Circe Vidigal
Rumo a Leningrado
A cunhada era uma
pessoa fina, educada, freqüentava a alta sociedade e vestia-se como
uma dama. Era pacífica, calma e nunca ninguém a ouvira gritar ou
perder as estribeiras. Católica fervorosa, comungava todos os
domingos e duas vezes por semana trabalhava na igreja para obras
sociais, costurando para os pobres e dando aulas aos favelados da
paróquia. Sua fé era verdadeira e forte, diferente do que se
costumava ver em pessoas ditas religiosas. Em sua mesa de cabeceira
havia apenas um abajur, um terço e o Evangelho. Rezava ao se deitar
e antes mesmo de sair da cama. Ao levantar parecia vinda de um salão
de beleza, mesmo sem nenhuma maquiagem. Era naturalmente elegante
nos modos, nas roupas e no falar. Casara-se muito cedo, aos
dezesseis anos, com seu primeiro amor. Antes disso desejava ir para
o convento, por vocação religiosa. O marido, belo oficial da
cavalaria, tocava piano muito bem , gostava de dançar e freqüentar a
vida noturna. Era de família rica, mas simples e adorável, muito
querido por todos. A jovem esposa o acompanhava e aprendeu a gostar
desta vida diferente e movimentada. Acompanhava-o alegremente, sem,
contudo, esquecer suas obrigações religiosas. Era recatada por
natureza. Soube-se posteriormente que o casamento levara oito dias
para se consumar. Fora preciso chamar os pais dela, para que dessem
uma solução ao problema.
Era grande amiga da
viúva de seu irmão mais querido, carinhosa com os sobrinhos, sempre
atenciosa, mansa e sorridente. Ambas tiveram o mesmo número de
filhos – as parideiras da família – o que mais as aproximava. Seus
temperamentos tão opostos não eram obstáculo à firme amizade que as
unia, mesmo não se vendo com freqüência, pois moravam longe uma da
outra. Eram opostos gêmeos.
A outra, alegre,
generosa, fraterna e barulhenta, a casa sempre cheia de agregados,
era, ao contrário, estabanada, falava alto, contava anedotas
cabeludas - aprendidas com os vários irmãos homens que tinha - e que
ruborizavam o pobre marido, tão apaixonado quanto envergonhado
desses modos Às vezes ele não se continha e a cutucava por baixo da
mesa, para que moderasse a performance, não falasse coisas
impróprias ou risse muito alto. Ele ainda não se dera conta que ela
só agia assim em família, ou no à vontade e na camaradagem dos
amigos. Apesar do sacrifício, sabia se comportar como uma lady,
quando se fazia necessário. Nessas horas de reprimenda, ela murchava
como flor sem água no vaso, entristecia e se calava imediatamente.
Nesse ponto ele era reservado como a irmã; sempre dizia que seu
ideal era ser um homem de terno cinza em meio a uma multidão
cinzenta. Detestava destacar-se, chamar atenção. Paradoxalmente, sua
missa de sétimo dia lotou a Igreja da Candelária – a maior igreja do
Rio de Janeiro - ficando ainda uma verdadeira multidão de fora.
Aquela enorme massa vestida de branco – de almirantes a marinheiros
- chorava seu jovem companheiro, morto tragicamente em serviço,
deixando uma viúva de trinta anos, como ele, com seis filhos, o mais
velho com seis anos ( ela pariu gêmeos duas vezes, talvez pela
intensidade do amor que os unia )
Foram duas horas
recebendo pêsames, como se vivesse um sonho, aturdida, fora do ar.
Nenhuma lágrima lhe caiu nesse dia – ela, tão chorona - e ainda
consolava aqueles que a abraçavam aos prantos. Era como se estivesse
assistindo a um filme ou a uma peça de teatro. Aquilo não era a
realidade, não podia ser. Por sua cabeça passavam cenas de amor e
paixão que vivera tão intensamente. Havia – ou houvera? – entre os
dois, a despeito das diferenças de comportamento, uma união muito
forte, não só da alma como do corpo. Desejavam-se intensamente e
amavam-se a qualquer hora, em qualquer situação.
Ela estava sempre
grávida e ele achava sua barriga linda. Trepavam quase até o neném
nascer: na cama, no sofá da sala ou no chão, por ocasião de uma
mudança, quando a cama ainda não estava montada. Deviam até cutucar
as cabecinhas dos bebês, já encaixadas na pélvis. Deveriam ter
nascido perturbados das idéias, mas qual nada, cada um mais lindo e
perfeito. Enquanto isso a cunhada ia também fabricando os seus, só
que por cumprimento do dever matrimonial e certamente por um buraco
no lençol, tão acanhada continuava para essas coisas.
Foi muito mais tarde,
os filhos já crescidos, uma viúva, a outra abandonada pelo marido,
que surgiu essa história de viagem. O Comandante do Loyde Carajá era
casado com uma amiga de biriba da cunhada. Seu navio seguiria até
Leningrado , passando por vários portos da Europa e o camarote do
armador era alugado por seiscentos dólares para a viagem toda – três
meses , com tudo incluído. Sozinha a cunhada não se animava. Cadê
coragem de se largar assim pelo mundo, no meio só de homens? Quem
sabe a maluca da viúva de seu irmão não topava? Tropa de choque que
era, com ela estaria garantida. Mas a outra não tinha dinheiro, uma
pena, onde arranjar? Espicha daqui, empresta dali, surgiram os
abençoados dólares e lá se foram as duas, muitíssimo bem acomodadas
- que camarote de armador é pra ninguém botar defeito: saleta, com
sofá, estante e escrivaninha, um belo quarto com duas camas, dois
armários e um grande espelho sobre uma cômoda; completando, um
banheiro com tudo o que se tinha direito.
A aventura começou no
porto de Santos, onde as duas passageiras do Lorde Carajás eram
obrigadas a passar diariamente pela zona do baixo meretrício para ir
à cidade, nos dias em que o navio esperou para carregar. Só depois
foram saber das barbaridades que ali aconteciam com incautos como
elas. Devem ter sido protegidas pelos anjos das mulheres
desinformadas. Em Ilhéus, o navio ficou parado uma semana. O cacau
já estava nos porões, mas com chuva não se carregava sisal,
altamente combustível ao contato com a água. E já por aí começaram a
aprender coisas. E a esperar. Em Ilhéus, a visita à casa da comadre
para aproveitar o tempo da parada mais parece uma história
surrealista. Duas mulheres absolutamente urbanas, pegando um ônibus
para Jequié, devendo descer antes em Barra do Rocha, onde pegariam
um táxi – ou qualquer outra condução – que as levaria, finalmente, à
fazenda da comadre, em Ipiaú. O compadrio surgira há mais de vinte
anos, quando o tímido oficial de marinha levara a esposa em visita a
um colega de farda amasiado com uma jovem baiana. Naquele tempo,
amancebar-se, mesmo com uma riquíssima herdeira do cacau, era motivo
de rejeição dentro e fora da comunidade naval.Só ele, com sua
timidez incrustada num enorme coração sem preconceitos, aceitara o
convite para visitá-los. Quando a jovem baiana engravidou, a união
já estertorava e quando o bebê nasceu, convidaram o casal que os
apoiara para batizar a menina. A última vez que vira sua afilhada
fora em seu aniversário de cinco anos, num luxuoso apartamento de
Ipanema. Depois que lhe morrera o avô, deixando a mãe e mais
dezessete tios, herdeiros da maior extensão fundiária cacaueira da
Bahia, as comadres e a menina viram-se apenas uma vez, em Salvador.
A afilhada estava então com vinte e poucos anos, já mãe solteira de
três filhos, um de cada pai, criados pela avó, ainda uma bela mulher
e que dividia seu tempo entre a fazenda que lhe coubera, uma bela
casa em Itapoan, a Europa e o Rio de Janeiro.
Naquela época os ônibus
do interior do nordeste mais pareciam uma Arca de Noé. Carregavam de
tudo. De aves àquelas duas mulheres estranhas e destoantes. Seguindo
pela BR, foi entrando em todas as pequenas vilas por onde passava; o
motorista gritava o nome do povoado, saía do asfalto e se adentrava
ao lugarejo. Ansiosas, esperavam o anúncio de seu destino. Ao
ouvirem: - Barra do Rocha! – estranhamente o ônibus parara no
acostamento e algumas pessoas começaram a descer. Timidamente uma
delas perguntou: - Não vai entrar na cidade? – Não senhora, aqui não
entro, é só uma paradinha. Com suas lustrosas e elegantes maletas de
mão desceram e, mesmo a valente tropa de choque sentiu um friozinho
na barriga. Entardecendo e elas ali, perdidas naquela imensidão
exuberante de todos os tons de verde que margeavam a BR. Foram
salvas por dois rapazolas que, gentilmente, se ofereceram para lhes
carregar as malas. Pra onde vão? Aí lhes explicaram e pediram para
encaminhá-las a um ponto de táxis. – Aqui tem disso não, senhora.
