David Mourão Ferreira

Romance de Dubrovnik

São estas casas de cinza De cinza petrificada É como se aqui a vida tivesse jogado às cartas e só a morte saíra ganhando em cada jogada É esta rua comprida mas que se chama Platza (embora em eslava grafia se escreva apenas Placa) e que na Ragusa antiga já dois mundos separava De um lado terra latina e do outro terra bárbara São as verdes gelosias são as muralhas douradas a segredarem que a vida se inda quisesse ganhava É agora ao meio-dia a Porta Pile empilhada E são cachos de turistas trepando pelas muralhas tirando fotografias contudo não vendo nada São fileiras de boutiques São cafés sob as arcadas É tudo a fingir que a vida não se dá por derrotada É no porto a maresia quando mais avança a tarde incrustada em cada esquina suspensa de cada iate Mas das naves bizantinas é que ela sente saudades e das galeras esguias que Veneza lhe enviava se bem que tal nostalgia inda hoje a sobressalte Nenhum sabor tem a vida se a morte a não acicata E são argolas vazias as que há no porto à entrada e de onde outrora pendiam correntes sempre de guarda Quem aliás adivinha as marítimas estradas que deste porto saíam que neste nó se cruzavam Com certeza agora vivem na tinta azul de outros mapas Ou permanecem cativas Ou ficaram bloqueadas São em redor tantas ilhas tanta rocha tanta escarpa tantas flutuantes ravinas Mas quando a noite se abate não são mais do que faíscas no mar de prata lavrada E já a Lua surgia na sua rica dalmática Nem mais a preceito vinha do que no céu da Dalmácia Será que o fulgor da vida vem da morte iluminada Subo ao monte Zarkovica (Na língua serbo-croata deve ler-se Djarkovitza) e à sombra desta latada bebo um copo de mastika olho de novo a cidade Ó memória empedernida de uma divina morada Ó ferradura de cinza de algum cavalo com asas Ó mediterrânea figa mais propriamente adriática que foi feita por Posídon e no litoral deixada O que a morte à vida ensina através dos deuses passa Mas não é só nas ruínas que fica a sua pegada


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