlos Soulié do Amaral, você, eu próprio,
e vários outros poetas que se reuniram, adolescentes, no início
dos anos 60, em torno da editora Massao Ohno, em São Paulo. Nós
erguemos nosso ideário ou nossa plataforma de combate?
Produzimos nosso ismo? Transmitimos a alguém, como diria Brás
Cubas, o legado da nossa miséria? Fomos e continuamos até
hoje a geração da dispersão. E é isso, exatamente, que
afirma a nossa existência e a nossa inexistência. Por outro
lado, estamos falando de alguma coisa muito local, muito
regional, quando poderíamos (deveríamos?) buscar um âmbito
mais abrangente. Pedro Lyra – que é da mesma geração, em
termos cronológicos, mas só viemos a nos cruzar muitos anos
depois – nos ajuda a ver a coisa de outro prisma, com sua
recolha ecumênica Sincretismo: a poesia da Geração 60. Naqueles idos de 60, no mesmo
instante em que nos agrupávamos, circunstancialmente, em São
Paulo, dezenas de outros jovens poetas faziam mais ou menos o
mesmo, em vários pontos do país. Somos todos da mesma Geração,
com G maiúsculo? Sugiro confiar essa pergunta à argúcia dos
historiadores, que um dia saberão colocar esses e outros
nomes em seu devido lugar.
4. REGINA GULLA ENTREVISTA CARLOS FELIPE
MOISÉS
RG
- Carlos Felipe, conte para a gente o que é a poesia na sua
vida.
CFM
- A poesia faz parte integrante da vida que eu tenho vivido.
Para mim, nada a substitui e eu não saberia prescindir dela.
Graças à poesia, as coisas (todas as coisas, sobretudo as
que eu tenderia a julgar familiares) continuam a me
surpreender, a me espantar. Desse espanto, aliás, às vezes
brota um poema. Sem a poesia, a vida seria só rotina, inércia,
gestos mecanizados.
RG
- Um dos seus livros afirma, a partir do título, que
“poesia não é difícil”. Pode comentar?
CFM
- Esse não é um livro de poesia nem se dirige ao
leitor-poeta, quer dizer, não é em relação ao poeta, ao
criador de poesia, que eu afirmo que poesia não é difícil.
O livro se destina ao leitor-leitor, ou ao leitor-intérprete,
e a este, sim, eu digo que ler e entender poesia não é difícil.
É só pôr de lado o mito segundo o qual poesia é uma espécie
de mistério, verdade revelada, à qual só os iluminados
teriam acesso. O livro pretende mostrar que poesia é só um
modo peculiar de ver e sentir as coisas, expresso em palavras.
Para chegar a ela, é só prestar atenção, dedicar-lhe algum
esforço concentrado (sensibilidade e raciocínio unidos), um
pouco de disciplina e, sobretudo, jamais perder de vista o
prazer que isso pode proporcionar.
RG
- Qual sua opinião sobre uma oficina literária que não
pertença à universidade?
CFM
- Vargas Llosa disse uma vez, numa palestra, que a
universidade é o túmulo da literatura. Se ele estiver certo
(e eu acho que em boa parte está), devemos inferir que o
lugar adequado para uma oficina literária, isto é,
literatura ao vivo, é fora da universidade. Na universidade,
ou na escola, em geral, a oficina tende a se confundir com
aulas, curso, ensino, subordinando-se a técnicas pedagógicas,
currículo, avaliação, programação, tarefas mais ou menos
mecanizadas – burocratização, em suma. Isso é mau,
evidentemente, é a negação da oficina, do modo como eu a
entendo. Por isso, acho que as oficinas literárias, entre nós,
estão bem aí onde estão: fora da universidade. Mas (Vargas
Llosa, claro, exagerou um pouco), a universidade, desde que
abra mão dos seus formatos estereotipados, pode perfeitamente
acolher oficinas literárias, com grande proveito para ambos
os lados, o do ensino e o da criação.
RG
- Você acredita que a evolução da língua tem relação com
o exercício da linguagem poética?
CFM
- Acho que nem é caso de acreditar, é só constatar. A língua
evolui, incessantemente, e o poeta que não esteja atento a
isso corre o risco de congelar sua linguagem em algum registro
irreal, fora do espaço e do tempo. A razão é simples. A
linguagem do poeta utiliza os mesmos recursos da língua
comum, são vasos comunicantes. Às vezes o poeta inventa
algumas palavras, o que é bom, desde que não seja exercício
gratuito; mas parece que não pode inventar tudo, pois criaria
outra língua e ficaria sem leitores. Por outro lado, o poeta
não deve subordinar-se inteiramente às normas e esquemas da
língua. Mallarmé disse-o de modo exemplar: a função do
poeta é dar um sentido mais puro às palavras da tribo.
RG
- Você acha que a poesia sobrevive a esses tempos de
racionalização tão exacerbada?
CFM
- Sobrevive, sim; nenhum problema. Essa pergunta, aliás, me
remete a outra, proposta por Heidegger (que todos líamos
muito nos idos de 60): por que poeta em tempo de penúria? O
filósofo, otimista radical, afirma que é justamente em
tempos assim que o poeta é estimulado a intervir, a criar com
vigor redobrado. É o que nos salvaria da “penúria”. É
curioso como Fernando Pessoa, que não teve conhecimento de
Heidegger, pensa da mesma forma, não em relação aos poetas
em geral, mas em relação ao seu próprio caso. Em 1913,
Pessoa defendeu a tese do supra-Camões:
exatamente porque Portugal estava em franca decadência,
política, econômica e moral, isso faria surgir, em breve, o
seu poeta máximo, superior a Camões. Acho que a poesia não
tem nada a temer da racionalização, ainda que exacerbada.
Razão e poesia caminham de mãos dadas, desde sempre. Mas se
por trás da racionalização detectarmos a entronização do
utilitarismo, do consumismo e da leviandade, aí sim estaremos
diante de penúria ou decadência. Então será preciso
recorrer ao pensamento otimista de visionários como um
Pessoa: ao contrário do que possa parecer, a racionalização
exacerbada, essa racionalização deturpada, que pode ser sinônimo
de decadência, será só um motivo a mais para que a poesia
sobreviva. E nos ajude a sobreviver.
Prismal
/ Revista literaria:
Universidade de Maryland, EUA, no 2, Primavera
1978, pp. 35-42.
Suplemento Literário, Minas
Gerais, Belo Horizonte, 8/6/1991, ano xxiv,
no 1166, pp. 8-10.
Opção
Cultural, Goiânia, 28 de junho de 1997, ano III, no
144.
http://www.gato-de-mascara.com.br (1999)
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