Pra onde tão querendo ir? - Nosso destino é Ipiaú, na fazenda de
Dona Tereza Barreto. - Ah! , mas isso não é difícil, o administrador
dela mora aqui mesmo. Levamos as senhoras até lá, ta bom assim? Tava
ótimo! Benza-os Deus! Ao chegar à casa do administrador, souberam
que Tereza estava lá pois era dia de acerto de contas.
Escarrapachada numa cadeira, em frente à casa, estava a comadre.
Cinqüenta e poucos anos e não mudara nada. Talvez até mais bonita.
-Oi, disse a comadre
visitante. Lembra de mim? A outra olhou-a de alto a baixo e, com
cara de poucos amigos respondeu secamente: - Não, não lembro. – Pois
é uma pena, pois vim de mala e cuia pra ficar uns dias em sua casa!
Será possível? Só tens uma filha e vais esquecer logo a cara da
madrinha? Ao que ela deu um pulo da cadeira e abraçou-se, comovida,
à amiga ! – Céus, como você me encontrou aqui? Explicou-lhe que por
artes da Telemar havia descoberto o telefone da afilhada em Salvador
e esta lhe explicara o modo de chegar lá. Um jovem moreno e forte
encostava-se na picape estacionada em frente a casa. Parecia o
motorista, mas viajamos para a fazendo, ela dirigindo, nós duas ao
lado e ele atrás, na caçamba. Dezesseis quilômetros por uma
estradinha de terra e chegamos. A casa, de construção moderna,
sofisticada, mas adequada àquele meio rural, estava coberta por
floridos buganviles de diversas cores e tinha ao redor um avarandado
de quatro metros de largura cheio de cadeiras, vasos de flores,
plantas exóticas e galinhas soltas que cagavam no chão como se
estivessem no galinheiro. Duas empregadas, seguiam atrás, limpando a
sujeira que faziam. Das aves ali só se aproveitavam os ovos, pois
morriam de velhice ou sumiam por roubo. Quando queria comer frango,
a comadre mandava comprar na cidade, já morto. Sua criação era
intocável! Ao fundo da varanda uma tosca mesa de comer com quatro
cadeiras; nas laterais, enorme jardim com espaçosos viveiros com as
portas abertas; dentro, estranhas e lindas aves desconhecidas pelas
visitantes . Acho que não saiam dali pois sabiam que poderiam
fazê-lo a qualquer hora. Eram livres como aves da floresta. Se ali
estavam deveria ser pela farta refeição diária e o amor e os
cuidados de quem as fornecia. A comadre adorava bichos. Quaisquer
bichos: aves, jacarés, bois, tudo ! Sabedores dessa sua
particularidade, as pessoas viviam batendo à sua porta, oferecendo
toda espécie de animais: um casal de jabutis, vacas velhas que não
davam mais cria nem leite, papagaios... Ela não podia ter um
aparelho de televisão pois os lindos papagaios azuis subiam pelo
telhado e adoravam comer a fiação da antena. Não havia o que os
impedisse e ela optou pela liberdade das aves em detrimento da tv.
Muito verde, muita flor e um enorme açude cheio de jacarés que
atendiam pelo nome, ao serem chamados para comer. Dos diferentes
cantos daquelas águas mansas começavam a surgir, ficando à espera da
carne, sob o deck construído junto a casa de hóspedes, onde estas
dormiram por dois dias. A comadre os alimentava conversando com
eles. O jovem que viera com elas de Barra do Rocha era seu
companheiro e o conhecera numa feira, por ocasião da compra de uma
tropa de burros. Pertencia a um grupo de ciganos e negociava em nome
deles. Tinha idade para ser seu filho, mas apaixonou-se
perdidamente, abandonou seu bando e foi viver com ela na casa da
fazenda. Estavam juntos há vários anos, quando o conhecemos. Seus
familiares vieram buscá-lo várias vezes e até mesmo à força chegaram
a levá-lo. Mas ele fugia e voltava sempre. Soube-se depois que
ficara muito doente e fora internado, depois que se separaram. Hoje
são grandes amigos e ele continua a seu lado. É seu atual
administrador, seu braço direito, seu homem de confiança, que inicia
seus netos nos negócios da família, para sucederem a avó, quando
esta morrer, pois a mãe é como uma criança que nada sabe da vida.
São os filhos que se preocupam com ela e cuidam-na mesmo com muito
carinho. Aos quarenta e poucos anos conversa como uma adolescente e
sonha com o príncipe encantado que ainda deverá chegar. Pobre moça !
Tão linda e sem horizonte, sem uma perspectiva de futuro só seu.
Estudou na Europa, fala vários idiomas e não sabe o que fazer para
ganhar a vida, sem depender da mãe.
Com essa mania de
comprar todos os bichos que lhe ofereciam à porta, Tereza foi
obrigada a adquirir uma terrinha para colocar o gado que comprava.
Qual não foi sua surpresa quando uma das velhas vacas ficou prenha e
deu uma linda cria. Hoje a comadre também é fazendeira de gado, o
que lhe acresce razoável renda. A fazenda fica às margens do rio
Gongogi ( j ? ) onde levou as duas visitantes a passeio. Comeram
pitu assado na brasa, pescado na hora com uma boa talagada de
cachaça. A cunhada ficou só no pitu, pois achava que a cachaça lhe
faria mal, acostumada que era a wisky e vinhos importados. Deu
também uma desculpa esfarrapada para não se despir totalmente e se
atirar ao rio, o que as comadres fizeram com grande prazer e
estardalhaço. Eita banho bom, aquele! Inesquecível ! Ao voltarem, a
picape derrapou no lamaçal de uma subida de morro e caiu de lado
numa valeta. Foram necessários vários homens para tirá-la dali, mas
como subir de novo aquela rampa sem derrapar? Ninguém se atrevia a
tentar, nem os homens. Foi quando a madrinha carioca resolveu
arriscar. Era boa de volante e, quem sabe, não conseguiria? Só ela
no carro, distanciou-se bastante com uma marcha-a-ré, engatou
primeira, segunda e, na terceira já estava subindo, rezando, a
caminhonete rabeando, desgovernada na lama, e ela morrendo de medo
de sua audácia, o coração aos pulos, mas conseguiu chegar ao topo.
Foi uma gritaria geral: - Eita carioca porreta! E lá vinha a comadre
subindo a pé, com os sapatos na mão, acompanhada da cunhada que, sem
perder a elegância, patinhava suas lindas sandálias brancas, de
salto, naquele barro infernal .
Quando estava na
fazenda, Tereza dormia às 6h da tarde e acordava às 4h da madrugada.
Supervisionava todo o trabalho pessoalmente, com firmeza e
competência. Cuidava de seus colonos que tinham assistência médica
na cidade e exigia as crianças na escola e os jardins de suas
casinhas limpos e floridos. Seus empregados trabalhavam satisfeitos
e lhe eram extremamente dedicados. Nos meses que passava na Europa
ou no Rio de Janeiro era outra pessoa. Esbanjava dinheiro, consumia
o que havia de mais caro e sofisticado e trocava o dia pela noite. O
companheiro ficava lá, em Ipiaú à sua espera. Quando a saudade
apertava, ela voltava para a fazenda.
As viajantes chegaram
ao navio com impressões e sentimentos desencontrados. A cunhada,
escabreada, pois não estava acostumada a tais aventuras . Adorava
fazendas, mas com “chauffage” no inverno e ar condicionado no
verão. A outra adorara tudo. De comum, só a aparência de
cataporentas. Os corpos pintadinhos de vermelho por igual, mordidos
por um mosquitinho minúsculo, que chamam de pólvora.
Comiam na Praça D ´Armas – nome mais pernóstico ! – junto com o
Comandante. Passadio de primeiríssima. Do caviar ao vinho francês.
Os homens do mar se tratam muito bem, seja na Marinha de Guerra,
seja na Marinha Mercante. E elas, na onda , por seiscentos
dólares.Se era quase de graça por um lado, não havia o que pagasse
aturar aquele homem. Sabedor da religiosidade da cunhada, às
refeições começava falando mal da Igreja e terminava falando mal dos
padres. Quanto à outra, que estudava para um mestrado, tirou uma
mirada de seus livros e tome criticar a Universidade, a Sociologia,
a Antropologia e as mulheres que se dedicavam a isso. A cunhada
sorria amarelo, não é bem assim comandante, defendia-se como podia.
A outra foi ficando invocada, aborrecida mesmo. Mas seu atrevimento
não chegava ao ponto de pular na água e voltar nadando. Discutia,
rebatia, argumentava, começou a gritar nas discussões e não percebia
como ele se deliciava com tudo aquilo. Só mais tarde foi saber o
porquê daquele modo de ser do comandante. E aí, teve muita pena dele
e arrependeu-se de cada desaforo que lhe dissera.
