José Craveirinha

Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante

Pai: As maternas palavras de signos vivem e revivem no meu sangue e pacientes esperam ainda a época de colheita enquanto soltas já são as tuas sentimentais sementes de emigrante português espezinhadas no passo de marcha das patrulhas de sovacos suando as coronhas de pesadelo. E na minha rude e grata sinceridade não esqueço meu antigo português puro que me geraste no ventre de uma tombasana eu mais um novo moçambicano semiclaro para não ser igual a um branco qualquer e seminegro para jamais renegar um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue. E agora para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático achando que não valia a pena fazer cara alegre e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa Ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo branco e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé: quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém." Oh, Pai: Juro que em mim ficaram laivos do luso-arábico Algezur da tua infância mas amar por amor só amo e somente posso e devo amar esta minha bela e única nação do Mundo onde minha mãe nasceu e me gerou e contigo comungou a terra, meu Pai. E onde ibéricas heranças de fados e broas se africanizaram para a eternidade nas minhas veias e teu sangue se moçambicanizou nos torrões da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital colono tão pobre como desembarcaste em África meu belo Pai ex-português. Pai: O Zé de cabelos crespos e aloirados não sei como ou antes por tua culpa o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos à Zamora nas balizas dos estádios descampados avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas embasbacado com as proezas do Circo Pagel nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui campeão de corridas no "xituto" Harley-Davidson os fundilhos dos calções avermelhados nos montes do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller os bolsos cheios de tingolé da praia as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã do carro eléctrico e as mangas verdes com sal sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti e Sontinho para minha Mãe todo maluco de medo das visões alucinantes de Lon Chaney com muitas caras. Pai: Ainda me lembro bem do teu olhar e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade ou teus versos de improviso em loas à vida escuto e também lágrimas na demência dos silêncios em tuas pálpebras revejo nitidamente eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura na dimensão desmedida do meu amor por ti meu belo algarvio bem moçambicano! E choro-te chorando-me mais agora que te conheço a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois dos carros na lenta procissão do nosso funeral mas só Tu no caixão de funcionário aposentado nos limites da vida e na íris do meu olhar o teu lívido rosto ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus e na minha cabeça de mulatinho os últimos afagos da tua mão trémula mas decidida sinto naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central. E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza e nas abafadas noites dos nossos índicos verões tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto e de tanga na casa de madeira e zinco da estrada do Zichacha onde eu nasci. Pai: Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios e Tarzan agente disfarçado em África e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face e eu também Ee que musámos. E alinhavadas palavras como se fossem versos bandos de se´´cuas ávidos sangrando grãos de sol no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços agitados nas manhãs de bronzes chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas ancas sinuosas dos rios. E nestes versos te escrevo, meu Pai por enquanto escondidos teus póstumos projectos mais belos no silêncio e mais fortes na espera porque nascem e renascem no meu não cicatrizado ronga-ib´´rico mas afro-puro coração. E fica a tua prematura beleza realgarvia quase revelada nesta carta elegia para ti meu resgatado primeiro ex-português número UM Craveirinha moçambicano!


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