Meu caro Eduardo Portela:
Fui acordado, no último domingo, por alguns de nossos amigos comuns, do Norte e do Sul do País, que protestavam, com sua sagrada indignação, contra a nominata, publicada um dia antes em “O Globo” (19/09/98), que elegia os vinte poetas brasileiros destinados à sobrevivência neste século. Foram mais de 17 telefonemas, de vários Estados, em que críticos e poetas repeliam a afoiteza e a tolice, enganosamente, consagradora e discriminatória, sob a égide da Biblioteca Nacional e à custa de suas verbas. A partir do quarto telefonema, passei a gravar as chamadas, para deixar documentado que ninguém protestava propriamente contra a omissão de seu nome, mas contra a impostura fascista, comuno-stalinista e arrogante de querer implantar uma relação oficial dos poetas brasileiros. Minimizei a coisa, e a todos pedi que não levassem a sério essa besteira publicitária, nem culpassem escritores pela montagem da lista, pois ela parecia ter sido organizada pelo Ratinho e a Xuxa. E devo dizer que só vi, com pena e com ironia, a publicação que faz lembrar os “cretini fosforescenti” de Marinetti, depois que um amigo a remeteu de São Paulo pelo fax. Habituei-me a não ler suplementos ditos culturais dos jornais brasileiros. Nem mesmo quando falam de mim e de minha obra, até em termos generosamente consagradores. Tomo conhecimento deles através de amigos que, regularmente, me fornecem recortes. Foi o que aconteceu, recentemente, quando me enviaram páginas de “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “Folha de S. Paulo” e “Estado de S. Paulo”, entre outros, do Norte e do Sul do País. Só assim fiquei sabendo de artigos e ensaios, em Pernambuco, no Ceará, em Belém do Pará, em Belo Horizonte, em Florianópolis, em Porto Alegre, no Rio, em São Paulo e assim por diante, e mesmo no exterior, em que críticos e escritores da mais alta reputação, consagraram vários de meus livros, em prosa e verso. Do último deles, “Invenção do Mar”, se disse, aquém e além mar que, a partir dele, a poesia de língua portuguesa se fundava sobre três nomes: Camões, Fernando Pessoa e Gerardo Mello Mourão. E até mais do que isto se disse. Por pudor não transcrevo essas louvações. Todo mundo no Brasil sabe dos julgamentos sobre minha obra, desde “O Valete de Espadas”. Não vou repetir críticas nem nomes, nem mesmo o recente levantamento sobre a literatura brasileira de nossos dias, em duas páginas nobres do “Caderno Cultural” do “Estado de S. Paulo”, no qual o mais conceituado dos críticos em atividade semanal no País, repetindo o que já dissera em sua coluna de “O Globo”, destaca até, explicitamente, que o poeta brasileiro vivo no qual “apostava para o futuro” se chamava Gerardo Mello Mourão. Creio que “para o futuro” quer dizer para a permanência, para a posteridade. Nem sequer conheço pessoalmente o crítico ilustre. E na verdade, estou entre os que acreditam que toda consagração pode ser um equívoco, mesmo a que tenho recebido de pessoas como Jorge Luís Borges, Octavio Paz, Ezra Pound e tantos outros, no Brasil e no exterior, que me atribuem, generosamente, um lugar fora de série na história do romance e da poesia brasileira. Por outro lado, habituei-me a sorrir com desdém de ressentidos notórios e escritores menores que fazem questão de cumprir os regulamentos da inveja propostos na construção da “Patrulha” instituída por um medíocre serviçal burocrático, o pobre diabo Ilya Ehrenburg, já denunciados no libelo definitivo de Herbert Lottman, La Rive Gauche (edição francesa Seuil — 390 pags. — 1981). Acho que o Josué Montelo já denunciou, em artigo no “Jornal do Brasil”, e o Antônio Olinto em Congresso do Pen Club, a versão brasileira da instituição criada pela mediocridade do pobre funcionário Ehrenburg, documentada e denunciada por Lottman. Por falar em Lottman, lembro-me de que ele é também o autor de um belo livro sobre Camus, e lembrança puxa lembrança. Quando estive preso, nos anos 40, fui várias vezes visitado por Camus, que viera ao Rio naquela época. Minuciosamente informado dos motivos de minha prisão, ele me advertiu por três vezes: — não se meta em política. Você é um poeta, e os poetas, os artistas, os escritores não podemos e não devemos fazer a história. Nosso papel é apenas sofrer a história. Daí para cá, tenho tentado sofrer a história de um sujeito que teria sido condenado por prestar serviços ao Eixo nazi-fascista. A imprensa se incumbiu do resto: era um espião nazista. A verdade é a seguinte: nunca fui condenado por nenhuma lei brasileira. Nunca compareci diante de um juiz, nem para ser interrogado nem para ser julgado ou condenado. Nunca fui sequer acusado de ter infringido qualquer lei ou código do País. Fui condenado por decreto! Creio que é caso único na história do Ocidente — por decreto da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Decreto número 4766, que retroagiu 10 meses no tempo (!), para punir supostas atividades minhas e de cento e tantas outras pessoas, por supostas acusações policiais — policiais, não judiciais — que teriam ocorrido dez meses antes da entrada do Brasil na guerra. Derrubada a ditadura em 45, o primeiro ato do Governo Linhares foi fechar o chamado Tribunal de Segurança que aplicara o decreto. A medida foi, a seguir, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, que anulou, por unanimidade, o chamado “processo” em que éramos acusados, “processo” infame, que nunca teve sequer autos, mas apenas um inquérito do DOPS, movido contra meu amigo, o Capitão paranaense Túlio Lebon Régis Nascimento e outros. Eu era um dos outros, entre futuros prefeitos, deputados federais e até governadores de Estado. O “espião-cabeça”, o Capitão Túlio, requereu ao Supremo e obteve, contagem do tempo de prisão, vencimentos e promoções. Foi reintegrado ao exército como General de Brigada e recebeu uma boa bolada. Como não segui rigorosamente o conselho de Camus, fui novamente preso em 1964. Preso e exilado e tive cassado meu mandato de deputado federal e meus direitos políticos, já não como fascista, mas como comunista — “um dos mais perigosos comunistas do Congresso, porque, ao contrário dos outros, que são geralmente burros e incultos, este é uma das maiores inteligências e certamente a maior cultura do País” — diz textualmente a justificativa de cassação. Como você vê, também aqui a consagração deve ser um equívoco. Desta vez, dos “críticos” do famigerado Conselho de Segurança Nacional. Não dou nunca esses esclarecimentos a terceiros, muito menos aos filisteus que morrem de inveja e de ressentimento com relação ao que pude fazer e escrever. Estou contando a você essas coisas, porque elas podem ter um nexo com o objeto desta carta — a famosa revista e a famosa antologia anunciadas. E posso referir esses fatos porque eles são um trecho alto e puro de minha própria biografia. Deles me orgulho e tenho sempre alegria em recordá-los, aquela alegria de Santo Agostinho — ‘gaudium cum veritate’ — um gozo, quase um orgasmo pela riqueza da aventura humana que tenho sabido viver, para que a vida seja menos curta e mais fecunda. Orgulho-me de minha história pessoal, da qual dizia o poeta Augusto Frederico Schmidt, ser “tão autêntica e tão marcada como suas ásperas raízes no país dos Mourões, e como a espantosa trajetória de sua residência na terra, uma existência pungida de rica e patética aventura e enfurecida beleza humana”. Por isso não me arrependo de nenhum momento de meu surpreendente passado. Dele só tenho recebido compensações espirituais duradouras e generosas e até louvores de quem os pode dar, por uma inegociável fidelidade ao culto da honra, herdado de velhos e reiúnos Mellos e Mourões do tempo antigo. Deste modo, escrevo-lhe para dizer que nunca tomei conhecimento de possíveis discriminações dos filisteus e dos idiotas em geral, fosforescentes ou não, contra o que sou e o que faço. E também para lhe dizer que me recusei a participar da ação que parece estar em curso com um pedido de informações na Câmara e no Senado e a convocação dos diretores da Biblioteca para informar quanto custará a publicação projetada, que critérios adotou, que pessoas ouviu, a quantas pagou e quantas pertencem aos quadros de funcionários e colaboradores da Fundação e da revista, e que figuram entre os supostos vinte poetas de seu estulto recenseamento. Já em gestões anteriores, se pediu a cabeça de dirigentes dessa Casa por despesas com esta revista, que acho útil e oportuna. Não me acumpliciarei com medidas para perturbar a carreira de ninguém nem o fechamento da revista. Isto posto, quero dizer que nunca me incomodaram as discriminações feitas à minha obra por todos ou invejosos ou carreiristas inconfessáveis. “Guarda e passa” — como recomendava Virgílio ao Dante. Mas o que não posso permitir e não permitirei é que essas discriminações sejam pagas com meu próprio dinheiro, o dinheiro público, que sai do bolso do contribuinte. Isto é, do meu. Não quero figurar em listas ou antologias em que meu nome e minha obra fiquem expostos a promiscuidades infecciosas, porque, afinal, burrice também pega. Figuro, certamente, em algumas antologias conspícuas. A outras, recuso meu nome e minha presença, como no caso do florilégio de uma abominável tradutora — uma ou duas — que morderam os cofres públicos, para assassinar alguns textos de regulares ou maus poetas brasileiros, como me advertia meu bom tradutor italiano. Na lista estampada em “O Globo”, no último sábado, não posso entrar nem como “hors concours”. As ditaduras sempre fizeram suas listas oficiais de escritores. É a primeira vez que se vê uma lista organizada por suposto sufrágio universal. Parece que o Ratinho, a Xuxa e outros menos votados estão entre os sufragantes. Gerardo Mello Mourão Poeta
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