Ele se dizia surpreso com as duas mulheres. Já havia transportado
várias passageiras e não dava quinze dias para estarem brigando.
Qual a razão de tão bom entendimento? Elas não brigavam nunca,
estavam sempre de bom humor e de bem uma com a outra. A cunhada
apenas se ruborizava com os excessos da outra enquanto essa jamais
fizera um gracejo ou comentário às suas rezas noturnas e matinais,
ou seu modo tímido e delicado frente à grosseria do comandante. De
vez em quando metia-se na conversa, de capa e espada em riste, na
defesa da cunhada e do seu direito à sua religião. Ela, naquela
época, era absolutamente atéia, existencialista, tiete de Jean Paul
Sartre.
O atrito final entre a mestranda e o comandante foi brabo. Em meio à
discussão ele gritou: - A senhora é uma comunista! Ao que ela
respondeu prontamente:
- Comunista é a mãe e eu não como mais nesta mesa ! Levantou-se e
saiu furibunda, desceu as escadas pisando duro e dirigiu-se ao
refeitório dos oficiais, lotado àquela hora de almoço. Na porta,
ficou olhando para todos que, espantados, pararam de comer até que o
imediato lhe perguntou: - Que bons ventos a trazem aqui? - Briguei
com aquele comandante de vocês. Posso comer aqui?
Foi uma enorme algazarra, gritos, parabéns, vivas à quem tinha
desafiado a fera. E ela conheceu os dias mais felizes daquela época,
de tão paparicada por todos, alegres com aquela presença feminina,
mas dentro de um clima do maior respeito. Ali ela se sentia como se
estivesse em casa, só ela de mulher, no meio de seus irmãos. Estava
acostumada a viver entre homens. Enquanto isso o comandante
maquinava um jeito de obrigá-la a voltar para sua mesa, torcer-lhe o
pepino. Ia ser dureza conseguir, mas ele conseguiu, usando um
inteligente artifício.
Ao chegarem a Salvador, vários dias atrasados, a carga que o Loyde
Carajá deveria pegar neste porto já seguira em outro navio, por
conta das dificuldades em embarcar o sisal em Ilhéus. Com isso
perdeu-se um mês de viagem e a passagem por Lisboa e Londres, para
onde iria esta carga. Uma pena, mas, que fazer? Sabiam que isto
poderia acontecer.
De Salvador cruzaram direto para Dunquerque. Quinze dias de mar!
Certa noite, pelo meio deste percurso, avistaram ao longe as luzes
das Ilhas Canárias. Único sinal de vida naquela imensidão entre os
dois continentes. Os dias passavam calmos, uma comendo com o
comandante a outra com os oficiais, no andar de baixo, onde era
muito mais divertido. O cozinheiro, sabedor que ela gostaria de
fazer uma dieta veio lhe perguntar o que desejava. – Que frutas o
senhor tem no estoque do barco? – Bem, o que temos muito e de boa
qualidade são maças. – Então está tudo resolvido; 4 maçãs assadas
pela manhã e um café preto. No almoço, seis maças do mesmo jeito – e
nem me fale em sobremesa! Só um café e, à noite, o senhor me traga
tudo o que eu não comi durante o dia, isto é, a janta completa e o
almoço, ta bom assim? Ele ficou olhando espantado, não estava
entendendo nada. – Não vai lhe fazer mal? - Faz não senhor. Tenho um
estômago de avestruz. E assim não vou engordar. O imediato,
barrigudão, já queria saber que dieta era aquela tão maravilhosa,
mas não adiantava. Seu caso era bebida e ele estava mais inchado do
que gordo.
Durante o dia as duas liam muito. A cunhada havia levado belos
romances, de autores famosos, precavera-se com boa leitura. A outra
ia destrinchando tudo o que precisava para o seu mestrado, fichando
cada livro, tudo isso sentada nas taboas do convés, pois o navio não
tinha sequer uma cadeira nesse lugar. Ele existia em função das
cargas e estas não precisam de nenhum conforto extra. Certo dia o
telegrafista viu-a sentada no chão, toda torta, tentando fazer um
fichamento num caderno. – Isso é um absurdo, vai lhe fazer mal, vou
lhe trazer uma coisa. E em poucos minutos voltou com uma almofadinha
de espuma. – Nossa, que luxo, assim vai ficar bem melhor! Onde o
senhor arranjou? É da minha cadeira, mas não me faz falta alguma.
Não houve jeito de levá-la de volta. Ela precisava mais do que ele.
Esses cuidados lhe tocavam o coração. Ali, sentia-se amada e
protegida. Mesmo o comandante, com toda sua grosseria, ficava a
adivinhar-lhe os desejos. Às vezes seu taifeiro a procurava e lhe
dizia: - Há uma garrafa de vodka russa no freezer para a senhora.
Use à vontade. Foi o comandante que mandou. Alguém lhe disse que a
senhora gosta muito. De outra vez foi o doce de leite. Sabedor que
ela adorava doce de leite, lá vem o taifeiro avisar. – Há três latas
de doce de leite condensado para a senhora na geladeira. Quando
acabar é só me avisar. Que coisa estranha; só trocávamos saudações
de rotina e ele a me cercar com esses mimos. Queria me amolecer.
Certo dia recebemos um convite formal, trazido pelo mesmo taifeiro:
- O comandante avisa que às dezessete horas estará oferecendo um
coquetel aos Oficias de Máquinas e as senhoras estão convidadas. É
na Praça d ´Armas . Xiiiiiiiiiiiiii lá vai ela ter que voltar àquele
lugar jurado de morte. A cunhada implorou-lhe: - Pelo amor de Deus,
vamos, seria uma desfeita ! E seria mesmo. Não ao comandante, mas
aos Oficiais das Máquinas - sem as quais o navio não andaria.
Impossível ignorá-los. E lá se foram as duas. A reunião esteve
agradável, muitas iguarias, bebidas finas, conversa animada, mas a
outra havia percebido a mesa de jantar posta, lá no fundo. Contou os
lugares sem que ninguém percebesse. Dava certinho: Comandante, Chefe
de Máquinas, Primeiro Piloto e elas duas. Fora pega na armadilha.
Não berrou, que era boa cabrita. Daí por diante, havia um coquetel
por semana. Ele só faltou homenagear o pessoal da cozinha. Era a
forma de obrigá-la a sentar-se à sua mesa.
Com o tempo a raiva passou e ela voltou à antiga rotina, a pedido da
cunhada. E ele passou a se comportar, sem provocações. Andava
tristonho e meio cabisbaixo. O primeiro piloto, jovem educado e
muito bonito estava sempre com o comandante, por força de suas
funções. Além disso, possuía em seu camarote uma estação de
rádio-amador, dele, particular e se comunicava com o Brasil
diariamente. Por ele mandaram e receberam recados de suas famílias.
Às vezes ele se fechava com o comandante e ficavam muito tempo
conversando. O comandante estava sempre lhe pedindo notícias do
Brasil. Diariamente. Havia ali algum mistério. E acabaram sabendo.
Ele aceitara aquele comando – que poderia recusar sem maiores
problemas,- deixando na responsabilidade da esposa o terrível fardo
de acompanhar sua única filha mulher, com 38 anos, morrendo de um
câncer. Seu filho não o perdoava e soubemos que às vezes vinham
recados terríveis. Elas ficaram, no primeiro momento, muito chocadas
com sua atitude. Por que não ficara junto à família naquele momento
horrível? Mas sua covardia era tão grande quanto o amor que tinha
por essa filha. Não queria ver-lhe o sofrimento, preferiu ir para
bem longe, onde talvez não sentisse tanto o que se passava. Fazia de
conta que nada estava acontecendo. Desse tipo de dor, sua desafeta
passageira entendia muito. Fazer de conta que era um sonho.Desse dia
em diante ela foi só carinho e compreensão com ele. Poderia lhe
xingar a mãe que ela não se importaria. Procurava distraí -lo,
contava-lhe casos que não iriam gerar polêmicas, enfim, como mãe que
também era, pensava na outra que lá ficara, segurando o rojão, mas
tentava minimizar o sofrimento que estava ali a seu lado. Ela e a
cunhada se uniram para isso. Nesse particular, as duas eram muito
semelhantes. Ela, que detestava cartas, inventou um torneio de
biriba que foi muito bem recebido e ajudou bastante a passar o tempo
das travessias.
