Dimas Carvalho
Grau zero
Até hoje não
sei se o que aconteceu comigo foi sonho ou realidade. Às vezes penso
que devo ter perdido temporariamente a razão, que delirei e tive
febre. Parece-me que passei por um período de insônias, delírios,
suores frios, pés gelados, a cabeça doendo. Encontrei depois pelas
gavetas algumas caixas de psicotrópicos, de dosagem elevada. No
entanto, o meu médico afirmava que nunca estive tão normal quanto
nesta época, pelo menos aparentemente. De modo que continuo sem
saber o que pensar desses estranhos acontecimentos.
Tudo começou
porque eu estava desempregado e tinha como hábito ir para a praça
central da cidade. Todas as tardes ficava lá, absorto nos
pensamentos mais desconexos, devaneando, enquanto a multidão fluía.
Era um espetáculo ao qual eu não prestava muita atenção, mas que,
inexplicavelmente, me distraía das idéias atrozes que me
atormentavam. Eu me deixava ficar na praça até o sol se pôr, e às
vezes só pelas oito, oito e meia da noite, é que voltava para casa.
Neste trajeto eu gastava talvez uns quarenta minutos, que fazia sem
pressa, porque morava só, num quarto pequeno, e sabia bastante bem
que a noite seria muito longa. Geralmente eu lia até de madrugada,
ou ficava assistindo televisão.
Assim corria a
minha vida, sem grandes sobressaltos. Na parte da manhã, olhava os
jornais, procurando emprego, ou então ia apresentar o meu currículo
em firmas que estivessem possivelmente oferecendo vagas. Mas na
maioria das ocasiões ficava em casa, lendo e fumando, quando o
dinheiro dava para o cigarro.
Numa tarde —
fazia três meses que eu estava sem trabalhar e o meu desânimo
aumentava — cheguei à praça mais deprimido que de costume. Sentei-me
num banco central, de onde podia contemplar a grande fonte,
guarnecida de ninfas e dragões de pedra, e no centro da qual fica a
coluna da hora. Estava concentrado em olhar para o jorro d’água,
quando vi, do lado oposto, atravessando a rua, uma mulher de vestido
preto. Imediatamente, alguma coisa nela me chamou a atenção — o modo
de andar, os cabelos castanhos, o rosto singularmente expressivo, o
quê, não tenho certeza. Mas — e foi isso que verdadeiramente me
fascinou logo num segundo momento — havia no seu olhar um sentimento
triste, como de uma nostalgia infinita, de quem se achasse perdida e
não tivesse esperança de nunca mais ser encontrada. E esse olhar
parecia que me chamava para si, embora, pelo que pude notar, ela
sequer houvesse dado pela minha presença.
Me levantar e
segui-la foi uma ação automática, que executei em estado de
semi-inconsciência. Eu tinha a impressão de que acabava de me
acontecer o fato mais importante de toda a minha existência; e
sentia uma angústia intensa, esquisitamente misturada com uma
alegria tal como eu nunca havia sentido.
A mulher
caminhava rapidamente, e eu só avistava as suas costas, os reflexos
dourados dos cabelos. O que eu mais queria no mundo era que ela
olhasse para trás, pelo menos de relance, mas isto não acontecia.
Apressei os passos, na esperança de alcançá-la, barroando nos
transeuntes, e efetivamente me aproximei bastante, até a distância
de um braço. Mas então, quando podia tocá-la, deixei-me ficar
estupidamente parado, como se uma força invisível me acorrentasse ao
solo. E com lágrimas nos olhos a vi desaparecer, irremediavelmente
desaparecer.
Depois disto,
em que estado de ânimo passei as 24 horas seguintes! Algo me dizia
que a viria novamente no dia seguinte, no mesmo local e no mesmo
horário. Imaginem então a noite que passei, rolando na cama, e as
vezes que consultei o relógio, tentando inutilmente apressar o
tempo, que, pelo contrário, se arrastava com uma lentidão de lesma.
Quando o sol apareceu, não consegui me conter, e, trocando de roupa,
me encaminhei para a praça, sofregamente, sem sequer me preocupar em
quebrar o jejum. E durante toda esta manhã, que durou séculos,
caminhei centenas de vezes, talvez milhares, em torno da praça e
pelas ruas adjacentes.
