Vivemos um momento em que a obra de arte encontra-se apertada pelos
sentidos, nem sempre os mais corretos, agregados a ela. Décadas
atrás, Mário Quintana lamentava não encontrar uma
edição de Os Lusíadas sem as doutas notas de rodapé,
antecipando o mal-estar criado pela atual ditadura teórica, tão
presente hoje na poesia, não apenas nas introduções
mas principalmente na estrutura e no léxico poéticos.
Este é o caso de Sebastião Uchoa Leite, cuja minúscula
poesia ficou espremida entre as orelhas assinadas por Haroldo de Campos,
o longo prefácio de João Alexandre Barbosa e a nota final,
em castelhano, de Adolfo Montejo Navas, no volume A espreita (Perspectiva,
2000). A impressão que se tem é de uma poesia prisioneira
de comentários hiperbólicos, o que contraria a sua própria
configuração despojada e despretensiosa. À poética
atonal de Uchoa os comentaristas opõem uma leitura grandiloqüente.
Isso cria um descompasso entre a produção de um competente
poeta menor e as invenções críticas de seus amigos
que escrevem textos laudatórios, vestindo-os com os trajes a rigor
da interpretação acadêmica. É verdade que a
culpa, se é que ela existe, é do próprio autor, que
aceita e exerce a autoridade da apreciação estética,
inclusive incorporando ao domínio do poético o jargão
analítico, de tal modo que não percebemos nenhuma mudança
ao passar dos comentários para os textos.
Escrevendo poemas lacônicos, pretensamente enigmáticos, uma
vez que só há enigma quando existe uma única resposta
possível, o autor dá margens para toda e qualquer interpretação.
Assim, a poesia passa a ter significado apenas fora de si, potencializando
as teorizações, que podem ser as mais delirantes e estapafúrdias.
A grandeza do texto criativo, segundo esta ótica, é estabelecida
pelos comentadores credenciados, cabendo ao poeta dilatar a abertura semântica
dos poemas e cultivar leitores bem cotados na bolsa de valores literários.
Ignorando este aparato, e lendo com a atenção voltada unicamente
para os poemas, podemos ver em A espreita uma reprise do único tema
de certa poesia contemporânea, que encena em seus versos o vazio,
utilizando alguns jogos de palavras que não levam a lugar nenhum,
embora criem uma aura moderna, reverenciada como distintivo da grande poesia,
embora nada tenha de grande ou de importante, não passando de uma
brincadeira inconseqüente do tipo “a rua pétrea / de pedestres
/ com pressa”. O adjetivo “pétrea” cumpre uma função
meramente decorativa.
Tudo bem pesado, podemos afirmar que se trata de uma poesia de negação,
fundada em palavras acrescidas de prefixos negativos, tais como “incósmico”,
“antifilosófica”, “desenigmação”, “desconstruir”,
“des-ordem”, “desrazão”, “indecifradas”, “desmemória”,
“irrespiratório”, “incivilizar-se”, “desplugar-se”, etc – como se
escrever poesia fosse criar neologismos esdrúxulos. É nesta
inversão que se sustenta um versejar que tem como eixo axial a recusa
da própria poesia, assunto velho e repisado por muita gente boa
e ruim neste nosso século de equívocos: “Todo poético
é inimigo [...] / Quem falou em poesia? / Alguém / Cospe”(p.80).
Outra marca do livro é a referência a grandes escritores,
seja de forma direta, com citação de trechos, seja através
de adjetivos biográficos (“nuvens baudelaireanas”, “inferno alighierico”,
“mallarmaicos brindes”), o que não é suficiente para encobrir
as inúmeras frases feitas que aparecem soltas nos poemas, mostrando
apenas uma entrega ao lugar-comum e a uma escrita de repetição.
Tudo isso revela que Sebastião
Uchoa Leite, posicionando-se a reboque de uma biblioteca intransigente,
lida e relida até a exaustão, produz uma poética de
saldos de leitura, longe portanto da criação de um universo
particular, tal como acontece com os escritores necessários à
língua.
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