Existe sempre uma festa – mesmo na Marinha Mercante – ao se cruzar a
linha do Equador e o Loyde Carajá não fugiu à regra. As passageiras
foram avisadas e convidadas. Montou-se no convés uma engenhoca que
puxava a água do mar para jorrar de um tubo que funcionava como
ducha. Todos os que ainda não houvessem cruzado esse espaço,
deveriam ser batizados. No caso, as duas passageiras. Para aqueles
homens solitários, afeitos as durezas da vida no mar, tudo era
motivo para festejo, assim, quando elas chegaram na popa, havia
mesinhas com cadeiras, muita cerveja e batidas de limão. Uma bateria
de escola de samba animava o local. A marujada, comportadíssima, já
tomava suas cervejas e batidas. Numa mesa, o Comandante, o Imediato,
o Primeiro Piloto e os lugares para as duas senhoras – depois do
batismo. A cunhada surgiu em sua elegante simplicidade, adequada à
ocasião, enquanto a outra, de calça leg, camisão e sandálias
havaianas – também de acordo com o evento, mas à seu modo moleque de
vestir: Mulher de marujo, sabia o que a esperava e não iria estragar
um sapato ou sandália de couro, bem como uma roupinha melhor. Aquela
era só sacudir e por para secar e nem precisava passar à ferro.
Seu Carrapicho era o homem mais velho do navio em idade e em tempo
de serviço à bordo . Moreno, cara larga de maranhense, cabelos
compridos e encaracolados, tinha um sorriso aberto, franco e
acolhedor . Era ele quem comandava o samba, de Porta-Bandeira, com
estandarte e tudo e, à chegada das convidadas, estendeu seu braço,
chamando para a parceria, aquela menos séria e mais desinibida. E
ela, que adorava um samba, não se fez de rogada. Uma festa
inesperada e maravilhosa. Céu azul, tempo bom, música brasileira,
cerveja, canapés, uma bateria de escola de samba improvisada e muita
alegria.. As duas já haviam passado pela cerimônia do batismo,
debaixo da ducha. A cunhada passou de raspão sob a água, para não se
molhar toda enquanto a outra, deliciou-se com a força da água,
encharcando-a da cabeça aos pés. Era naturalmente imune à gripes e
se deixava secar ao sol e ao ritmo do samba, pelo braço de Seu
Carrapicho. Num volteio mais ousado escorregou na água do convés com
suas sandálias havaianas e esborrachou-se no chão, de cara. Uma das
lentes de seus óculos escuros desprendeu-se, quebrou e entrou fundo
no supercílio esquerdo e acabou-se a festa. Parecia sangue de uma
carnificina. Saía aos borbotões, inundando-lhe as roupas e o convés.
O estrago fora grande: um profundo corte nesta região que, por
natureza já sangra muito. Carregaram-na com cuidado e carinho para a
enfermaria de bordo, limpíssima e, aparentemente muito bem equipada.
Só faltava mesmo o profissional competente para o atendimento. O
comandante segurava-lhe uma das mãos e a cunhada, a outra. O
“enfermeiro” de bordo estava a ponto de desmaiar. Pálido, trêmulo,
fez a limpeza do local e, com uma voz sumida lhe disse: - Senhora,
só fiz um cursinho de primeiros socorros, sem nenhuma experiência
prática. Vou ter que costurá-la, perdoe-me qualquer erro. Quando
chegar ao Rio, na volta, procure um cirurgião plástico. Apesar da
dor e do sangue ela estava calma e lhe respondeu: - Não se preocupe.
Considero uma benção tê-lo aqui. Faça o que puder e não fique
nervoso, preocupado com estética. Só quero parar de sangrar como um
porco. O resto, se ficar feio, boto um bandaid cor de pele por cima
e estamos resolvidos. Vamos, não tenha medo, pode começar. Doeu
muito! Mesmo após a anestesia – que já começou maltratando –
continuava doendo. Cada ponto era como uma facada e ela apertava a
mão do comandante e da cunhada com mais força. Mas tudo tem um fim e
levaram-na, de maca, para o camarote. Passou o dia recebendo
visitas; até o último marujo fez questão de lhe dizer o quanto
sentia o acontecido. O cozinheiro avisou-a que passava a mandar na
cozinha. O que quisesse era só pedir. O comandante, aflitíssimo, à
toda hora vinha saber como se sentia. Ela estava bem, só muito
cansada, talvez da tensão e do nervoso. Seu rosto parecia o de um
boxeador em final de luta. Inchou muito e apareceram várias manchas
roxas perto dos olhos. O local doía bastante, mas já no dia seguinte
estava bem melhor e quis levantar-se para comer suas maçãs e tomar
seu café. - Nem pense nisso, senhora, disse o taifeiro do
comandante. Trago-lhe tudo aqui. São ordens. A senhora ainda não
pode se levantar! Tanto paparico, tanto carinho... Valia a pena um
pequeno acidente como este para ver tantas manifestações de
solidariedade e ternura. Um dos auxiliares de cozinha perguntou se
poderia lhe fazer um pouco de companhia, contar-lhe algumas
histórias interessantes de suas vidas de homens do mar. O comandante
não deixou.Iria importunar a passageira e ela precisava de repouso.
Em poucos dias estava de pé, pronta pra outra. Ah! Se soubesse como
“ a outra” estava próxima!
Após os quinze dias de travessia chegaram a Dunquerque, cidade
famosa pelos acontecimentos da II Guerra mundial. Verdadeira epopéia
vivida pelos soldados aliados na desesperada tentativa de atravessar
o Canal da Mancha, fugindo dos alemães que os acossavam pela
retaguarda. Todas as embarcações francesas disponíveis foram usadas
e os ingleses, ao tomarem conhecimento do fato seguiram para ajudar
no resgate até com pequenos iates à vela. Arrepiante e comovente só
de lembrar. Conhecer Dunquerque foi apenas rememorar essa epopéia,
pois a cidade em si era feia e sem nenhum atrativo. Arquitetura
descaracterizada, sem algo que se pudesse apontar como precioso. Ali
passamos apenas dois dias, seguindo para Antuérpia – ou Anvers, como
os belgas gostam de chamá-la. Os portos nunca são oceânicos.
Normalmente sobe-se a foz de um rio até atingir o porto.Aqui,
entramos pela foz do Reno. Para atingir Hamburgo, subimos o Rio
Elba. Para Leningrado, aporta-se no Golfo da Finlândia após
atravessar o canal de Kiel e sair no Mar Báltico.Em Antuérpia havia
muita coisa digna de ser vista e comentada. A maior surpresa foi
perceber que 90% da população falava flamengo e não francês ou
alemão. Ao visitarem a Casa de Rubens, o grande pintor, não havia
uma só informação que não fosse em flamengo. A casa, um verdadeiro
museu, com belos jardins internos e mais de um pavimento, deixou as
passageiras frustradas. Até os livros turísticos, as fitas de ouvido
que deveriam orientar e explicar eram incompreensíveis. Fato
inexplicável ! Tudo em flamengo. Ficaram frustradas e irritadas com
tal desrespeito aos estrangeiros que não dominassem aquela língua
tão pouco conhecida. Nada em inglês ou francês ou mesmo em alemão.
Mas nas ruas, se pedissem alguma informação em francês eram
prontamente atendidas. Antuérpia, naquela época, tinha um metrô de
miniatura. Pequenos vagões no subsolo faziam apenas uma viagem
circular, mas cumpriam a função de deixar o viajante bem no centro
da cidade. Enormes e bem cuidados calçadões de pedestres, com
mesinhas e cadeiras, onde as pessoas ficavam curtindo as manhãs e
tardes ensolaradas, comendo ou bebendo alguma coisa. Um correr de
lojas só de rendas recordou-lhes o nordeste brasileiro com suas
rendas Renascensa, levadas para o Brasil pelos holandeses. Pensaram
em ir a Bruxelas distante apenas 2 horas de trem, mas a cunhada não
apoiou, pois temia que algum contratempo as fizesse perder o navio.
Sempre é bom alguém ter mais juízo.
O próximo destino seria Hamburgo, Alemanha, por onde chegaram
subindo o rio Elba e que lhes reservava enorme surpresa. Ao navegar
por certo trecho, ouviram, num som muito alto, o Hino Nacional
Brasileiro. O primeiro choque foi estarrecedor, dada a surpresa e o
inusitado do fato. Ao verem, acompanhando o som da música, o
hasteamento da Bandeira Brasileira, a comoção tomou-as. Mudas, de
mãos dadas, imóveis, as lágrimas escorrendo pelo rosto, pareciam
dois soldados de saias em momento solene. Para quem está longe da
sua terra natal e isto não é um hábito corriqueiro como para os
marujos, foi verdadeiramente emocionante. O Comandante explicou
depois que era um departamento do porto que, a cada navio que
chegava, automaticamente hasteava a bandeira de seu país, tocando o
respectivo hino. A explicação tirou muito da poesia daquele momento
único, mas mesmo assim jamais o esqueceriam. A longínqua terra natal
presente em seus corações através do som de um auto-falante e um
pedaço de pano verde-amarelo
A chegada ao porto de Hamburgo pelo rio Elba foi um belo espetáculo.
