Preconceito
Futebol Clube
[O
Estado de São Paulo,
Caderno
2,
Domingo, 12 de novembro
de 2000]
Fernando Henrique está
certo, o Brasil é um país "culturalmente integrador e socialmente
injusto". Sei que ele usa "culturalmente" no sentido antropológico,
de comportamento habitual. Mas, como José Bonifácio notou
já em meados do século 19, essa integração
é tanto mais perigosa por ser enganosa. Veja a questão do
preconceito: a sociedade brasileira é das mais machistas e racistas
do Ocidente. Só que essa atmosfera simbólica, de que vivemos
numa "democracia racial", faz parecer que não.
Antigamente a miscigenação
era incentivada porque iria branquear a população; hoje ela
é exaltada porque a teria desbranqueado. Qual o erro? O erro é
colocar a questão racial como definidora. Agora, para combater o
preconceito, o primeiro passo é reconhecer sua existência.
O segundo é distribuir educação e justiça para
todos, não apenas cédulas eleitorais. A lenta, insatisfatória
evolução que tem havido é fruto da própria
evolução do capitalismo democrático no País.
A mudança definitiva da mentalidade envolve outros fatores.
Uma ilustração
perfeita desses fatores foi a sessão da CPI do futebol na Câmara,
terça-feira passada, em que os jornalistas depuseram. A imprensa
no dia seguinte se queixou da ausência de provas, como se coubesse
a eles produzi-las. Mas o que Flavio Prado, José Trajano, Tostão
e, sobretudo, Juca Kfouri (essa rara figura do moralizador não-moralista,
irônico, desprendido) fizeram foi dar um norte à investigação,
o qual se chama Confederação Brasileira de Futebol, a instituição
que deveria organizar, regulamentar e fiscalizar o futebol nacional e que
não o faz. Autoridades federais também deveriam ser cobradas,
por permitirem a sonegação e as negociatas que permitem.
O resto é holofote para a mídia, como as sabatinas de Luxemburgo
e dos jogadores, que dificilmente revelarão cont(r)atos escusos.
O que ficou claro foi o clubismo,
a ação entre amigos que domina o futebol brasileiro, o nepotismo
perdulário da CBF, a falta de transparência a serviço
da ingerência. Não por acaso a Lei Pelé foi estripada,
o contrato com a Nike foi ocultado, e a Copa João Havelange (simbolicamente
intitulada) está como está. A modernização
completa e honesta do futebol não serve aos coronéis do esporte,
também chamados de cartolas, talvez por causa das mágicas
inesperadas que são capazes de tirar do obscuro...
Fernando Henrique deveria deixar
Gilberto Freyre e Florestan Fernandes um pouco de lado e voltar a Sérgio
Buarque de Holanda, que em seu Raízes do Brasil nota que "a ideologia
impessoal do liberalismo" não entrou direito na cultura brasileira,
em que tudo é levado para o pessoal, o familiar, o cordial, o "integrado",
mesmo naquelas patotas que se dizem vanguardas.
Aqui, a única coisa objetiva,
que não tem dono, é o preconceito, que não parece
ser de ninguém, mesmo sendo uma realidade onipresente.
Doença juvenil do
pop-ulismo Por falar em preconceitos, Al Gore tornou célebre
em sua campanha a expressão "poluição cultural", referindo-se
ao lixo massificado e àquilo que o jornal inglês Observer
chamou de "neobrutalismo", o sensacionalismo carniceiro que virou moda
nos circuitos "modernos". Michael Kimmelman, o bom crítico de arte
do New York Times, escreveu sobre isso no domingo passado, tratando de
evitar o moralismo conservador que está por trás desses discursos
sobre a "degeneração" da civilização, mas indo
ao ponto:
"É melhor parar esse
nonsense antes que comecemos a acreditar nele. A cultura popular está
ficando mais e mais juvenil, e as artes sérias, ou o que se costumava
chamar de artes sérias, freqüentemente emulam a cultura popular,
de modo depressivo. Mas podemos estar desapontados com as artes sem estarmos
mais rudes como sociedade. (...) Os anos 90 foram uma década de
mudança, não uma década particularmente grande para
as artes, mas um período de mudança. (...) Agora a fronteira
entre alta e baixa cultura foi virtualmente apagada, (...) e seu valor
tem apenas a ver com o nível de choque de sua mensagem confessional.
