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Carlos Roberto Santos Araújo




Memória e transfiguração


[in Jornal A Tarde, 11.06.2005]




 

Eis o Memorial de outono, editado pela Bertrand Brasil, através de esmerada feitura gráfica, roupagem digna de agasalhar o texto de um mestre na arte da prosa. Trata-se da viagem através da memória, em que, à busca do tempo perdido e do Paraíso irrecuperado, Hélio Pólvora, em certos momentos, toca os limites do seu próprio coração. Latifundiário de temas, com jurisdição em inúmeras comarcas, Hélio Pólvora pontifica em vários gêneros literários, com trâmite do conto ao romance, da poesia à crônica, da crítica ao ensaio. E agora desbrava um continente virgem, conquista o terreno resvaladiço do tempo e envereda pelas areias movediças da memória.

Logo se nota o garbo irônico da sua frase estilística, a irreverência sutil, a fina ironia machadiana, a leitura variada, a insatisfação fecunda. E se percebe o Hélio depurado, fruto de décadas de labor literário, consciente do seu ofício, refinado como o Senhor da festa a brindar os seus convidados com vinhos cada vez mais saborosos, o que não é normal, pois, desde os tempos bíblicos, o hábito é servir o vinho melhor no início da festa e o inferior depois, quando os convidados já estão todos bêbados e não percebem a menor diferença.

Neste Memorial de outono, Hélio Pólvora revisita sua infância e nos dá o retrato do pai lavrador e perito na arte de podar cacaueiros. Resgata do limbo os personagens que povoaram sua adolescência: o tio Américo, o tabelião Crescêncio, a professora Hélène, ávida de galanteios.

Menino grapiúna, Hélio cultiva um milharal imaginário, a fluir e refluir como onda eterna e verde, um milharal que prevalece sobre as injunções de uma realidade submetida ao ciclo biológico de vida e morte, um milharal que não morre jamais, pois, livre das mazelas do tempo, enraíza-se no território do sonho e vive numa quarta dimensão, a da poesia.

FICÇÃO EM CARNE VIVA - Em busca de si mesmo, Hélio Pólvora une, à maneira de Machado de Assis, pendularmente, as duas pontas de sua vida: a infância e o tempo de madureza. E nos revela, no Rio de Janeiro, o homem feito, preparado para o sofrimento e para a vida. Ali, profissional de imprensa, escreve, quase ghost writer, crônicas de Maísa, e convive com escritores famosos.

Parte importante do livro é dedicada às viagens, uma de suas paixões. Viagens a Portugal e Espanha, viagens à América. Comoventes são os seus diálogos com os lisboetas, sob o olhar cismarento de Eça de Queiroz. Maliciosa a sua conversa com o astucioso motorista de táxi que lhe queria empurrar uma Quinta portuguesa, com certeza, às margens do Ribatejo. Pungente, sobretudo, é o relato da morte do romancista Adonias Filho, o transporte do corpo hirto do velho escritor em uma carroceria de caminhonete, debaixo de chuva, pelas estradas lamacentas de Inema, aos pés da Serra da Temerosa.

Disse, no início, que este livro é uma viagem através da memória, mas não a mera memória de quem relatasse fatos de sua vida ou de quem fizesse o levantamento histórico de um período. Que Hélio Pólvora não é historiador nem biógrafo. É um autêntico ficcionista. Este livro é a memória de um escritor de ficção em carne viva, em que a recriação literária é obra de transfiguração, não só da memória, mas da memória imaginária.

As reminiscências, em Hélio Pólvora, são feitas de várias camadas de lembranças reais e fictícias. E arriscaríamos dizer que estas últimas são as mais capitosas. A maioria dos personagens que habitam sua memória é produto da sua fantasia. Que Hélio Pólvora é homem de imaginação, e grande parte de suas viagens é imaginária, pois ele, como disse o poeta, “imagina a viagem, retorna, e morre de saudades”.

Leia:

Memorial de outono, de Hélio Pólvora
Bertrand Brasil
2005
R$ 25

Carlos Roberto Santos Araújo é poeta, autor de A nave submersa, Lira destemperada e Sonetos da luz matinal.
 



Hélio Pólvora
Leia a obra de Hélio Pólvora
 

 

 

 

01/07/2005