A margem direita do rio, recoberta por altas e frondosas árvores,
atrás das quais se entreviam, aqui e ali um lindo castelo ou belos e
enormes palacetes. Não chegaram a saber se eram habitados, ou
museus; pareceu-lhes, com certeza, uma área nobre da cidade e que
não tiveram tempo de visitar. Ficaram apenas dois dias, muito pouco
para os seus projetos turísticos. Na realidade, a estadia só rendeu
frutos negativos para uma delas. A cunhada preferiu ficar à bordo
para ver os fornecedores que levavam seus mostruários á tripulação:
do creme Nívea, ao Whisky, ao perfume francês e aos catálogos onde
se pode encomendar tudo. Dessa forma sua companheira desembarcou
sozinha e ficou perambulando pelo centro, apreciando os artistas que
pintavam as calçadas de forma original, como se o evento estivesse
ocorrendo naquele espaço; músicos sozinhos ou em grupos bem
distribuídos para que os sons pudessem ser bem captados sem
interferências; boa música e muito bem tocada. Este aspecto da
cidade é muito simpático e atraente e ela ficaria por ali talvez o
dia todo se não precisasse comprar um talco. Entrou numa enorme loja
de departamentos e, com calma, ficou olhando as diferentes coisas
que ali se vendiam. Fascinou-a o setor de relógios. De mimosas e
delicadas jóias para os pulsos femininos, à relógios masculinos de
classe, para mergulho até velhos carrilhões e cucos. Não conseguia
desgrudar seus olhos, tal seu encantamento, quando percebeu que
estava sendo observada com cuidado. Todo aquele encanto se quebrou
na suposição de que fosse uma ladra. Afastou-se imediatamente
procurando o setor de perfumarias. Queria sair daquela loja o mais
rápido possível. Nas prateleiras procurou exaustivamente um talco
perfumado, mas, inexplicavelmente, todas as marcas eram sem nenhum
odor. Rodou, rodou, sem querer procurar uma vendedora, já que não
falava alemão. Vencida pelo cansaço daquela inútil busca, dirigiu-se
a uma jovem senhora no balcão e lhe perguntou em inglês se tinham
talco perfumado. – No speak english respondeu-lhe duramente; fez-lhe
a mesma pergunta em francês. – No speak, somente. Já com muita raiva
ante tanta grosseria - pois a vendedora fora incapaz de fazer um
gesto para ajudar - falou-lhe, então, em voz bem alta, em inglês, em
tom autoritário. – Pois então vá chamar algum superior que me
entenda. Ela compreendeu muito bem, pois deu meia volta e sumiu,
aparecendo logo a seguir outra senhora que lhe perguntou em correto
inglês o que desejava: - apenas um talco perfumado. Sem uma palavra
a mulher dirigiu-se a uma das prateleiras e voltou com três volumes
nas mãos que lhe entregou dizendo: - Aqui está seu talco - e
acrescentando os outros dois pacotes: - e aqui estão dois refis
para a senhora na precisar voltar aqui tão cedo. Ela pensou e contou
até dez se deveria jogar-lhe tudo na cara e sair, mas desistiu,
pagou e se foi. Poderia causar problemas ao comandante do navio e
isso não queria. Mas até hoje se pergunta o que teria acontecido.
Sua aparência era normal, estava bem vestida e, com sua pele muito
clara, seus cabelos louros e seus olhos verdes, não parecia sequer
uma estrangeira naquele país. Inexplicável. Talvez a tivessem tomado
por americana e sabe-se que os alemães não morrem de amores por
eles. Talvez. Mas ficou para sempre uma interrogação.
Realmente, Hamburgo estava fadado a deixar tristes e más
recordações. À noite, um grupo de oficiais havia combinado sair para
mostrar às duas passageiras a vida noturna da cidade. Como o
comandante não quis ir, a cunhada achou que não ficava bem sair com
os jovens oficiais, alegou cansaço e resolveu não sair.
A outra, cheia de curiosidade, ouvira falar muito daquela cidade, de
sua vida noturna, das casas de Chopp onde as pessoas bebiam e
cantavam alegremente sobre as mesas. Sua própria mãe lhe relatara,
encantada, tal experiência de alegria num ambiente familiar e
saudável. Ela sabia também do espetáculo de Saint Pauli, das
mulheres nas vitrines na zona do meretrício, mas não imaginou que
fosse passar por ali. Saíram de bordo às dez horas da noite, pegaram
um táxi até certo ponto, de onde os oficiais resolveram ir
caminhando, para lhe mostrar os arredores. Gentis e educados,
conversavam alegremente, cuidando da passageira como de uma jóia
rara que lhes fora entregue em confiança. O Comandante fizera-lhes
um sermão sobre sua segurança antes de saírem. Ao chegarem ao lugar
que ela desejava conhecer, estava vazio, com apenas duas ou três
mesas ocupadas, pois o grande movimento era bem mais tarde.
Resolveram fazer hora num night-club chamado Brazil Tropical, onde
um conjunto de negros americanos e brasileiros tocava uma boa
música, tanto brasileira como americana. Sentaram-se num canto e
começaram a beber cerveja em canecos gigantescos, apreciando o
ambiente. Lindas mulheres negras brasileiras, vestidas com casacos
de peles, circulavam pelo local. Percebia-se que era um lugar de
paquera, mas não havia nada a reclamar, estavam bem instalados,
apreciando a música, conversando, fazendo hora, apenas. Ela estava
muito bem protegida, sentada entre dois oficiais. Um terceiro
desgarrou-se do grupo, em busca de companhia.
Lá pela 1h da madrugada resolveram sair para a choperia. Um deles
sugeriu um atalho por dentro de uma galeria, só para que ela não
tivesse que caminhar muito. Assim que entrou, intuitivamente, sentiu
algo estranho no local mas nem teve tempo de comentar. Sentiu um
forte impacto na fronte esquerda e um líquido se derramou pelos seus
cabelos. Completamente tonta, os dois jovens tiveram que
sustentá-la, senão teria caído ao chão. No momento em que entraram
na galeria ela pensara ter percebido duas jovens de bikini ou quem
sabe, calça e soutien. Imóveis, poderiam ser cartazes ou qualquer
coisa assim, mas do lado de fora das lojas. Os rapazes quando viram,
puxaram-na para dar meia volta, sabiam do que se tratava, mas não
deu tempo! Imaginem uma mulher, ladeada por dois homens, adentrar-se
no local onde as profissionais aguardavam seus clientes. No mínimo
devem ter considerado uma afronta essa invasão desastrada. Os dois
rapazes não sabiam o que fazer. Tiraram-na dali, amparada. Na maior
angústia queriam saber como ela se sentia, como ela estava. Na
realidade, só pensavam no Comandante e na responsabilidade que
assumiram de cuidar bem da passageira. Quando se viram à salvo e ela
pode falar, lhes disse: - Não aconteceu nada, ninguém viu nada e eu
não sei de nada. É só vocês ficarem de bico calado que o comandante
não vai saber. Enquanto isso, o galo que lhe crescia na fronte já
era visto sob o cabelo. Tinham lhe jogado uma lata de cerveja,
aberta, mas cheia, daí seu peso, seu impacto. Felizmente ela tinha a
cabeça dura e não lhe fez sequer um corte no couro cabeludo, só
aquele enorme galo. A noite havia acabado ali. Adeus choperia!
Proibiu-lhes terminantemente de tocar no assunto com qualquer pessoa
a bordo. Levou mais de uma semana só podendo se deitar de um lado,
tão grande o galo e dolorida sua cabeça.
Os rapazes, talvez por medo, comentaram com o Imediato, pois poderia
defendê-los caso o Comandante viesse a saber de algo. Não poderiam
ter feito pior. Em menos de 24h todo o navio já sabia do acontecido,
pois o Segundo era uma língua de trapo. Adorava uma fofoca, um
mexerico ! No dia seguinte o Comandante bateu na porta do camarote e
pediu para falar com a passageira. Já sabia de tudo, nos menores
detalhes. Ela defendeu os rapazes, disse-lhe que fora sua a idéia de
cortar caminho e fez com que ele prometesse que os dois não seriam
sequer repreendidos. A culpa fora toda dela, eles tinham sido dois
gentlemem em todos os sentidos. No fim o comandante arrematou: - A
senhora é mesmo uma mulher de sorte. Poderia ter morrido. Naquele
lugar se esfaqueia, se estupra e a polícia não toma conhecimento.
Quem ali se aventura está sujeito à lei da selva. Ela tinha sorte
mesmo. Mal as manchas roxas do tombo no convés começavam a
desaparecer lhe acontece essa. De positivo ficou uma emocionante
aventura para ser relatada quando voltasse ao Brasil. De
gratificante, apenas aquele momento ímpar na entrada do porto,
quando puderam perceber o sentido forte da palavra Pátria, vocábulo
hoje em dia tão vilipendiado e desmerecido.
