Cora Coralina

Remetido por Fabio Afonso de Almeida - faa@tba.com.br

Poema do Milho

Milho . .. Punhado plantado nos quintais. Talhões fechados pelas roças. Entremeado nas lavouras, Baliza marcante nas divisas. Milho verde. Milho seco . Bem granado, cor de ouro. Alvo. às vezes vareia, - espiga roxa, vermelha, salpintada. Milho virado, maduro, onde o feijão enrama Milho quebrado, debulhado na festa das colheitas anuais. Bandeira de milho levada para os montes largada pelas roças: Bandeiras esquecidas na fartura. Respiga descuidada dos pássaros e dos bichos. Milho empaiolado . abastança tranqüila do rato, do caruncho. do cupim. Palha de milho para o colchão. Jogada pelos pastos. Mascada pelo gado. Trançada em fundos de cadeiras. Queimada nas coivaras. Leve mortalha de cigarros. Balaio de milho trocado com o vizinho no tempo da planta. "- Não se planta, nos sítios, semente da mcsma terra". Ventos rondando, redemoinhando. Ventos de outubro. Tempo mudado. Revôo de saúva. Trovão surdo, tropeiro. Na vazante do brejo, no lameiro, o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro. Acauã de rnadrugada marcando o tempo, chamando chuva. Roça nova encoivarada, começo de brotação. Roça velha destocada. Palhada batida, riscada de arado. Barrufo de chuva. Cheiro de terra; cheiro de mato, Terra molhada, Terra saroia. Noite chuvada, relampeada. Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais. Observatório: lua virada. Lua pendida . . . Circo amarelo, distanciado, marcando chuva. Calendário, Astronomia do lavrador. planta de milho na lua-nova. Sistema velho colonial. Planta de enxada. Seis grãos na cova, quatro na regra, dois de quebra. Terra arrastada com o pé , pisada, incalcada, mode os bichos. Lanceado certo-cabo-da-enxada.. Vai, vem . . . sobe, desce . . . terra molhada, terra saroia . . . Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra Sobe. Desce . , . Camisa de riscado, calça de mescla Vai, vem . . . golpeando a terra, o plantador. Na sombra da moita, na volta do toco - o ancorote d'água: Cavador de milho, que está fazendo? A que milênios vem você plantando. Capanga de grãos dourados a tiracolo. Crente da Terra, Sacerdote da terra. Pai da terra. Filho da terra. Ascendente da terra. Descendente da terra. Ele; mesmo; terra. Planta com fé religiosa. Planta sozinho, silencioso. Cava e planta. Gestos pretéritos, imemoriais.. Oferta remota; patriarcal. Liturgia milenária. Ritual de paz. Em qualquer parte da Terra um homem estará sempre plantando , recriando a Vida. Recomeçando o Mundo. Milho plantado; dormimdo no chão, aconchegados seis grãos na cova. Quatro na regra, dois de quebra. Vida inerte que a terra vai multiplicar Evém a perseguìção: o bichinho anônimo que espia, pressente. A formiga-cortadeira - quenquém. A ratinha do chão, exploradeira. A rosca vigilante na rodilha, O passo-preto vagabundo, galhofeiro, vaiando, sorrindo . . . aos gritos arrancando, mal aponta. O cupim clandestino roendo, minando, só de ruindade. E o miho realiza o milagre genético de nascer: Germina. Vence os inimigos, Aponta aos milhares. - Seis grãos na cova. - Quatro na regra, dois de quebra, Um canudinho enrolado. Amarelo-pálido, frágil, dourado, se levanta. Cria sustância. Passa a verde. Liberta-se. Enraíza, Abre folhas espaldeiradas. Encorpa. Encana. Disciplina, com os poderes de Deus. Jesus e São João desceram de noite na roça , botaram a bênção no milho, E veio com eles uma chuva maneira, criadeira, fininha, uma chuva velhinha, de cabelos brancos, abençoando a infância do milho. O mato vem vindo junto, Sementeira. As pragas todas, conluiadas. Carrapicho. Amargoso. Picão. Marianinha. Caruru-de-espinho. Pé-de-galinha. Colchão. Alcança, não alcança. Competição. Pac . . . Pac . . . Pac . . . a enxada canta. Bota o mato abaixo. arrasta uma terrinha para o pé da planta. "...