Quando a arte aspira à condição geral de cultura pop
(o que devemos lamentar como compromisso de uma ambição civilizada
mais do que como um signo da ruína da sociedade), então a
arte, como a maioria da cultura pop, não pode esperar ficar na prateleira
mais do que uma canção mediana de rap."
Achei que assim, em inglês,
essas idéias soassem novas.
Novas fronteiras Perguntei
a António Damásio, o neurologista autor de O Mistério
da Consciência, se ele concordava com a especulação
do biólogo Stephen Jay Gould de que a atividade mental pode ter
influência sobre o sistema imunológico. Gould aventou a hipótese
depois de sobreviver 10 anos (agora já devem ser uns 20) ao prognóstico
de seu médico, de que morreria de câncer em até um
ano. Agora vem a notícia de que estudos preliminares da Universidade
da Califórnia, Berkeley, mostram uma ligação entre
uma área específica do córtex, no lobo frontal do
cérebro, e o sistema imunológico.
Não significa que pensamento
positivo cura doenças, mas que o vigor mental é tão
fundamental para a defesa do organismo quanto o corporal. Só não
vá se inscrever na Academia de Letras achando que fará ginástica
cerebral...
Panorama Intelectual Brasil
Enquanto isso, no Brasil, Marx continua a dominar os debates da dita "intelligentsia",
e a visita do alemão Robert Kurz, desconhecido em seu país,
é saudada como a passagem do profeta, que assegura que haverá
paraíso socialista depois da morte certa do capitalismo global.
Já
Haroldo de Campos publica A Máquina do Mundo Repensada, em que se
compara modestamente a Dante e Drummond. Sua poesia é verbosa, eruditóide,
barroquizante, obcecada com conceitos como alquimia e cosmogonia. Ou seja,
tudo que o concretismo combatia... Mas, no caso, talvez fosse melhor ele
ter ficado no trocadilhismo visual das priscas eras.
A arte da crítica
(1) Uma boa mostra é Expressionismo Alemão, no Museu
de Arte Moderna, no Parque do Ibirapuera, isolada dos camelôs e ciclistas
que o dominam. Preste atenção em Emil Nolde, tanto em telas
como A Ponte como em gravuras como Jovem Casal. E, se você quer saber
de onde veio a pintura de Anita Malfatti, não deixe de conferir
os retratos de Alexej von Jawlensky.
A arte da crítica
(2) Entre o capachismo diante das superproduções hollywoodianas
e a maratona pela mostra de filmes árabes e chineses, opte por E
aí, Meu Irmão, Cadê Você?, o mais recente filme
dos irmãos Coen. É inventivo sem ser pretensioso, sardônico
sem ser maniqueísta, inteligente sem ser chato. Que mais você
quer? Que outros cineastas seriam capazes de fazer um filme sobre três
fugitivos que atravessam o sul-americano (o Saara dos bobos, na frase de
Mencken), vivendo episódios inspirados na Odisséia, e com
esse material falar sobre comunicação de massa, sobre seu
poder sedutor e ao mesmo tempo o uso político do marketing? Como
Woody Allen, os Coen são mais inteligentes que seus críticos.
Canção que
morre no ar Dois discos com arranjos bem cuidados, criativos, coisa
rara no País. Gil e Milton, porém, tem repertório
sofrível, com exceção da versão belíssima
de Dora, de Caymmi. Gal Canta Tom Jobim é um dos maiores momentos
da cantora.
Sempre preferi a Gal de Sua
Estupidez à Gal de Festa do Interior. Ei-la, sutil e vibrante, na
Derradeira Primavera.
Internéticas Num
país com 30 milhões de domicílios com TV, você
acredita mesmo que haja 14 milhões de internautas?
Por que não
me ufano É claro que iam escolher Eu Tu Eles para concorrer
à indicação para o Oscar pelo Brasil. É uma
mistura de Dona Flor e Central do Brasil, uma história picaresca
que se passa em meio à miséria nordestina. "For export",
certamente. Auto da Compadecida não entraria na cabeça dos
gringos...
Aforismos sem juízo Não há crítica
mais destrutiva que a posteridade. |