A tripulação do Loyde Carajá, além do Comandante e seu Imediato - ou
“ Segundo”, como dizem em jargão de Marinha -se compunha do Primeiro
Piloto Ricardo, do Segundo Piloto Zé Maria, do Chefe de Máquinas e
sua equipe de oficiais e marinheiros, além do pessoal dos inúmeros
setores necessários ao bom funcionamento do navio: cozinheiros,
copeiros, taifeiros, limpeza de convés, etc...
O primeiro Piloto Marcos era um jovem muito alto, de pele clara,
cabelos negros e mãos delicadas; era um belo rapaz. Por ter em seu
camarote o meio de comunicação com o Brasil, onde o Comandante
deixara aquela filha agonizante, acabou surgindo uma forte ligação
de amizade entre ambos. Ricardo conhecia muito de perto seu velho
chefe e os detalhes de seu sofrimento e de todo o drama que a
família vivia, inclusive as brigas e desaforos do filho, que não se
conformava com a ausência do pai numa terrível hora como aquela. Era
um jovem tímido e doce. Certa noite, quando se dirigia para a ponte
de comando onde deveria ficar por algumas horas, convidou a
passageira viúva do oficial de marinha para subir com ele, pois
desejava lhe mostrar alguns instrumentos de navegação sobre os quais
ela lhe perguntara. Levaram para cima algumas cervejas e lá ficaram
por várias horas. Mostrou-lhe e explicou-lhe em detalhes as funções
dos diferentes aparelhos no painel de controle e como isso governava
o navio. Tudo era muito interessante e ela de fato ficou fascinada.
Esse contato estabeleceu entre ambos um laço de amizade, sem nenhuma
nuance de paquera dele ou de sedução da parte dela; essas visitas
viraram quase uma rotina. Era a hora do aquietamento dos corações e
almas, que, desarmados, se abriam uns para os outros. Ela lembrava
sempre o companheiro, suas viagens, suas aventuras na Marinha, seus
filhos que ficaram no Brasil e um que já alçara seu primeiro vôo,
indo conhecer a vida no Canadá, onde pretendia se estabelecer e
continuar seus estudos de Engenharia Florestal. Isso a fizera sofrer
muito e quase perdeu esta viagem apenas para ficar três dias com
este filho. Mas ele lhe impediu de desistir do passeio. Voltaria em
breve. Ainda não era desta vez que se iria definitivamente – como
realmente foi, para junto da irmã que morava nos EUA há vários anos
- e lá ficaram os dois até hoje. Ricardo era um rapaz calado, mas
nesses momentos, falava muito de si, em confiança, para aquela
mulher que poderia ser sua mãe mas com quem se sentia à vontade como
uma irmã ou grande amiga. Vinha de uma família de classe média baixa
e tinha alguns conceitos que às vezes chocavam sua nova amiga,
socióloga, antropóloga, acostumada a um pensar sem preconceitos de
classe, raça ou religião. Ele era muito branquinho, como se nunca
tivesse pego sol na vida, apesar de ser filho de um negro. Certo
dia, ao falar sobre casamento, entre outras coisas lhe disse que
gostaria muito de se casar com uma mulher branquíssima, para “
melhorar a raça “, o que a deixou boquiaberta. Se, por um lado, ela
era quase uma libertária em sua ideologia, também tinha um coração
generoso, vivera e sofrera muito, o suficiente para entender que ele
não tinha culpa pela sua formação e os conceitos daí advindos. Suas
origens e formação não lhe proporcionaram as mesmas oportunidades
que as dela, seja na área intelectual, seja no convívio familiar.
Talvez, se tivesse sido uma criança pobre, carente de tudo o que é
básico na vida, não fosse assim tão alienado, tão reacionário em seu
modo de pensar.Mas era um bom rapaz, correto, decente, trabalhador,
delicado e sempre prestativo com todos. Ela tentou lhe explicar a
desimportância de tal “ branqueamento”, a grandeza da mestiçagem de
nosso povo,falou-lhe em Gilberto Freire, em Darcy Ribeiro, seu muito
amado mestre, mas de nada adiantou. Ele não conseguia compreender.
Era como tentar enfiar o significado de uma tabela periódica numa
criança de dois anos. Havia um bloqueio intenso do preconceito que
lhe dizia que branco é bom e preto ou mistura com preto é ruim.
Sempre desejara ter um filho e nesse dia lhe abriu completamente o
coração e lhe contou de sua grande emoção, quando uma mulher com
quem estava lhe disse que desejava um filho seu. Ela era muito
loura, tinha pele alva e os olhos azuis. Mas era uma prostituta. Seu
coração sentiu uma tal felicidade que chegou a doer. Ela imaginou
que lhe doeu mais a impossibilidade daquele filho branquíssimo, pois
também, por seu código ético, jamais se casaria com uma prostituta.
Nunca amara ninguém que pudesse deixar aflorar seu desejo de um
filho, pois sempre tinha um pé atrás, observando as origens de sua
parceira, para que não lhe saísse um filho mestiço. Pobre menino.
Gostaria de poder encontra-lo novamente, com uma penca de lindos
filhos de uma mulher negra ou mestiça e ver o amor em seu olhar a
despeito da cor da pele de sua amada.
Eram assim suas noites, na cabine de comando, até bem tarde,
embalados pelo barulho do mar, boa música e algumas cervejinhas.
Certo dia o Comandante apareceu, a cara amarrada, falou algumas
palavras duras e proibiu à passageira de subir novamente. As regras
do navio não permitiam que o Primeiro Piloto se distraísse na hora
de sua tarefa mais importante. Não acreditou no argumento, pois
Ricardo, tão ciente e zeloso de seu trabalho, jamais infringiria o
regulamento dessa forma, ostensivamente. Mais parecia ciúmes do
Comandante, seja de seu Primeiro Piloto – companheiro inseparável -
seja de sua passageira preferida: sua interlocutora, seu saco de
pancada, onde descarregava a angústia de seu coração, para depois
ficar tentando adivinhar seus mínimos desejos. Ela não discutiu com
ele. Desceu imediatamente e sem qualquer vestígio de irritação
propôs-lhe uma partida de biriba naquele horário, além da sessão que
já faziam à tarde com a cunhada. Ele ficou feliz. Na verdade ela só
gostava de estudar pela manhã. À noite sempre se deitava cedo e
ficava lendo até adormecer. Uma sessão de biriba àquela hora
acalmaria os ânimos do Comandante e preencheria o horário após o
jantar. Iria sentir saudades daqueles momentos íntimos, raros,
quando duas pessoas falam sem reservas de seus sentimentos. Uma
tremenda catarsis para ambos. Nessa noite sonhou com Rubens Carlos,
diluído no éter do infinito mas inteiro gravado em seu coração de
menina. Menino dos olhos verdes, amor grande e sincero de seus nove
anos. Ao acordar, pela manhã, contou o sonho para a cunhada e,
lembrando-se dele e de seu outro menino que também se fora tão cedo,
chorou. Brotou-lhe no peito uma emoção, carregada de tristeza e
lágrimas; lembranças de coisas enterradas mas tão vivas que, ao
reaparecerem em um sonho, trouxeram em si uma pesada carga de
sentimentos outrora reprimidos pela covardia e pelo medo de tudo o
que é forte, bonito e perigoso. Ela não conseguiu estudar aquela
manhã. Havia feito vários anos de análise e sentia que aquele sonho
tinha a ver com a noite passada, com Ricardo e com a proibição do
Comandante. Rubens Carlos era exatamente o oposto de Ricardo:
moreno, dourado de sol em seus doze anos, atrevido, exuberante, com
seu narizinho perfeito e ligeiramente arrebitado e aquele lindo par
de olhos verdes. Ela era uma menina desenxabida, com duas longas
tranças louras e, naquela época, a timidez em pessoa. Impossível
imaginar a mulher desinibida, falante e exuberante em que se
transformaria. Quando via Rubens Carlos na rua, mudava de calçada e
com isso talvez tenha atiçado sua curiosidade ou seu faro de
conquistador. Tinha fama de ser um menino terrível, que gostava de
carregar as garotas para lugares desertos e fazer“ coisas” – ela não
sabia bem o quê, mas sabia que eram coisas proibidas. Diziam que ele
havia construído uma cabana no pé do umbu que havia na pracinha, no
centro da Vila Militar onde moravam. Seus pais eram militares e
muito amigos. Quanto mais ela lhe fugia, mais ele a perseguia, mas
não ousava abordá-la. Aos domingos, na matiné, sentava-se sempre uma
fileira atrás dela e de seus dois irmãos e ficava sussurrando coisas
ao ouvido. Certa vez ela entendeu que ele queria lhe falar. Ora, mas
por que não falava? O que estava esperando, pensava? Então já sabia
como ele lhe era importante, como gostaria de lhe falar, de estar
junto dele, mas jamais tomaria essa iniciativa. O que poderia querer
com ela um menino lindo como aquele, cheio das garotas lhe correndo
atrás? Ela, tão apagadinha, tão desimportante!