- Carpa bem feita vale por duas . . ." Quando pode. Quando não... sarobeia. Chega terra O milho avoa. Cresce na vista dos olhos. Aumenta de dia. Pula de noite. Verde Entonado, disciplinado, sadio. Agora ... A lagarta da folha, lagarta rendeira . . . Quem é que vê ? Faz a renda da folha no quieto da noite. Dorme de dia no olho da planta, Gorda; Barriguda. Cheia. Expurgo : . . nada . . . força da lua . . , Chovendo acaba - a Deus querê. " O mio tá bonito ... " "-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas . " "- O mio tá marcando . . . " Condieionando o futuro: "- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto ... Um refrigério " "- O mio lá tá verde qui chega a s'tar azur..." - Conversam vizinhos e compadres. Milho crescendo, garfando, esporando nas defesas... Milho embandeirado. Embalado pelo vento. "Do chão ao pendão, 60 dias vão". Passou aguaceiro, pé-de-vento. " - O milho acamou . . . " "- Perdido?" . . . Nada... Ele arriba com os poderes de Deus .. . " E arribou mesmo; garboso, empertigado, vertical No cenário vegetal um engraçado boneco de frangalhos sobreleva, vigilante. Alegria verde dos periquitos gritadores . . . Bandos em sequência . . . Evolução . . . Pouso . . . retrocesso. Manobras em conjunto. Desfeita formação. Roedores grazinando, se fartando, foliando, vaiando os ingênuos espantalhos. "Jesus e São João andaram de noite passeando na lavoura e botaram a bênção no milho" . Fala assim gente de roça e fala certo. Pois não está lá na taipa do rancho o quadro deles, passeando dentro dos trigais? Analogias . . . Coerências. Milho embandeirado bonecando em gestação. - Senhor! . . . Como a roça cheira bem ! Flor de milho, travessa e festiva. Flor feminina, esvoaçante, faceira. Flor masculina - lúbrica, desgraciosa. Bonecas de milho túrgidas, negaceando, se mostrando vaidosas. Túnicas, sobretúnicas . . . saias, sobre-saias . . . Anáguas . . . camisas verdes. Cabelos verdes . . . ~Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas. . . - O milharal é desfile de beleza vegetal. Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas. Cabelos prateados, verde-gaio. Cabelos roxos, lisos, encrespados. Destrançados. Cabelos compridos, curtos, queimados, despenteados . Xampu de chuvas . . . Flagrâncias novas no milharal. - Senhor, como a roça cheira bem! . . . As bandeiras altaneiras vão se abrindo em formação. Pendões ao vento. Extravasão da libido vegetal. procissão fálica, pagã. Um sentido genésico domina o milharal. Flor masculina erótica, libidinosa, polinizando, fecundando a florada adolescente das bonecas: Boneca de milho, vestida de palha . . . Sete cenários defendem o grão Gordas, esguias, delgadas; alongadas Cheias, fecundadas. Cabelos soltos excitantes. Vestidas de palha. Sete cenários defendem o grão, Bonecas verdes, vestidas de noiva Afrodisíacas, nupciais . . . De permeio algumas virgens loucas . . . Descuidadas. Desprovidas. Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas. Cabelos verdes. Cabelos brancos. Vermelho-amarelo-roxo, requeimado . , , E o pólen dos pendões fertilizando .. . Uma fragrância quente, sexual invade num espasmo o milharal. A boneca fecundada vira espiga. Amortece a grande exaltação. Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas A espiga cheia salta da haste. O pendão fálico vira ressecado, esmorecido, No sagrado rito da fecundação. Tons maduros de amarelo. Tudo se volta para a terra-mãe. O tronco seco é um suporte, agora, onde o feijão verde trança, enrama, enflora. Montes de milho novo, esquecidos, marcando claros no verde que domina a roça. Bandeiras perdidas na fartura das colheitas. Bandeiras largadas, restolhadas. E os bandos de passo-pretos galhofeiros gritam e cantam na respiga das palhadas. "Não andeis a respigar" - diz o preceito bíblico O grão que cai é o direito da terra. A espiga perdida - pertence às aves que têm seus ninhos e filhotes a cuidar. Basta para ti, lavrador, o monte alto e a tulha cheia. Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem - O pobrezinho que passa. - Os bichos da terra e os pássaros do céu.


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