Veio a tarde, e
a mulher não apareceu. Desesperado, eu rilhava os dentes, mordia as
unhas, e as horas passavam indiferentes, como ondas regulares de um
mar tenebroso, mar de piche, lodo e lama no qual eu afundava. Às 11
da noite, perdendo definitivamente as esperanças de um encontro
improvável, e após ter esquadrinhado os recantos da praça pela
milésima vez, retornei para casa, trôpego e faminto. Lembro-me que
soluçava, ao me aproximar do quartinho. E quando fechei a porta,
louco de dor, rolei pelo chão, balbuciando obscenidades, pragas e
maldições. Chorei então até desmaiar, já de madrugada, exausto de
cansaço e de fome, pois nada havia comido durante todo o dia.
E assim
transcorreram três dias, em que vivi como um sonâmbulo, o mundo ao
redor transformado em uma massa de névoa, espessa e sem sentido. Em
várias ocasiões, ao deixar a praça, onde passava agora todo o tempo,
me dirigia ao porto; de cima do cais ficava vendo o mar, lá embaixo,
brigando com os rochedos pontiagudos. Eu segurava no corrimão de
ferro, que contorna os trapiches, e o vaivém das águas me
hipnotizava, como se fosse um chamado, uma cantilena monótona e
maviosa que me puxasse para dentro do abismo. E entre as espumas,
trêmula, eu tinha a ilusão de avistar, submersa, a imagem mais que
todas querida.
Ao cabo de três
dias, a mulher apareceu novamente. Trajava um vestido azul claro, de
alças, mostrando os ombros de puro mármore. Desta feita, ela me
olhou por um instante, com seus olhos de mares longínquos, e houve
neste relâmpago como que uma mensagem de reconhecimento, como se
fôssemos companheiros de uma mesma jornada começada há muito tempo
atrás, companheiros que conviveram por longos anos, e que um acaso
ou um infortúnio houvesse separado. A sua boca se entreabria, para
saudar o reencontro, mas foi outra coisa que ouvi, com nitidez,
apesar de trinta metros mediarem entre nós dois:
— Não se
aproxime de mim, será a sua perdição.
Estupefato com
o que acabava de escutar, deixei-me ficar, atônito, enquanto ela
desaparecia de novo no turbilhão incessante. E a partir desta data,
infalivelmente, todos os dias eu conseguia vê-la, embora de modo
rápido. Embora fossem baldadas todos as maneiras que imaginei para
acompanhá-la, falar com ela, beijar-lhe as mãos e os olhos,
ajoelhar-me aos seus pés e lhe oferecer o punhal com que ela me
trespassaria o peito.
Durante esta
fase — que se estendeu por 21 dias precisamente — forjei toda
espécie de truques para obter seu endereço. Em meus delírios,
elaborei os estratagemas mais complexos e absurdos; e em minha mente
se sucediam, alternadamente e numa velocidade estonteante, a
exaltação e o desânimo, a certeza mais absoluta e o desengano mais
amargo. De sua visão fugaz, que sumia como um fantasma, era que eu
me alimentava, e onde ia buscar forças para continuar,
paradoxalmente, vivo. E somente desta fantasia feroz e febril eu
tirava o meu sustento.
Passaram-se
três semanas, e eu a via diariamente, mas se fosse feita a soma dos
minutos, creio que estes não chegariam a dez. Dez? Talvez cinco. De
qualquer forma, esta situação era menos pior do que a que veio a
seguir: ela sumiu para não mais voltar.
Desde então,
muitos anos se passaram. Consegui um lugar no funcionalismo público,
que me garante a sobrevivência. Casei, tenho dois filhos. Minha
mulher não é mais nem menos — uma pessoa mediana, normal como tantas
outras. Não vou contar dos primeiros meses que se seguiram ao
desaparecimento daquela que foi a luz da minha vida. Evitava passar
pela praça central, pelas ruas que pudessem recordar de algum modo a
sua lembrança. E tudo transcorria assim, em cores cinzas, nem menos
nem mais, os anos se sucedendo em sua cantiga repetida. Até que, há
uma semana, o telefone toca, sempre à mesma hora, e, quando eu
atendo, um longo silêncio se segue, pontuado por uma respiração
quase inaudível. E eu também nada digo, deixo-me ficar mudo, porque
sei muito bem o que me espera do outro lado. As palavras que não
digo, e também as que não ouço, ressoam, claras e inequívocas, na
minha cabeça. Alguém, de muito longe, chama por mim.
E sei o que
inevitavelmente virá: suores, delírios, insônia, pés gelados. O meu
médico continua afirmando que não tenho doença alguma, e que aliás
nunca tive. Sei também para onde os meus passos me arrastam, contra
a vontade: para o porto, para o mar, para os recifes pontiagudos,
porque entre as espumas e as ondas ela me espera, e com ela deverei,
mais cedo ou mais tarde, finalmente me encontrar.
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