Mas certo dia no colégio jesuíta em que ele e os irmãos dela
estudavam, passou pelo menorzinho e lhe disse qualquer coisa. O
pequenino tinha apenas seis anos, mas virou-se rapidamente e
mandou-lhe a mãozinha espalmada no meio da cara. Na confusão que se
formou veio o padre que pôs o pequeno de castigo e mandou chamar-lhe
o pai. - Seu menino, tão comportado, o que fizera? O padre também
não sabia e então lhe perguntaram: - Me xingou, respondeu muito
sério! - Mas como? O que disse? - Me chamou de cunhado! Ele não
sabia o significado da palavra, mas vinda daquele menino só poderia
ser xingamento. O fato, contado em casa com humor, fez seu coração
bater mais forte. Então era isso. Ele realmente queria namorá-la.
Casualmente, poucos dias depois chegou uma ordem de transferência
para seu pai e quando já iam saindo da cidade de carro para pegar um
trem noutro município ela ainda chorava copiosamente, como se alguém
tivesse morrido. Os pais a consolavam, sem desconfiarem de nada : -
Minha querida, não chore assim, para onde vamos também vais ter um
bom colégio e novas e boas amiguinhas. Na última curva da estrada,
antes de sair da cidade, ela espichou o pescoço na janela do carro
para ver se conseguiria pelo menos se lembrar do lugar onde moraram
por dois anos. Nunca mais! Nunca mais Rubens Carlos do outro lado da
calçada! Nunca mais! Foi a primeira forte sensação de perda em sua
vida. E viriam tantas, depois disso! Mais tarde, recém-casada,
amando intensamente seu marido, pode avaliar como Rubens Carlos
ficara gravado em seu coração. Certo dia, seu pai, tristonho, lhe
disse: - Sabe aquele menino que chamou seu irmão de cunhado no
colégio, criando a maior confusão? Acabo de saber que morreu
assassinado com várias facadas. Foi tocaiado pelo administrador da
fazenda do tio, pois andava se engraçando com a mulher dele. Ela
sequer fez um comentário. Fingiu que não havia ouvido e subiu
correndo as escadas e trancou-se no quarto para chorar. Seu primeiro
amor. Até hoje, já bastante idosa, não pode se lembrar sem chorar.
Mas o que Ricardo tinha a ver com aquilo? Talvez o carinho que os
unia e o fim daqueles momentos tão prazerosos fosse a causa. Mas
aquilo não era amor, era uma simples e boa amizade, que se
aprofundava a cada dia e que foi cortada abruptamente.
Nunca mais Rubem Carlos. Nunca mais seu jovem marido; Nunca mais seu
amado pai; nunca mais seu primeiro filho e, agora, nunca mais
Ricardo e ela, na Ponte de Comando, abrindo seus corações um para o
outro. Morte. Morte. Morte. Tudo, sempre, se resume e acaba em
morte.Quando menina sempre gostara de escrever e lia tudo o que lhe caía
nas mãos. Aprendera a fazer redação no Curso de Admissão por um
método hoje considerado ultrapassado, mas que ensinava o aluno a ver
uma cena qualquer, determinando, em primeiro lugar, seu significado,
e o que aquela cena representava. Logo após descreviam-se os
personagens que a compunham
( homem, mulher, adulto , criança, gordo, magro, alto, baixo, louro, moreno, animais...) um a um e em seus menores detalhes, as roupas
que usavam, suas cores e todas as particularidades do vestuário.
Dizia-se o que estavam fazendo naquele lugar, pois a gravura era
sempre muito clara a esse respeito. Acrescentava-se a descrição do “
fundo “, da paisagem onde tudo acontecia. Logo após, criava-se,
livremente pela primeira vez, um possível desfecho para aquela ação,
parada num tempo indefinido. Aí funcionava a imaginação de cada um.
Quanta loucura se escrevia. Havia sobre o quadro-negro - como
folhinha daquelas que marcam os dias, meses e as fases da lua – um
enorme bloco com diferentes gravuras que cresciam em dificuldades de
observação dia após dia. Essa metodologia que à primeira vista
parecia uma armadura de ferro bloqueando a criatividade e a fantasia
das crianças, servia, entretanto, para ensinar-lhes a observar com
atenção as coisas, hierarquizar e destacar o principal do
secundário, montando, assim, dentro das cabecinhas infantis, uma boa
estrutura de narração. Somente depois de craques na “ Descrição de
Estampa” passava-se ao desenvolvimento de temas, onde cada um
escreveria o que pensava sobre o assunto dado. A correção era rigorosíssima. Verificava-se até se o “til” ficava rigorosamente
sobre o “a” ou o “o” e se a cedilha estava certinha sob o “c”,
agarradinha nele, e não pendurada, solta da sua letra. O cúmulo da
exigência era entre as letras “q” e “g”: uma tinha perninha e a
outra, barriguinha. A correção descontava pontos até nisso!
Pontuação e acentuação, nem se fala! Apesar da tarefa parecer árida
e destituída de interesse, ela adorava aquela parte da aula e
esmerava-se em encontrar detalhes mínimos que poderiam passar
desapercebidos a um olhar menos atento. Sempre tirava nota dez. Como
tinha muito gosto pela leitura estava sempre agarrada a um livro de
Monteiro Lobato, e vivia as Aventuras da Emília com grande emoção. O
máximo foi quando começou a ler Os Doze Trabalhos de Hércules e
ficou empolgada pela Mitologia Grega. Então, já aluna do seleto
Instituto de Educação, onde ingressara após disputar verdadeira
maratona ( trezentas vagas para cinco mil candidatas) matava algumas
aulas menos interessantes para ficar na Biblioteca – excelente, por
sinal – lendo a Enciclopédia Internacional das Obras Célebres, onde
todo o esplendor da Grécia Antiga se lhe apresentava em textos ricos
de detalhes interessantes e belíssimas gravuras. Era um encantamento
total! Sempre desejara possuir aquela coleção entre seus livros mas
nunca a encontrara à venda, pois todas as edições se haviam
esgotado. Já idosa, viu um anúncio num jornal, oferecendo tal obra
num sebo de luxo, entre outros livros raros.
Correu até lá, mas chegou tarde. O dono da livraria ficou com seu
telefone caso surgisse outra. Muito difícil, mas quem sabe?Ficou-lhe
uma esperança.
Seu pai era um homem extremamente liberal para muitas coisas que
eram tabu na época, mas, ao mesmo tempo, medievalmente intransigente
no que dizia respeito à leituras e amizades. Aos catorze anos foi
flagrada lendo a Sonata de Kreutzer, ( ?) de Tolstoi, o que provocou
verdadeiro terremoto na família. De onde saíra aquele livro? Quem o
emprestara? Era como se alguém houvesse oferecido uma droga perigosa
àquela filha tão amada, cuidada e protegida de contaminações
espúrias. Foi preciso muito empenho e promessas para impedir que o
pai fosse tomar satisfações da família da outra jovem. O primeiro
livro adulto que ganhou dele foi “ As Minas do Rei Salomão” que não
achou lá grande coisa. Sempre havia, entretanto, a biblioteca do
colégio e assim começou suas leituras, aleatoriamente, pegando aqui
e acolá, obras boas e más. Escrevia muito, mas nunca teve um diário
como quase toda mocinha daquela época. Apenas anotava em folhas
esparsas, seus pensamentos, sentimentos e observações sobre alguns
fatos. Fazia também alguns versinhos de pé quebrado, mas não era
muito dada à leitura de poesia. Algumas vezes, num acesso de
arrumação comprava um grosso caderno e passava tudo à limpo. Aos
dezoito anos já dirigia o belo Oldsmobile de seu pai, com carteira
de habilitação tudo. Para escândalo da vizinhança tijucana,
inconscientemente afrontava as pessoas daquele bairro conservador e
os amigos da família, fumando livremente e, o pior, com autorização
daquele pai tão severo com livros e amigos. Ele tentara, em longas
conversas, convencê-la a não fumar, mostrando-lhe os males do
cigarro, mas ela foi irredutível: quero porque quero. Os irmãos,
mais novos, fumavam, por que não ela? Ah, se soubesse de todas as
coisas naquela época não teria sido tão teimosa...e burra. Coerente
com seu desejo de torná-la responsável por seus atos ele concordou e
passou a comprar-lhe os cigarros, para que não fumasse mata-ratos,
controlando assim também a quantidade consumida. Treinou-a como se
faz com um querido cão Pastor Alemão, para ser corajosa, honesta,
não mentir, ser livre, independente e resolver sozinha seus
problemas, mas às vezes batiam de frente, quando ela agia assim como
lhe fora ensinado. Ele se assustava e lhe cobrava: - Por que não
perguntou ao pai antes? Ora, e era necessário? Ele queria prepará-la
para enfrentar a vida, não a queria dependente de um marido.
