David Mourão Ferreira

Canção de Madrugada

à Cecília Meireles
Ecorrem de noite pelos prédios, dissimuladas na umidade — dissimulando elas o tédio das longas noites da cidade — deusas solícitas que vão, com sua etérea assinatura, quase propor a redenção, — de rua em rua, dar a mão a quem se arrasta e procura. Pobre de quem vem perguntando à pedra esquiva das esquinas a voz e a face dessa amante de que não restam senão cinzas! Pobre do outro a quem o gelo daquele encontro tão malsão nem conseguiu arrefece-lo! — Pobres de tantos, sem o selo de garantia da ilusão! Ó vidas presas por um fio, junto ao abismo dos fracassos, quem vos evita o fim sombrio já desenhado em vossos passos? — Com grandes túnicas violáceas, as deusas erguem claras brisas: nas avenidas e nas praças, tremem as folhas das acácias, vibram os peitos infelizes. Até o frígido luar, que de livor tingia as ruas, se vai sumindo, devagar, deixando as almas menos nuas... Uma promessa de folhagem, de vento e sol, as veste agora: e, penetradas pela aragem, as almas tímidas reagem à madrugada que as enflora! Súbito, a um gesto das deidades, quebra-se o fúnebre luzeiro das outras luas enforcadas nos braços curvos dos candeeiros. Já no crepúsculo se esfuma a doentia sugestão, — e as deusas tecem, com a bruma, a nova luz que se avoluma e é uma promessa ou uma canção. Do sofrimento a noite cessa na indecisa madrugada: que ninguém peça a uma promessa mais que a promessa que foi dada! A quem sofreu, basta que a vida levante um sol de entre as ruínas: uma promessa doutra vida... — Quanto aprendi!, nesta comprida noite que tu, Canção, terminas.

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