Casamento era loteria e não se devia aturar um homem com quem não se
está feliz. Talvez seu amor pressentisse o desamparo dela, num
futuro não muito distante. Queria vê-la falando vários idiomas,
datilógrafa, taquigrafa, uma secretária bilíngüe. Para seu desgosto,
ela quis ser professora e não a contrariou, mas não moveu uma palha
para ajudá-la, nem nas inscrições. Ficou contente com a vitória de
sua menina, apesar dela ter ido contra seus desejos. Mostrara que
tinha garra, lutava pelo que queria, bem do jeito que queria que ela
fosse – e ainda não havia completado doze anos. Casou-se aos vinte e
um anos e viu esse amado amigo pai - tão paradoxal em seus atos como
extremado em seu amor – morrer três meses depois de uma
insuficiência cardíaca aos cinqüenta anos de idade. Apesar dessa
enorme perda, foi muito feliz com seu jovem esposo, que a amava com
paixão. Viveram juntos apenas oito anos, quando ele morreu bem do
jeito que sonhava. Costumava dizer que se tivesse algum mérito aos
olhos de Deus, não ficaria sob sete palmos de terra. Queria morrer
no mar. Ambos tinham acabado de completar trinta anos. Ao
despedir-se dela para mais um vôo de treinamento, não permitiu que
se levantasse da cama às cinco horas da manhã para lhe dar café. –
Dorme mais um pouco. Tomo café na rua. Abaixou-se sobre a cama,
beijou-a no rosto, afagou-lhe os cabelos e lhe disse: - Não sei o
que você fez comigo , sua danada, que ainda gosto tanto de você! E
foi embora para sempre, deixando-lhe na lembrança e no coração essas
últimas lindas palavras, sua esbelta figura de toureiro, vestida com
uma calça americana de brim bege, camisa de cambraia de linho verde
clara e o aceno de sua mão ao sair do quarto.
- Amanhã, lá pelas cinco horas estou de volta. De concreto e
palpável deixou-lhe cinco lindas crianças – pois uma já morava com
os anjos – O mais velho tinha apenas seis anos. Dois dias depois ela
conseguiu chorar, mas foi pouco choro. Ele lhe deixara de presente
um jardim cheio de flores, que ela jurou cuidar com todo seu amor e
carinho. E o fez com muita alegria. Apesar das perdas, apesar das
mortes, hoje é uma senhora idosa e jovial e julga ter tido uma vida
feliz, na criação de todos os filhos do amor que teve na vida.
O final de sua intimidade carinhosa com Ricardo soou-lhe como mais
uma perda, fazendo-a lembrar-se de Rubens Carlos, de seu filhinho,
de seu pai e de seu jovem companheiro. Entretanto, para ser
verdadeira, encheria páginas e páginas com a felicidade que teve ao
ver crescerem seus filhos e nascerem seus netos, todos honestos,
corajosos, generosos e corretos Só agora se dava conta que toda
moeda tem duas faces.
O Segundo Piloto Zé Maria era quase um menino. Alegre, sorridente,
educado e prestativo, encantou de imediato as duas passageiras.
Nascera no Sul do país e segundo ele mesmo, não sabia bem como fora
parar na Marinha Mercante. Não queria cursar uma Universidade,
adorava iatismo, já fora campeão duas vezes em sua categoria, mas o
pai queria vê-lo encaminhado na vida. Ao invés de singrar as águas
da baía de sua cidade, resolveu cruzar os mares num navio grande.
Acho que foi isso, assim, bem simples. Resolvia as inquietações do
pai mas ainda não tinha certeza se era realmente o que queria para
si. Enquanto isso ia conhecendo o mundo e aprendendo tudo o que
podia sobre navegação.
A bordo do Loyde Carajá, era companheiro certo nos passeios das
passageiras nos portos. Conhecia todos os lugares, pois já fizera
aquela rota umas três vezes. Em Leningrado, numa visita ao museu
Hermitage, ele conheceu uma menina russa, linda, quase adolescente e
que ainda não fizera dezoito anos. Excepcionalmente, ela falava
inglês e os dois ficaram conversando durante toda a visita. Foi o
tempo suficiente para se apaixonarem e trocarem endereços e
combinarem um novo encontro. As duas passageiras ficaram encantadas
com o fato. Amor à bordo. Ele, cheio de esperanças e planos, levou
um banho de água fria quando soube pelo agente do Loyde na cidade
que aquilo era um amor impossível. Ela só poderia sair do país,
mesmo depois da maioridade, com autorização dos pais e do Partido.
Mas isso era mais um motivo para acirrar-lhe a vontade de tê-la e
trazê-la para o Brasil. Não dessa vez, mas, mais tarde, com tudo já
acertado. Encontraram-se algumas vezes, à tardinha, num jardim da
cidade e soubemos depois que sequer um beijo na boca trocaram.
Davam-se as mãos, conversavam e quando se despedia dava-lhe um beijo
no rosto. O pudor e o recato daquela moça não condizia com o que
ouvíamos sobre as mulheres e o amor na União Soviética. Era
inacreditável, mas ela era virgem e Zé Maria, seu primeiro namorado.
Quando os pais souberam dos encontros, proibiram-na de ir novamente.
Nada com estrangeiros! Eram professores universitários e só tinham
aquela filha, para quem sonhavam uma vida perto deles. Combinaram de
se escrever até conseguirem alguma saída para a situação. Uma das
passageiras prometeu ajudar no que fosse possível e conseguiu mesmo
ter contato com duas mulheres russas que haviam se casado com
brasileiros. Ela conhecia uma família de imigrantes russos no Rio de
Janeiro que lhe deu os contatos. O resultado foi frustrante. Uma
coisa é o amor, olhado em si. Outra coisa é a realidade. Muitas
vezes um não resiste à outra e foi o que aconteceu com a. A despeito
de estarem apaixonadas pelos homens com os quais se casaram, o sonho
dos russos em geral era conhecer o ocidente e suas tão misteriosas
como cobiçadas maravilhas. Essas moças eslavas, criadas num sistema
rígido e sem nenhum luxo, nenhum supérfluo mas culturalmente rico,
tinham um nível alto de escolaridade, apesar de pertencerem a
famílias proletárias e simples. Haviam estudado balé até certa
idade, conheciam a boa música clássica, bem como a alegre e popular
música russa. Aqui no Brasil vieram morar no subúrbio do Rio de
Janeiro, em meio a uma população de classe média baixa, longe de
qualquer ponto turístico ou praias, museus, cinemas e teatros. Não
tinham sequer a tão esperada liberdade de ir e vir. As famílias
pequeno burguesas dos subúrbios são muitas vezes mais castradoras do
que a ditadura do partido. Na realidade, nada era proibido
formalmente, mas faziam-nas saber o que era esperado delas, de seu
comportamento e de suas atitudes: docilidade e submissão aos maridos
e às sogras com quem foram morar; adequação aos padrões de classe e
obrigação de religiosidade. Não tinham acesso a nada do que lhes era
familiar e seu entorno era de uma pobreza cultural de fazer pena. A
pobreza de lá era de consumo, de shoppings, modas, eletrodomésticos
sofisticados. Aqui, no subúrbio, elas nem tinham nada disso à mão,
bem como estavam privadas da música, do teatro e dos eventos
culturais que os pobres de lá gozavam. É claro que não deu certo.
Foram felizes por algum tempo mas quando foram contatadas, estavam
se separando dos maridos e providenciando a documentação necessária
para voltar à terra natal. Ambas eram de Leningrado e haviam se
casado com homens da Marinha Mercante. Não seria o caso de Zé Maria,
que pertencia a uma família rica e morava à beira-mar. Sem grandes
esperanças do lado russo, o rapaz pensou em tudo, até mesmo em
arranjar uma maneira de ir morar lá. Mas mesmo isso era complicado.
Não era comunista e as autoridades já sabiam de suas intenções. Ao
país não interessava aceitar apenas um homem apaixonado, sem
qualquer compromisso com “a causa” - muito pelo contrário, com um
passado de play boy da alta burguesia
sul americana. Muitas lágrimas e cartas rolaram entre os
continentes, mas o final foi triste e sem romantismo. Desistiram um
do outro por cansaço, exaustão e falta de combustível para alimentar
aquele amor juvenil tão forte. As cartas começaram a ser censuradas
do lado russo e a jovem, talvez sentindo-se abandonada, desistiu de
continuar escrevendo. Uma história triste, mas cheia de romantismo e
ternura. Onde andarão eles, o que farão agora, vinte anos depois?
Estarão vivos? Terão se casado e tido filhos? Mas, principalmente,
ainda se lembrarão um do outro? Isso se pode responder, com certeza.
O primeiro amor, assim forte, fica guardado no coração até a morte.
A despeito da vida boa ou má que se tenha.
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